Reprodução.
- Eles te querem porque você é uma mestiça. - Repetiu afirmando para a mulher à sua frente.
A mais de quatro anos não conversavam sobre isso tão diretamente. A mais de quatro não não se permitia ao menos pensar sobre isso tão diretamente.
- Também não sei como descobriram. - Quebrou o silêncio como se pudesse ler os pensamentos que se formavam na cabeça de Diana - Essa é a minha segunda maior preocupação. A primeira é o que eles querem com você.
A mente elencou todos os nomes que sabiam de seu segredo, não conseguiu encher uma mão e não conseguia imaginar ninguém lhe entregando. A palavra mestiça rodava a cabeça impedindo que qualquer outra entrasse e colocasse ordem. Era isso que era, mestiça, metade humana, metade vampiro. Tinha descoberto da pior forma, mas era verdade e era imutável.
Tinha passado a maior parte de sua vida como humana, alheia a toda vida de matança e sangue, até que tudo lhe foi tirado. Diana lembrava muito bem do monstro que havia se tornado na época que Luís surgira em sua vida, lembrava de todos os rostos que tinha assassinado e sabia com uma consciência muito perturbadora que esse monstro ainda vivia dentro dela. Luís por outro lado lidava com esse tipo de caso a séculos, havia construído um lugar para chamar de seu onde resolvia esse tipo de problema. Diana não o viu recuar, rejeitar ou vacilar enquanto contava todos seus pecados. O homem permaneceu em silêncio confessional, já tinha ouvido muitos tipos de horrores antes, já fizera também. Ali não era júri, juiz ou executor, apenas ouvinte. Apenas alguém que pudesse contar-lhe sua história, sua maldição. Se Deus não lhe tivesse dado um destino tão sombrio Luís poderia ter seguido uma carreira devocional, pois sabia todas as penitências possíveis que Diana infringiria física e mentalmente a si mesma pelo resto da vida pelo sangue que havia derramado e derramaria. E ainda assim a mulher não o viu recuar, rejeitar ou vacilar. Até que lhe contou sobre seu maior pecado.
Diana nunca foi transformada em vampiro. Ela nascera. Assim como nascera humana.
- Diana, eu tenho mais de 200 anos de vida. Eu nunca encontrei nenhum outro do seu tipo. E não acho que isso deva ser um bom sinal. Até onde sei, a Corte Europeia está tendo problemas de transformação. Eles não estão conseguindo transformar humanos em vampiros verdadeiros. Talvez eles estejam tão desesperados que estejam indo atrás de reprodução. E bem, temos um exemplo, um semi exemplo, que viveu até a idade adulta bem aqui na nossa frente.
Diana tinha lido alguns relatórios sobre coisas parecidas, mas nada concreto. A Corte Europeia era histórica, inabalável. Essa era a imagem que queriam passar a todo custo pelo menos. E mesmo com independência política a Fortaleza ainda tinha suas alianças, ninguém vivia sozinho no mundo.
- Eu iniciei essa conversa perguntando se você confiava em mim e vou repetir. Você confia em mim, Diana?
Não tinha dúvidas.
- Confio.
- Peço para que me ajude então. Como você sabe, iremos receber uma comissão da Corte Europeia por um tempo. A solicitação deles foi mais do que qualquer outra coisa uma intimação, seria uma grande afronta política negar. Eles estarão de olho em você, mas você também estará de olho neles.
Um estalo no fundo da cabeça ecoou. Esse era o ponto onde brilhava. Diana era uma boa estrategista, era majestosamente boa em enterrar sentimentos e planejar. E era isso que faria, se tinham decidido sair da Europa para investigar sua vida e usar suas cicatrizes como experimentos de laboratório, então também não se importava em jogar. Um sorriso perverso apareceu no canto da boca, sabia que Luís gostava tanto quanto ela.
- Sou toda ouvidos.
------------------------------------------------------------------------
Pouco menos de uma semana tinha se passado desde o pôr do sol naquele escritório com Luís. A escrivaninha do quarto estava tomada de papéis com dúzias de listas de nomes e algumas anotações. Diana havia começado a se acostumar com a dor de cabeça. Se antes o motivo era raiva e indignação, agora era trabalho e mais trabalho. Talvez fosse apenas a falta de sangue que se recusava a tomar nos últimos meses e tinha claros sinais de enfraquecimento. Afastou os pensamentos.
Tinha conversado com Luís sobre alguns figurões importantes que não podia deixar passar batido. Algumas coisas ainda não estavam muito claras, não tinham tido tempo de se organizar e planejar do jeito que gostavam de fazer, do jeito que precisavam. A comissão tinha adiantado em um mês a vinda para o Brasil. Desde essa notícia tinha sido estabelecida o escritório de Luís não passava de xingamentos e algumas batidas de portas, a burocracia da chegada estava soterrando a estratégia e Diana não podia deixar de acreditar que isso não deixava de ser um golpe muito bem pensado.
Viu o visor do celular acender mostrando a mensagem que esperava. Pegou o casaco e se dirigiu até o local combinado. Raramente tinha após as 3 horas da manhã livre, mas era o momento que mais adorava da madrugada.
A Fortaleza era grande, os três complexos de prédios se uniam por corredores fazendo um formato de U. Em cada lado anexos se estendiam que iam de laboratórios, galpões de treinos até mesmo a mais dormitórios. Conforme iam crescendo os anexos iam surgindo como raízes. Não demorou muito até que chegasse na extremidade Oeste e finalmente atingisse a trilha de pedra. Viu a respiração condensar na frente do próprio rosto, mas não se importou.
Após alguns minutos de caminhada se deparou com a cabana vermelha que tinha tanto apreço. O celular vibrou mais uma vez no bolso. Desligou a tela reclamando. Puxou a porta pesada já esperando pelo que tinha lá dentro. A luz amarela fez com que fechasse os olhos momentaneamente antes de abrir o sorriso caloroso.
- Olha ela aí! - Gabriel gritou - Nem sabia que você sabia sorrir ainda!
Diana mostrou a língua. Nádia levantou e foi abraçar a amiga com apreço. Rogério por sua vez apenas levantou a cerveja enquanto pressionava os lábios em uma linha torta.
- Você sumiu essa última semana. Quando recebemos sua mensagem ficamos preocupados - Nádia disse puxando a amiga pela mão até o sofá moribundo.
Gabriel se levantou como se fosse fazer um show de stand-up.
- Quer dizer, a gente achou normal sua mensagem, mas quando a gente descobriu que o Ro recebeu uma também, aí a gente se preocupou.
Nádia começava a ficar vermelha.
- A gente achou que talvez você só tivesse voltado a sua época emo, sabe? Toda sombria, andando pelos cantos com papéis, bem dark mesmo.
Diana não conseguia conter o riso e sabia que isso só era incentivo.
- Mas quando a gente descobriu que o Rogério tinha sido chamado! O Rogério, nosso amigo Rogério, seu ex? Aí foi demais ...
- Cala a boca, Gabriel! Não tá vendo como isso é inconveniente?! Os dois claramente não se acertaram ainda, e você fica falando besteira!
Diana caiu no riso. Não via problema algum naquilo, o fato de Nádia ficar brava só deixava ainda mais cômico. Gabriel tinha as mãos levantadas no ar em sinal de rendição, mas os olhos eram puro divertimento. Diana balançou a cabeça em negação olhando a cena, tinha de fato vivido um romance rápido com Rogério. Foram amigos por muito tempo, todos, mas os dois acabaram tendo algo e esse algo acabou. Olhou em busca do amigo, Rogério estava de costas buscando uma cerveja no frigobar, alheio.
- Estou aqui, não? - Diana abriu ambos os braços, dando um sorriso sem graça. - Estou bem, mas o que quero falar com vocês é importante e preciso da ajuda de todos. - Olhou para Rogério que havia retornado ao seu lugar.
Passou a mão pelos cabelos olhando o grupo que tanto amava. De fato fazia tempo que não se encontravam ali. Eram amigos e tinham contato frequente no refeitório, trocando mensagens, mas ali era um lugar especial. Era um galpão de treino desativado, ainda tinha alguns colchonetes e pesos, mas uns anos atrás tinham levado uma mesa de sinuca, dois sofás e um frigobar. Hoje era mais uma cabana de amigos do que qualquer outra coisa.
- O que foi Di? - Nádia resmungou ao lado da amiga preocupada.
- Vocês sabem que nos próximos meses iremos conviver com uma Comissão de Vampiros da Europa, certo?
Todos concordaram contrariados como já esperava.
- Eu não confio neles. Esse grupo que está vindo pra cá, eles são conhecidos por matar, torturar humanos até hoje. Luís me disse que querem aprender o nosso jeito de viver. Nenhum de nós dois acreditamos nisso. Enquanto eu olho de perto o alto escalão deles, vou precisar que vocês olhem a base.
- Você vai precisar que a gente seja espião? - Pela primeira vez Gabriel não pareceu cômico.
Diana assentiu e todos se olharam.
- Mas, Di, por que o Luís está deixando eles entrarem aqui? O que a gente ganha com isso?
- Não sei, ele não me contou.
Não vacilou para responder. Tinha decidido no momento em que descobriu que não compartilharia com seus amigos. Se fossem pegos poderiam falar que estavam sendo apenas enxeridos, não precisavam saber de um plano maquiavélico, não precisavam se arriscar além do necessário, não por ela, não permitiria. Além disso, não conseguia suportar a ideia dos amigos passarem a olhá-la de forma diferente caso descobrissem a verdade sobre quem era. Diana sentiu os olhos de Rogério ponderarem bem sobre si.
- Se eu descobrir qualquer coisa eu conto para vocês e se vocês descobrirem ...
- A gente compartilha com o grupo, pode deixar. - Disse Gabriel.
- Vocês devem entender que existem riscos, eu não sei falar para vocês o quão baixo ou o quão alto eles são. Sabemos muito por cima sobre o tipo de gente que estamos lidando, por isso quero saber da boca de cada um de vocês se vocês topam?
- Mas é claro, Di! Somos família, sempre vamos nos ajudar. - Nádia disse carinhosa segurando a mão da amiga.
- Você sabe que eu sou profissional em me colocar em confusão de terceiros. Pode contar comigo!
O grupo olhou para Rogério. O homem esfregava a barba com a mão esquerda com um sorriso no rosto e os olhos baixos.
- Eu vou fazer o que com as minhas noites tranquilas? Claro que eu topo.
Diana sorriu livre com a cabeça no encosto do sofá. No fundo do estômago teve a sensação de que seria a última vez que sorriria daquele jeito com aquelas pessoas e torceu para que fosse apenas a ansiedade e não uma maldita premonição.
Estralou os dedos respirando fundo, se fariam aquilo, tinha que inteirar os amigos nos planos antes que a comissão chegasse. Pegou o giz branco usado no taco de sinuca e após algumas reclamações de Gabriel, começou a esboçar na mesa alguns nomes e fatos tomando cuidado para que usasse apenas o recorte de informações necessárias para os amigos
Passaram o resto da madrugada ali, sem mais muitas risadas, estudando o que Diana contava. Todos já sabiam seu papel a ser desempenhado nos próximos meses e as informações a mais iriam trocando em encontros quinzenais naquela mesma cabana, onde fariam uma espécie de base. Diana se orgulhou do que construiu na semana que tivera, ali, enquanto olhava para o grupo exausto, via que tudo se encaixava como uma luva, se antes imploraria por mais tempo, agora não via a hora dos malditos vampiros chegarem.
Despediu de Nádia por último, fechando a porta da cabana. O Sol começava a nascer e o alaranjado já começava a tingir o céu. Rogério e Gabriel já deveriam estar nos quartos, longe do Sol. Os únicos vampiros que Diana não maldizia. Nádia por outro lado poderia desfrutar livremente o amanhecer, teria incômodos pelo sangue vampírico que tomava regularmente, mas ainda conseguiria desfrutar do dia. Entretanto escolhera viver entre os noturnos, a vitalidade e a força além da humana era extremamente seduzente e ninguém poderia negar.
Diana deu as costas e sumiu início de manhã adentro retornando para a Fortaleza.