Esperei e esperei.
Me deitei na cama enorme que havia no centro do quarto, fui várias vezes a porta com a indecisão de abrir ou não abrir.
Fugir ou não fugir.
E se ele estivesse me testando? Se eu saísse, ele estaria me esperando com uma serra elétrica como a do outro dia?
Quando pensava que ia girar a maçaneta, eu a soltava.
O que tinha acabado de acontecer??
Minha mente estava um turbilhão de pensamentos, ora chegava a crer que estava sonhando, então me beliscava, e sentia dor.
Aquilo nunca foi tão real.
O que teria acontecido depois?
Eu quase me deixei levar pelo ar sedutor do momento, eu não desejava aquele homem, claro que era atraente, com suas marcas únicas, mãos enormes e um corpo perceptivelmente divino, cabelos escuros como o véu da noite, olhos sem brilho algum...
Eu. Não. Estou. Interessada.
Nem quero saber o que lhe prometi...
Bufo e deslizo pelo colchão macio.
Ele só está brincando comigo, com o que sinto, com o meu corpo. Colocando minha própria mente e coração contra mim mesma.
Que merda.
Há quanto tempo estou aqui esperando como uma idiota?
Olho para o teto, este quarto está tão organizado que me dá nos nervos, era para ser assim em uma casa onde ocorre esse tipo de coisa?
A porta se abre lentamente, ergo o pescoço para ver quem está ali, e quando vejo Kael, levanto em um pulo só, ele me encara o tempo todo.
Fecha a porta, ainda sem desviar o olhar e vem em minha direção, sua expressão está vazia, seus olhos, sem piedade alguma, e ele não diz nada, apenas se aproxima cada vez mais.
Busco distância mas já estou no limite entre a cama e ele.
— Você. — ele quase geme quando está diante de mim.
Manipulador, insensível e cruel. É isto o que ele é.
Sua mão se ergue e logo sinto seu toque em meu rosto, afastando uma mecha vermelha.
Os mesmos dedos, percorrem uma linha invisível em meu maxilar. Estou em transe novamente, esperando o próximo passo.
Quando sua boca se aproxima, engulo em seco.
— Não toque em mim. — digo, uma raiva animalesca preenche minha voz e ele para no meio do caminho, buscando meus olhos. — Não toque em mim. Não chegue perto de mim, nem sequer ouse olhar para mim. — ergo meu olhar até ele depois de dizer com firmeza cada palavra.
Isso é o sensato. Mas se ele insiste mais um pouco, eu acabaria cedendo...
— O que disse? — ele praticamente sussurra, seus olhos brilham com um tipo familiar de desafio, como se fôssemos amantes prestes a sermos pegos.
— Me deixe em paz. — minha voz se sobressai, enquanto a dele fora apenas um sussurro, um feixe, a minha preenche o ambiente. — Monstro.
Disse para dar ênfase, sem esperar que isso fosse afetá-lo, apenas que o iria fazer se distanciar de mim, me deixar em paz. Causar sua raiva.
A luz que a pouco percorreu seu olhar, some.
Ele é novamente o homem que serrou uma pessoa viva naquele porão.
O vejo travar o maxilar, sua expressão de repente parece mais tenebrosa e temo por minha vida, mas...?
Ele se afasta.
— Pro seu quarto. — ele vira as costas para mim. — Agora.
Acho que ele está ciente do medo que passa, pois mesmo após tentar fugir desesperadamente, ele não me prende, apaga ou puxa.
Ele apenas deixa claro que devo segui-lo.
E que fazer o contrário é a pior decisão do mundo.
Ele segue a frente, a uma distância considerável de mim. Em momento algum olha para trás, nem mesmo para verificar se realmente estou o seguindo.
Sinto meu estômago se revirar, e me sinto apenas como mais uma de suas prisioneiras... talvez eu sempre tenha sido apenas isso, mas havia algo para dizer o contrário, antes, agora seu olhar era severo para mim assim como é para qualquer um.
Para qualquer pessoa que ele deteste e amaria serrar.
Tento esconder o tremor que me percorre e as mãos frias.
Ele é um monstro.
Um monstro incrivelmente atraente, magnético, mas ainda sim, um monstro.
Nenhuma palavra é dita. Nenhum pensamento é exposto, não esperava diferente, mas tive esperança, mínima que fosse, que ele acabaria fazendo algo.
Ele nem mesmo me empurrou encima de uma bancada de vidro.
Chegamos a porta, ainda aberta, ele espera diante dela, seu olhar está em algo acima de mim.
Entro.
Novamente em minha cela particular.
Estou parada diante do quarto solitário, de costas para Kael, quando ele mesmo pergunta:
— É realmente o que pensa sobre mim? — sua voz é áspera, mas há algo nela que... não sei decifrar. Súplica seria algo absurdo demais até para se pensar.
— E o que mais eu poderia pensar? — rebato.
Não estou mais raciocinando, só que um tempo para por toda essa bagunça em ordem, quero paz, mas de alguma forma, Kael faz parte dela.
Não me viro. Ainda não. Não posso, não sinto que minha expressão seria tão indiferente e determinada quanto minha voz.
Não acho que aquele momento no corredor se esvaiu completamente do meu ser.
Não sei quanto tempo se passa enquanto tento organizar meus miolos, mas assim que tenho certeza que não haveria ambiguidade em minha expressão, assim que estou disposta a explicar o termo que usei, quando me viro para trás, ele não está mais lá.
Sou apenas eu.
A porta está fechada.
Suspiro frustada sem saber ao certo com o quê.
Estou preocupada se a minha atitude fará com que ele me torture de verdade, com armas e tudo o mais, a partir de hoje?
Ou que a minha paz, nosso cessar fogo, se encerre a partir do momento que ele fechou a porta.
Olho com outra perspectiva o quarto onde fui instalada, estive tão perto de não estar mais neste local... mas eu realmente conseguiria escapar dele? Tão fora de forma e desinformada quanto o possível.
Me jogo na cama que mais me parece um pedaço de rocha nesse momento.
Eu quero que isto acabe, não suporto mais não saber o que está havendo.
Não suporto mais não ter controle sobre mim mesma.
꧁•⊹٭Kael Antonella٭⊹•꧂
Cada disparo da arma faz ressoar em minha cabeça.
Monstro. Monstro. Monstro.
Lembro-me da primeira vez que fui nomeado com essas palavras.
Em um beco sem saída, de pé ao lado de uma lata de lixo, a última refeição ali, servia de alimento por mais que não estivesse nas melhores.
Meu bairro, o antigo bairro, onde descobri uma casa abandonada depois de perder a minha, fora bombardeado 20 horas atrás, coberto de lama e tudo o que se pode imaginar, sangue, defecação e tantas coisas indecifráveis.
Há mais corpos no chão do que em pé, a lama já não é mais feita de apenas água e terra, mas de sangue.
Rasgo o saco de lixo com um canivete, a última coisa de casa que tenho. Um canivete encrustado com pedras vermelhas.
Não me lembro a última vez que entrei em uma banheira, em um chuveiro.
Com um baque, um grupo de garotos vira a esquina no mesmo beco onde encontrei suprimentos, além da comida na lata, há dinheiro e um pouco de água de um canil, que estavam nos corpos dos soldados esquartejados em três becos diferentes.
Aquele era um de sorte, e eu não podia perder para aqueles outros garotos.
A guerra ensinava coisas absurdas, que nem a dignidade sobrevive a ela, ninguém é gentil quando está de barriga vazia.
E eu estava de barriga vazia há dois dias.
A última coisa que comi, fora um pão queimado e molhado da padaria que agora era pó.
Os garotos se aproximam, em número estão em vantagem, mas se há outra coisa que aprendi, foi que quem vence uma luta, pode viver mais um dia.
Eles se aproximam mais e mais.
Sei que passam fome, e na última vez que escolhi dividir, ganhei hematomas, dores de cabeça e fiquei sem comida por mais alguns dias.
Semelhantes a primatas.
Estão em um grupo de três, dois se parecem tanto que diria com certeza que são parentes de primeiro grau.
— Ei garoto, esse beco é nosso. — o mais magricelo afirma.
Não sei quando passei a ser assim, mas não deixaria que eles me levassem a única comida da semana.
— Que eu saiba você não é presidente — respondo, me pondo a frente da lata de lixo.
O menor do grupo ri.
Em poucos instantes eles estão avançando.
Acerto o máximo de golpes que consigo, a maioria são apenas socos no ar, mas estou me dedicando a pôr força total em cada um deles.
— Me deixem em paz — estou ofegante, mas me afasto dos garotos, devem ser uns 5 anos mais velhos que eu, e o mais baixinho, deve ser apenas 3.
Todos parecem mais velhos quando algo assim atinge.
É apavorante ver crianças lutando dessa forma.
Aperto um pequeno botão no centro do canivete, e a lâmina, muito bem afiada, aparece.
A deixo logo atrás de mim, é uma ameaça ao mesmo tempo que uma defesa.
O mais baixo fica atrás dos irmãos.
O mais alto, olha para as pedras vermelhas encravadas no couro da lâmina.
Seus olhos brilham, o quanto é possível em um mundo em caos.
Eles avançam com mais força. Como se eu não possuísse uma arma a meu dispor.
Meu corpo é jogado na poça de terra, água, esgoto e sangue, sinto meus músculos queimarem.
O canivete cai próximo a mim.
O magricelo olha para ele, e depois para mim.
Pensamos a mesma coisa quando avançamos em conjunto.
Ele está mais longe, eu estou mais perto.
Minhas pernas são puxadas.
— Tudo bem, tudo bem — desespero me invade — p-podem ficar com tudo, tem dinheiro no meu bolso, peguem se quiser, mas por favor, me devolva ele.
Estou suplicando, acreditando no que não existe mais, mas não posso perder aquilo, a minha única fonte de força, a única coisa que me faz crer em tempos de paz.
Estou com o rosto mergulhado em merda, mas isso não importa, sigo pedindo:
— Por favor, me devolva e eu sumo da frente de vocês.
O mais baixo ri.
— ME DEVOLVA!! E-Eu faço qualquer coisa! Só me devolva ele!
Sinto meus olhos arderem, ainda sou alguém tão frágil no fim.
— Isso? — o do meio, que se manteve de fora esse tempo todo, balança o canivete diante dos meus olhos, a lâmina brilha em comparação ao beco escuro.
Assinto.
— Hmm... qualquer coisa em? — ele pondera. — Nah.
Me debato.
— Me devolva! Me devolva!
Ele continua a balançar o canivete diante de mim, mas a uma distância que eu não possa pegá-lo, minhas pernas ainda presas.
Tento esticar minhas mãos calejadas por subir os muros da cidade, mas não é suficiente.
Sinto minha cabeça ser pressionada contra o solo imundo abaixo de mim.
Minhas pernas são soltas, mas agora estão me afogando em sangue puro.
As poucas vezes que volto à superfície, é para implorar que me devolva o presente de Kayin.
Começo a me arrastar, o gosto metálico na boca, e assim que vejo um par de pernas diante de mim, mordo com toda a força que me resta.
— AAAH!!!
Não sei qual deles estava me afogando, mas de volta, me levanto rapidamente, ganhando distância, olho pro canivete.
— DESGRAÇADO!! — o garoto protesta se contorcendo.
— Me dê o dinheiro. — o do meio pede.
— O canivete — rebato.
— Tá bom, tá bom, me dê o dinheiro, e eu te devolvo seu brinquedo — ele debocha.
Tiro o dinheiro do bolso, todos os meus 10 dólares e algumas moedinhas.
Me aproximo devagar, com cautela.
— Aqui, tudo que tenho, me devolva agora — ofereço o braço com o dinheiro na palma.
Ele olha, ri e puxa meu pulso em sua direção.
Não devia confiar, mas o desespero faz coisas abomináveis.
Agora estou preso, a lâmina apontada para meu olho, meu corpo inteiro treme, se de fome ou de pavor, não sei dizer...
O garoto que mordi arranca o dinheiro de minha mão, unhando minha palma no processo.
— Cachorrinho de merda — ele diz, furioso, os dentes a mostra.
Tento escapar.
Ouço sirenes, é minha chance.
Percebendo minha mudança de comportamento, o garoto aproxima mais a lâmina, mas nesse instante já fiz uma investida para baixo.
Sinto a faca perfurar meu rosto.
Um grito me escapa.
Minha visão some, arde muito, dói demais...
Gritos ensurdecedores escapam descontroladamente, tapo o olho atingido com minhas mãos, como se pudesse manter todo aquele sangue no lugar.
As sirenes estão mais perto, mas meus ouvidos chiam.
— F-Foi mal cara — ouço alguém ao meu lado, grito mais ainda, mas parece distante.
Alguma coisa é colocada em meu bolso e passos se afastam até sumir.
Não estou enxergando.
NÃO ESTOU ENXERGANDO.
Tem alguém gritando além de mim, mas quem?
Tudo está tão escuro... sinto o perfume de minha mãe e vou em direção a ele.
Me diga mãe, por que você me deixou...
Seja sincera.
Pare de mentir para mim.
Chega de cantar, só me diga:
Por quê?
Eu a vejo. Estou vendo ela, diante de mim, tudo está branco ao redor.
— Porque você é um monstro, é a razão pela qual eu fui deixada. Eu odeio você, filho.
As paredes antes brancas começam a sangrar.
Sangrar.
É só o que vejo.
Sangue.
Que entra por todas as partes e me sufoca, não consigo respirar, é como se me afogasse em água viscosa.
De repente não odeio mais minha mãe, me odeio, por ter lhe tirado seus sonhos.
Por ser um monstro.
Meu rosto afunda na piscina vermelha.