O Primeiro Passo
— O primeiro pazo... — Enquanto a língua de cobra se enrolava ao pronunciar cada r, Siqui caminhava sobre um murinho de pedras. Sua capa desértica flutuava contra o vento gélido, sacudindo seus cabelos e dificultando seu equilíbrio. — É falar com o prezidente de Kanácion. E, adivinha?
Conforme a seguia, Ander se encolhia mais, batendo os dentes ao se abraçar. Ali, refletia se havia sido uma boa ideia sair com Siqui sob a madrugada de Tauli Ja Bici; estavam há poucos minutos na noite gélida do deserto e já sentia o nariz entupido.
No fim, para onde ela o levava? Nem isso ele sabia; ao ver que fora Atho que sugerira a ideia, com seus pensamentos girando em torno da discussão com Puri – arrepiou-se – e a oportunidade sendo perfeita para distrair-se, aceitara de imediato, seguindo-a sem contestar. Porque sabia que, se continuasse naquela casa minúscula com Puri falando sem parar e Eldrey respondendo desgostoso, não conseguiria segurar o choro.
Você nunca presta atenção, Ander!
A brisa o atingiu; tremeu, tendo de respirar fundo e sacudir a cabeça. Foco, Ander, foco. O que Siqui disse mesmo? Adivinhar?
Sim, deveria adivinhar algo. Então, esse passeio tinha a ver com o plano? Suas sobrancelhas juntaram-se ainda mais e um dar de ombros foi dado ao jogar o nariz curvado para ela. O vendo de cima, Siqui respondeu com um sorriso, exibindo seus dentes pontudos e cessando o andar.
Ela olhou para a frente, lançando o queixo repleto de escamas. E, tremendo ao seguir o olhar de cobra, o mais baixo parou de imediato, deixando a cabeça ir para próximo do ombro junto de uma careta.
Estavam em frente a uma grade de ferro, preenchida por graxa e com uma placa com símbolos os quais Ander não conseguia decifrar, mas sabia pertencerem ao alfabeto vihlâz. Assim que Siqui saltou do murinho de pedras, girando uma chave no indicador e já puxando a divisão, o pequeno se aproximou, ajustando a postura ao esticar-se para enxergar melhor.
Aí, entendeu para onde havia sido levado e o porquê. Seu queixo caiu e seus olhos arregalaram; as pontas de seus lábios foram para cima, e suas bochechas apertaram a visão.
— Siqui! — Segurou-se para não gritar, mordendo a boca ao dar saltinhos. O frio pareceu deixá-lo; um calor eufórico invadiu seu coração acelerado.
O primeiro passo, certamente, era buscar o presidente de Kanácion no aeroporto de Ja Bici. E, naquele momento, era justamente o local que estava atrás de uma Siqui radiante. Como não havia imaginado? Estavam diante de um ambiente quase deserto. Era o fundo do lugar, preenchido apenas por máquinas e pelas cinzas que o vento trazia. Tinha jatos aqui e ali, de cores que variavam entre vermelho, laranja e dourado, de tamanhos que iam de minúsculos a gigantes. Ander nunca havia pisado em um local como aquele – ao menos, não fora de seus sonhos –, e teve de coçar os olhos para acreditar no que via.
Siqui acendeu um lampião e enfiou um cigarro entre os dentes, com o pequeno, ainda maravilhado, no cangote. Os olhos castanhos iluminavam mais do que qualquer chama ao rodopiar pelos arredores, sem deixar detalhe algum passar despercebido. Estava no paraíso? Segurava-se para não piscar. Jatos, ferramentas, pistas de pouso e decolagem: essa era a sua ideia de perfeição, e não seriam grãos de areia que o fariam perder algum elemento.
Se aproximando de alguns jatos, Siqui virou-se para ele, com o brilho do fogo refletindo em seus dentes e uma postura leve, parecendo tão animada quanto Ander. Ela abriu os braços, girando sobre os calcanhares, com a lamparina balançando em uma das mãos.
— Ele dezcerá aqui.
As pupilas de losango foram para a pista, que Ander admirava do início ao fim, com os olhos semicerrados e as mãos juntas na frente do corpo, prestes a saltar.
Siqui enfiou as mãos nos bolsos e deu um salto para cima de uma plataforma, apoiando-se em um dos jatos (bem maior que o de Puri e Ander), vermelho e com o dragão de Vihle grafado na ponta.
— Ezza maravilha — Três batidinhas contra o metal. — irá noz levar para Hebey.
O brilho dos olhos de Ander atingiu o automóvel, emitindo uma nota, tão aguda quanto o tilintar do ferro, a partir de um gritinho. Ao mesmo tempo em que Siqui tirava sua capa, amarrando-a na cintura e revelando suas roupas sujas de graxa – que protegiam seu crachá e um óculos de piloto, semelhante ao do menino –, ele chegava mais perto do jato, encostando suas mãos enluvadas na lata, aproveitando ao máximo a baixa iluminação.
Mais uma chave girou no dedo de Siqui, o movimento não sendo o suficiente para tirar Ander de seu foco. Mas, assim que ela puxou a porta, transformando-a em uma escadinha, ele saltou. O brilhar da lamparina tintilou sob Ander, e Siqui deitou a cabeça em direção ao interior do automóvel.
— Quer entrar?
Antes de uma resposta, ela sumiu de vista em um giro; apenas as chamas sendo visíveis pelo vidro. Ander, em um piscar, juntando os lábios erguidos, entrou, sem tirar a mão do jato. E, quando o fez, por pouco não caiu para trás.
Comparar aquilo com seu jato era, certamente, injusto. Como por fora, ele era imenso. De cara, Ander viu duas poltronas – que aparentavam ser muito macias – uma ao lado da outra, em frente a uma parede, que separava a entrada do restante daquela máquina. De passo em passo, tudo parecia aumentar. Vermelho era a cor do ambiente; dos assentos; das divisórias; da porta do banheiro e do carpete. Havia itens dourados também, como o carrinho de entregas, as bandejas, os pratos e talheres sobre ele. Além disso, claro, dragões de fogo estavam por toda a parte, até mesmo no teto, que era preenchido com a pintura de um.
Pulou quando tudo iluminou e tremeu. As luzes eram amareladas, dando conforto para aquele local que já parecia tão aconchegante. E se tivessem saído de Hebey com esse jato? Tudo teria sido mais fácil. Não conseguia tirar o sorriso besta dos lábios; em toda a sua vida, tinha visto apenas uma ou duas vezes um como esse (pouco podendo admirar, já que era trabalho de seu pai consertá-los). Seu espírito infantil tornou-se ainda mais presente; não perderia a oportunidade de mexer em tudo.
Mas, antes de seus dedos encostarem em uma almofada, deu um pulinho e levou a mão ao peito; o ar pareceu fugir de seus pulmões quando pressionaram seus ombros.
— SIQUI!
Entrementes, a logetáx riu e moveu-se para o lado, tentando acompanhar Ander em seu entretenimento, não deixando de responder a todas as perguntas que ele lhe fez. "Como é trabalhar aqui?", "É legal pilotar algo assim?", "É difícil? Posso tentar?!" Ele se atirou no assento de piloto, com os olhões castanhos disparando para todos os lados e os dedos contornando o manche. Com uma risada nasal, Siqui sentou no de copiloto.
— Infelizmente, não. — Observou o menino tocar em tudo, deixando-o saciar seu interesse. Inclinou o corpo para a poltrona do copiloto, espalhando as cinzas do cigarro após tragar. — Quem zabe depoiz, hein?
A sugestão fez Ander levantar a cabeça, voltando para a realidade. Siqui apoiava o rosto em uma das mãos, enquanto a outra cutucava o cigarro, com um sorriso que mostrava os caninos. Seu crachá, com ela mais jovem na foto, balançava e, ali, Ander reparou que os óculos, que antes estavam pendurados na camisa, se encontravam em meio aos cabelos crespos. Ele ergueu uma sobrancelha; a possibilidade transformando a faísca em seu peito em um incêndio.
— Daqui há algumaz horaz, vamoz eztar no ar — explicou, escorando-se nas próprias cochas, a fumaça atingindo o rosto do pequeno. — Se tudo der certo... — murmurou entredentes. — Aí você pode pilotar. Que acha?
Com os ombros encolhidos, Ander deixou o queixo cair; seus dedos agarrando no fofo da poltrona. Ele jamais deixaria outra pessoa pilotar seu jato. Siqui deixaria ele pilotar o dela, mesmo sem, de fato, conhecê-lo? O fogaréu permaneceu, trazendo-lhe uma ansiedade maior para o almoço do rei – dessa vez, não sendo causada por suas paranoias. Isso tudo era tão incrível! O que Puri disse, mesmo? Naquele momento, esqueceu.
Em um piscar, se jogou para frente, com um sorriso de orelha a orelha esmagando os olhos luminosos.
— De verdade?! — mais uma vez, conteve um grito. A menina cobriu a boca, rindo baixinho e acenando. Isso é... Se deixou cair no assento. — QUE LEGAL!
Mas, assim que Siqui levantou, dando uma batidinha no ombro dele, a felicidade pareceu abandoná-lo; os pensamentos retornaram. Suas mãos enluvadas escorregaram pela poltrona, as sobrancelhas baixaram e os lábios comprimiram-se em uma linha. Curvou-se.
Puri. Recordou-se de seu jato – que sabia ser da palhaça, mas adotara como seu. A fala de Atho invadiu seus pensamentos: dissera que teriam de abandonar o seu querido automóvel, não havendo como levá-lo de volta para Hebey. Para os outros, aquilo era besteira – até mesmo para Puri, ele imaginou. Afinal, quem se importava com aquela lata velha? Ninguém além de si.
Como se as janelas estivessem abertas, o vento passou por sua costela, o tremor havia voltado. Se levantou, apoiando-se no painel colorido, deixando os cachos dourados cobrirem seu rosto cabisbaixo.
Siqui pareceu notar sua ação inusitada. Ela pegou a lamparina, apoiando-se na parede que dividia a cabine de piloto do resto do jato, e se virou para ele. Tirou o cigarro dos lábios, movendo-o em conjunto ao vapor.
— Hum? — Mexeu nas chaves dentro dos bolsos da capa, pegando uma delas ao jogar a cabeça para o lado. — Que foi?
Ander mantinha a postura irregular. De soslaio, com as sobrancelhas unidas, encontrou Siqui. Não deixou de tocar no almofadado do assento; o entorno dos dedos tão brancos que a logetáx segurou-se para não aproximar-se e perguntar mais uma vez.
Todavia, antes, Ander muxoxou.
— Não posso. — Abraçou o corpo, passando a analisar suas galochas sujas; seus óculos resvalaram pelos cabelos bagunçados.
Siqui torceu o nariz, e ele seguiu:
— Meu jato. — É claro que não falaria sobre Puri, Siqui não tinha que ver com isso. Não, Ander, foco: o jato é o principal problema. Os olhos caídos voltaram para ela. — Eu... Eu sei que Atho disse que não teria como nós buscarmos ele... — Coçou a nuca, mordendo o lábio.
Em um salto, sua cabeça foi para cima. Ele parou de imediato. O foco, que ia de Siqui ao chão, se estabeleceu na garota, e sua boca abriu.
Mais uma vez, esqueceu-se da palhaça. A euforia retornara.
— Por isso...
Uma engrenagem estralou em sua mente, e uma luz cintilou no fundo de seu cérebro, dando brilho a faísca que tinha apagado. Junto do disparar de seu coração, ele deu um pulinho, que fez Siqui encolher.
— É isso! — exclamou, chegando perto da logetáx. — Eu vou no meu jato, e vocês vão nesse!
Ander estava prestes a esbarrar em Siqui de tanto desespero, e a menina segurou em falar o porquê de isso possivelmente não dar certo. Já havia discutido com Atho e Musta, quando o padrinho de Eldrey explicou o plano para os dois Nativos do Fogo: ela mesma havia sugerido essa ideia. Porém, Siqui, como uma logetáx, não enxergava tão bem sem luz solar, assim como os lidaguw, e Ander teria de substituí-la nesse horário.
Além disso, havia tantos outros motivos do plano do pequeno falhar – Siqui conseguia contar, pelo menos, três – e a menina quase respondeu-o. Mas, ao lançar um sorriso amarelo, antes que pudesse pensar em alertá-lo, um som de ferro contra ferro invadiu o jato e, em um pulo simultâneo dos dois, a logetáx deixou o cigarro cair dos lábios.
Os dois morderam a boca e entreolharam-se, contendo seus corações de saírem e correrem pelas cinzas do chão da capital. Pisando na bituca, Siqui encostou ainda mais o corpo na parede e, com os dentes juntos e sem tirar o foco de Ander, foi, na ponta dos pés, até a cabine, desligando o jato em um girar de chave. Ander engoliu em seco e começou a proferir uma reza para seus santos, caminhando, em passos de formiga, até a saída.
E, quando a logetáx apareceu atrás dele, fechou as mãos em punhos e revirou os olhos, enquanto a respiração de Ander restabeleceu-se em um suspiro.
Porque, ao saltarem do jato e deixarem suas roupas sujas de poeira, viram uma Puri – com trapos empilhados nos braços – sacudindo o portão.
E, assim que a palhaça os viu, levou as mãos ao redor da boca, com um sorriso no rosto pintado.
— Desculpa atrapalhar o casalzinho! — Apoiou o corpo no ferro, movendo apenas o indicador na direção de Ander.
A bile subiu pela garganta do pequeno, e suas mãos contornaram a alça de sua bolsa. Baixou a cabeça em um morder de lábios. Ela tinha que aparecer, não tinha? Coçou os olhos.
— Preciso do baixinho para experimentar as roupas que costurei, que ele vai usar no almoço — continuou Puri em um sopro, parecendo não contente pela tarefa; estava com o cenho franzido e a boca curvada, aparentando, por suas tranças bagunçadas, ter acabado de sair de uma discussão. Com um revirar de olhos, confirmou as suspeitas: — Ordens do Athinho... aquele desgraçado.
Siqui pareceu ter ouvido, pois um estouro foi emitido quando ela levou a porta do jato para baixo e, com desdem, andou até o portão, balançando os quadris até destrancá-lo. Ander, como ela, tinha um v no meio da testa e rugas que não condiziam com seu rosto jovial. Ele olhava de cima a baixo para Puri, com os lábios curvados e as mãos debaixo dos sovacos.
Quando saiu, ficando ao lado da palhaça, agradeceu, em um sussurro, à logetáx pela visita, e, mais uma vez, o metal soou; Siqui deu de costas para os dois, e Puri olhou para o menino com um sorrisinho que o fez estremecer.
E, ao caminhar iniciar, a palhaça deu um salto para o lado dele, passando o braço pelos ombros tensos. Passara às últimas três horas sem conversar diretamente com ele e, sem querer admitir, fez falta.
— E aí? O jato é legal?
O batom vermelho contornava os lábios puxados de uma Puri curiosa. Sempre que Ander via algo que gostava, ficava conversando sobre o assunto por horas e horas, comentando com termos que a palhaça nem ao menos conhecia, mas fingia compreender. Era... bom ver o garoto tão confortável ao seu lado. E, depois da briga no bar, iria ser um alívio ouvi-lo.
Mas, dessa vez, algo parecia estar errado. Depois da pergunta, nem uma reposta foi dada: ele se moveu para o lado ao baixar o braço de Puri, o ritmo do andar acelerando; os olhos presos no chão negro e os dedos enrolando a alça da bolsa.
Puri parou por um instante, se afastando como o desejado. Ali, analisou ele se afastar sem nem, ao menos, aparentar sua ausência.
O quê?
O silêncio que prevaleceu entre os dois foi suficiente para preencher a cabeça de Puri com suposições. Nem uma palavra fora proferida, e, tampouco, um olhar fora retribuído. Mais cedo, pensou, havia perdido o controle e... Certo, tinha xingado-o. Mas, ele agiria dessa forma? Não... Não foi nada de mais. Ele jamais ficaria daquele modo por uma crise dela. Eram amigos há anos – Ander já havia suportado-a em momentos piores, reagido com neutralidade a xingamentos anteriores –, e ele nunca havia ficado assim; estava ignorando a existência da garota por completo, desde, reparou, o momento em que saiu do esconderijo dos camaleões. Ander se comportava de maneira infantil, sim – ela também –, mas aquilo não era uma birra qualquer.
Não, aquilo nem ao menos era uma birra.
Ele estava, realmente, chateado. Mas, pelo que seria? Não acreditava ter sido apenas pelo seu surto no bar.
Aí, teve de piscar. Por alguns instantes, o nome de Siqui ecoou em sua mente. E se ela tivesse dito algo ruim de Puri para Ander? Siqui... Mordia o interior da bochecha, rodopiando o dedo pelos botões das roupas que costurara.
A logetáx claramente não gostou dela, e não fazia questão de disfarçar. Puri retribuia o desgosto, mas, até o momento, havia guardado todo o desagrado para si.
Não poderia ser. Teria Ander se irritado com a palhaça a partir de influência de Siqui? Mesmo achando que ele a defenderia em uma situação dessas, mantendo-se ao seu lado, o garoto pareceu se dar muito bem com a mulher-cobra, e a briga poderia ter colaborado para um rancor...
Ao Puri ranger os dentes, as mãos enluvadas, que apertavam as roupas contra o corpo, amassaram mais o tecido. Sentiu o interior de sua boca arder, o botão ameaçar soltar. Aquela cobra... Chutando as pedrinhas que eram ignoradas por Ander, passou a planejar de que forma iria xingar Siqui na próxima vez que a visse. Se ela não iria fingir gostar de Puri, a palhaça tampouco. Eldrey... ele poderia ensiná-la a xingar em vihlâz... Talvez a desse vantagem! Sim, era uma boa ideia. A cada quadra, mais um xingamento era adicionado para sua lista mental.
Mas, mesmo esforçando-se para distrair-se, quando a rua onde estavam hospedados se aproximou, o corredor pouco iluminado sendo caminho, Puri não segurou. Coçava o braço por dentro da manga, o interior de suas bochechas ardia por suas mordidas, pelo tempo que estava calada, e o coração palpitava de maneira que, se não saciasse sua dúvida, gritaria tão alto que qualquer Nativo do Fogo iria escutá-la. Ander, Ander, Ander... Por que ele não diz nada, cacete?! Viu seu amigo seguir olhando para os pés...
Acelerou o passo e puxou a alça da bolsa de Ander, que parou em um tropeço; por pouco, seu nariz não atingiu as cinzas do chão.
Por um tempo, conforme seus dedos enluvados se afastavam do pequeno, Puri refletiu se deveria dizer algo, e, se sim, o que, de fato, diria. Porém, seus pensamentos pouco duraram: as palavras já saltavam de sua garganta, que aquecia perante ao coração disparado.
Tinha de saber o porquê.
Ander pigarreou, equilibrando-se antes de virar-se. Ele pigarreou, percebeu.
— Cui...
Aquela...
— Foi Siqui, não foi? — Puri interrompeu.
Os ombros de Ander subiram, suas escápulas se uniram. No instante em que respondeu, Puri quis cobrir os lábios – talvez tivesse falado alto demais. Voltou a apertar os botões. Ele iria dizer algo. Iria, mas ela o interrompeu.
Mas pouco pôde se importar. Quando viu o rosto do amigo, a altura de sua voz era irrelevante, sua ação pouco importava.
Estava prestes a arrancar aquele botão.
Por baixo dos cachos, em um virar de Ander, Puri notou a luz do poste sendo refletida em pequenas partículas de água que se formavam no canto dos olhinhos caídos.
Não sentiu sua boca entreabrir, nem sabia dizer quando abraçou, ainda mais forte, as roupas, ou, ao menos, falar em que momento elas passaram a protegê-la do medo.
Por pouco não sacudiu a cabeça. Nunca havia... Por que o interior de seu peito parecia latejar? Por qual razão estava...
Por que seu corpo tremia com a possibilidade daquele choro ser sua culpa?
E, ainda mais...
Por que sentiu vontade de rir?
E ela riu; um riso nasal soou junto da imagem de Siqui, invadindo seus pensamentos, da vontade avassaladora de socá-la. O apertar em seu interior, por pouco, não a fez voltar para o aeroporto, apenas para encontrá-la e...
Siqui havia feito Ander chorar.
Sentir culpa? Não, aquilo não era culpa de Puri. Como poderia ser?
Estalou a língua e, em um sacudir das tranças, viu Ander mover-se para trás, sem deixar de observá-la. Os lábios dele tremiam, junto das mãos que agarravam os próprios braços.
Mas ela deu um passo a frente.
— Ela que fez você ficar bravo comigo, não foi?
As sobrancelhas do menino se juntaram; uma lágrima escorreu dos seus olhos ao queixo. Ele abriu a boca, mas ela rangeu os dentes.
— Eu também não gosto dela, tá legal?! — respondeu, prestes a gritar. — Mas, você... — Seus dedos transpiravam por dentro do tecido. As roupas pareciam estarem prestes a rasgar, aqueciam o torço que encostavam, emitiam um calor que fervia a mente turbulenta. — Você ficou no lado dela? — Ander havia traído-a.
Ander preferiu confiar em Siqui.
Por que ele havia deixado ela de lado?
Sempre, sempre ela. Era ela quem era deixada para trás e que recebia risadas pelas costas.
Era engraçado, não era? Rir de sua desgraça. Talvez fosse por isso que ela estava rindo.
E, céus, aquilo era hilário!
A cada risada, apertava mais as peças contra a barriga.
— Eu... — Um sorriso. Ergueu-se, encontrando um Ander que parecia estar prestes a rasgar a alça da bolsa. — Eu não sabia que você era...
Bastou um movimento para que a graça tornar-se uma garganta seca e lábios curvados.
Ander amassou seus cachos.
— Puri, CALA A BOCA!
O apertar contra o corpo diminuiu. A posição curva ajustou-se; as tranças roçaram em seu pescoço.
Silêncio.
Vazio.
O fogo do lampião crepitou. O som tomou conta dos ouvidos de Puri.
Aquele som... As chamas refletidas em um olhar...
Foi a vez dela recuar. Foi sua vez de entreabrir a boca, observar o garoto, pela primeira vez, mandá-la calar-se.
Em um piscar, os olhos azuis arregalaram-se.
O botão perdeu-se no negro das cinzas.
O calor. A dor, que invadira um local próximo ao seu coração, retornou. Sentiu o machucado de seu braço, mas o peito latejava como um ferimento mais profundo do que a facada que levara.
Ander se multiplicava perante a visão marejada. O brilhar das brasas acompanhou uma lágrima, que seguiu o mesmo percurso do botão.
Piscou; os cílios grudando simultaneamente ao olhar de Ander atingi-la.
Teve certeza que manchou suas luvas de rímel.
A culpa...
Já havia sentido-a anteriormente. Mas, dessa vez, parecia pior, porque, ali, com um Ander decepcionado, tinha certeza de que ela a pertencia.
Não era culpa de Siqui, tampouco de Ander...
— Nã-não, não! — soluçou o pequeno, sacudindo a cabeça. Tentou conter um grito. — Tira Siqui disso, Puri! — Suas botinas afundavam na areia. — Foi você... Eu tô bravo com você, caramba!
Era dela.
Inteiramente dela.
E Ander confirmou.
Ele soluçou mais uma vez, usando o pulso para secar-se. As narinas iam de cima para baixo, escorrendo enquanto ele expirava. Depois de um último olhar, o castanho escuro estando avermelhado, os cachos voltaram a cobrir todo o rosto inchado, as mãos esconderam toda a frustração que Puri, pela primeira vez, vira estampada em Ander.
E fora estampada por sua causa.
Ela... Seu objetivo nunca fora machucá-lo.
Mais uma vez, o riso subiu por sua garganta, mas fora engolido, raspou a garganta: era estúpida. Estava sendo terrível.
Chutou uma pedrinha ao se aproximar da figura encolhida.
Sentiu as bochechas úmidas ao entrelaçar seu corpo no de Ander, a maquiagem colorida manchando as roupas dele.
Conseguia ouvir o choro, notou as falhas no respirar. Fingiu não estar com vontade de fazer o mesmo.
— An... — O nariz de palhaço atrapalhou seu expirar. — Ander.
Desenrolou-se do amigo, movendo os dedos enluvados para o rosto pardo. Quando viu os olhos inchados e os lábios curvados; o loiro dos cachos cintilando sob aquela única fonte de luz, não conseguiu sorrir.
Tentou, tentou demonstrar que estava calma, mas não estava.
Tão acostumada a rir em momentos controversos, ali, agora, a ânsia a deixou. Tinha vergonha; vergonha pelo que fez, timidez em mostrar-se, pela primeira vez, derramar uma lágrima diante de Ander.
Mas não recuou.
Era o único momento em que ela poderia desculpar-se.
Então, respirou.
— Eu sinto muito. — Não gaguejou, mas, agachada, teve de mudar o foco de visão; era doloroso observá-lo naquele estado. — Eu fui péssima, Ander... Eu...
Não esperava ser perdoada.
Mas, sem justificativas vindas dela, Ander a abraçou. Quando as casinhas que focava triplicaram, o marejar retornando, sentiu os braços a contornarem.
Ele quase rasgou a capa; os dedos apertavam Puri, como se ela tivesse chance de escapar; como se ele não quisesse que ela escapasse.
Ander não tinha problema em gaguejar.
— T-tá.
Mais uma gota atingiu o solo. Ergueu os lábios. Voltou a encará-lo.
E ele também estava sorrindo, mesmo que serenamente.
Expirou. Porém, assim que iria impulsionar-se para levantar, passar os braços pelo menino e caminhar em um saltitar para casa de Atho, já se preparando para ouvir suas histórias sobre aviões, ele puxou a manga de sua capa.
Os olhos azuis flutuaram na escuridão até pousarem naqueles que o observavam. Segurou-se para não erguer uma sobrancelha, para não perguntar o que seria; não deixar sua imperatividade interrompê-lo outra vez.
E, por sorte ou azar, ele já afastava os lábios; a boca úmida ameaçando a, a qualquer momento, emitir sua fina voz.
Em um jorrar do vento, admitiu em um sopro:
— Não foi só a discussão.
Puri deixou as tranças deslizarem para direita e franziu o cenho. Ele deu um passo para trás, e ela se virou por completo. Os olhinhos encontraram as botinas imundas, e os dedos circularam a bolsa de couro desgastado.
— E-eu... — Engoliu o muxoxo. O nariz entupido mostrou-se presente, e ele fitou-a de novo. — Puri, você pode, po-por favor, hum... Não fazer aquelas brincadeiras comi-comigo e Siqui?
Teve de piscar repetidas vezes. Brincadeiras... Puri fazia tantas que nem ao menos sabia de quais ele falava. E, notando sua confusão, ele sacudiu a cabeça.
— "Essa é das suas", "casalzinho"... — sussurrou. — Sabe, eu... não gosto. — Em um pequeno salto, seu coração pareceu disparar. — Nã-não estou dizendo que gosto dela, pelo contrário! — O pavor encontrou Puri, e, por pouco, ela não soltou uma risadinha. — Eu só não me sinto bem com essa coisa de romance. Me-me deixa... mal.
Ao notar os lábios curvados e as sobrancelhas curvadas dele, o mínimo sorriso de Puri desapareceu. Admitia: não entendeu por completo. Porém, se era para ele se sentir bem...
Finalmente, contornou-o com um braço, o puxando para perto em um cascudo.
— Tá — brincou em um riso nasal, repetido por Ander, que coçou o nariz. — Mas, agora... — Um passo e, depois, mais um; a casa de Atho estava logo a frente; a rua seguia vazia perante a escuridão. — Me conta sobre os jatos.
Com carinho, os olhinhos cintilantes, que se apagavam pelo afastamento do lampião, não saíram de Puri. Dessa vez, estavam acompanhados de um sorriso que, em um pulo, deu espaço para uma descrição completa e detalhada do aeroporto de Tauli Ja Bici, com comentários únicos de Ander, os quais Puri acalmava-se ao ouvir.
E agradecia por poder escutá-los.