Eu sabia que ele estava ali, quase ao alcance, sentindo o cheiro do meu medo, ouvindo cada batida descompassada do meu coração.
O rosnado atrás de mim se intensificou, mais grave, mais furioso. Ele estava prestes a me alcançar. Eu podia sentir o calor de sua presença se aproximando, o som de suas garras cortando o ar.
O chão coberto de folhas úmidas cedeu sob meus pés, e eu cai de joelhos, a dor irradiando pelas pernas. A criatura estava sobre mim antes que eu pudesse me levantar, e quando olhei por cima do ombro, vi sua sombra gigantesca erguida contra a escuridão da floresta. Seus olhos brilhavam como brasas, refletindo uma agressividade monstruosa.
Eu sabia que esse era o fim. Não havia mais para onde correr.
Apenas rezava para ser uma morte rápida. Rezava para que Davian tenha encontrado Eli. O tempo que consegui tinha sido suficiente?
Ele abaixou-se, preparando-se para saltar. Suas garras estalaram na madeira de uma árvore ao lado, e o som soou como o prelúdio de meu fim. O tempo pareceu desacelerar, e eu sentia o chão frio e úmido sob minhas mãos, o cheiro da terra e da vegetação se misturando com o fedor bestial da criatura.
Antes que pudesse reagir, a besta avançou, seus músculos tensos prontos para me derrubar. Eu fechei os olhos por um breve segundo, esperando pelo impacto que rasgaria carne e quebraria ossos.
Então minha vida terminaria assim...
Mas ele não veio.
Em vez disso, o som de um impacto violento ecoou pela clareira, seguido de um rosnado ainda mais feroz. Eu abri os olhos a tempo de ver uma sombra chocando-se contra a besta com uma força avassaladora. A criatura foi lançada para o lado, caindo desajeitadamente no chão, enquanto outra figura — um lobo, mas diferente de qualquer um que eu já tinha visto — se erguia sobre ele.
O lobo era majestoso e imponente, sua pelagem era escura, marrom talvez?Seus músculos sob a pelagem grossa tremendo com a força da colisão. Ele avançou sobre a criatura com uma ferocidade que fez meu coração parar por um segundo. Seu rosnado era quase uma declaração de guerra, e seus olhos... havia algo neles. Algo que eu já tinha visto antes
Aqueles olhos. Eles não eram selvagens como os do amaldiçoado. Eram inteligentes, cientes. E, por um momento, o medo que eu sentia foi substituído por uma estranha sensação de fascínio.
A criatura se ergueu rapidamente, rosnando com ódio, mas o lobo não hesitou. Eles se enfrentaram como predadores em pé de igualdade, garras e presas trocando golpes com uma rapidez assustadora. Eu mal conseguia acompanhar os movimentos, mas sabia que aquela luta era minha única chance.
Eu me empurrei para longe da batalha, ainda de olhos fixos na lobo marrom que havia, de alguma forma, aparecido para salvar minha vida.
Meus instintos gritaram para que eu fugisse, e, antes que pudesse processar completamente o que havia acabado de acontecer, já estava correndo. O som dos rosnados ferozes atrás de mim se misturava ao batimento selvagem do meu coração, mas eu não olhei para trás. A batalha entre os lobos ainda ecoava pela floresta, mas eu sabia que precisava encontrar Eli. Não podia perder mais tempo.
Havia uma chance de escaparmos. E eu não a desperdiçaria.
Minhas pernas doíam com o esforço, os pulmões queimando enquanto eu corria em direção ao lugar onde o havia deixado. Cada passo parecia um esforço monumental, o medo ainda pulsando na minha mente, me impulsionando a continuar, mesmo que a exaustão tentasse me dominar.
Os galhos arranhavam minha pele, e o frio do início do inverno começava a se infiltrar mais fundo em meus ossos. O ar estava carregado de umidade, e o cheiro terroso das folhas úmidas misturava-se ao fedor de sangue e suor que eu tentava ignorar. Eli estava ferido... ele precisava de mim.
Por favor que não seja tarde demais.
Tentei lembrar o caminho que tinha tomado, tentando calcular onde ele estaria. Não podia ser longe, mas a escuridão e a confusão da fuga faziam tudo parecer mais distorcido. O medo que senti ao deixar Eli para trás ainda apertava meu peito, e cada segundo que passava parecia uma eternidade.
Eu tinha corrido tanto assim?
Meu coração começou a martelar mais rápido enquanto eu me aproximava do local onde o tinha deixado. A clareira entre as árvores parecia diferente, quieta demais, como se a floresta estivesse prendendo a respiração, esperando por algo terrível. O silêncio era opressor, e um arrepio percorreu minha espinha.
Quando cheguei ao ponto exato onde Eli deveria estar, tudo parecia errado.
Não havia sinal dele.
— Eli? — Minha voz saiu fraca, mal mais que um sussurro, enquanto eu olhava desesperadamente ao redor.
As folhas ao redor estavam reviradas, o chão remexido como se algo tivesse lutado ali. E então vi: manchas escuras de sangue, espalhadas por entre as folhas úmidas. O cheiro chegou ao meu nariz um segundo depois.
Meu estômago revirou, e senti o chão tremer sob meus pés. Não, não pode ser.
Avancei, ajoelhando-me sobre o lugar onde ele estivera, o sangue fresco ainda brilhando à luz tênue que conseguia atravessar as copas das árvores. Meus dedos trêmulos tocaram as manchas, e um desespero crescente tomou conta de mim.
— Eli... — Sussurrei, mas agora não havia ninguém para me ouvir.
Foi então que meus olhos encontraram algo caído perto das raízes de uma árvore. Uma faca. A lâmina estava manchada de sangue, a mesma faca que Eli carregava consigo.
Eu a peguei com mãos trêmulas, o peso familiar dela parecendo ainda mais pesado agora, carregado de medo e incerteza. Meu coração apertou no peito, o pânico me sufocando.
Ele não está aqui. A realidade me atingiu com força, e a faca em minhas mãos parecia ser a única coisa que restava de Eli. O sangue no chão e os sinais de luta, indicavam que ele resistiu. Havia muito sangue, mas onde ele estava?
Levantei-me rapidamente, olhando ao redor, tentando encontrar qualquer sinal, qualquer pista de para onde ele poderia ter ido, ou pior, para onde poderia ter sido levado. O sangue estava espalhado em um rastro fraco que se perdia mais adiante, entre as árvores, mas não havia pegadas claras, nada que me dissesse o que tinha acontecido.
Ele não iria simplesmente deixar a faca para trás.
Um nó apertado formou-se na minha garganta, e a culpa me atingiu com uma força esmagadora. Eu o tinha deixado. Deixado para atrair o perigo para longe, mas agora... agora ele se fora, e tudo o que me restava era um punhado de sangue e a faca abandonada.
Com a faca firme na mão, levantei o olhar para a escuridão da floresta, tentando controlar o medo crescente. Eu não posso perdê-lo. Não deixaria nenhum amigo para trás.
Respirei fundo, tentando encontrar clareza em meio ao pânico. Eli ainda está vivo. Ele tem que estar.
Com o coração ainda acelerado e a mente lutando contra o pânico, fechei os olhos por um instante, tentando respirar fundo.
Eu preciso me concentrar.
O ar estava denso com o cheiro da terra e das folhas úmidas, mas também havia algo mais. O odor metálico do sangue de Eli ainda pairava no ambiente, junto com outros cheiros estranhos e eu sabia que, se focasse o suficiente, poderia segui-lo.
Preciso encontrá-lo...
Meus sentidos, já acostumados à escuridão e à floresta, começaram a se ajustar. A brisa fria trouxe consigo uma nova onda de aromas, e eu consegui captar o rastro que buscava. O sangue de Eli tinha deixado uma trilha quase imperceptível, misturado ao cheiro de suor e medo. A trilha seguia para o norte, na direção das árvores mais densas.
Me movi com cuidado, tentando abafar os sons dos meus próprios passos enquanto me guiava por aquele rastro invisível. Cada folha que eu pisava parecia amplificada, o som ecoando em meus ouvidos, mas ainda havia esperança. O sangue indicava que ele estava ferido, mas vivo, e isso me impulsionava para frente.
À medida que avançava, meus sentidos pareciam se aguçar ainda mais. O som dos galhos balançando ao vento, os pequenos movimentos dos animais noturnos, tudo parecia mais claro. Eu estava perto.
Mas então... tudo mudou.
De repente, a floresta ficou estranhamente silenciosa. Os sons sutis da vida noturna sumiram como se tivessem sido engolidos pela escuridão. Até o vento parecia ter parado de soprar. Um calafrio percorreu minha espinha, e meu corpo todo ficou tenso. Algo não estava certo.
A trilha de sangue de Eli ainda estava ali, mas eu sentia que não estava mais sozinha. Meus olhos se moveram freneticamente ao redor, procurando qualquer sinal de movimento nas sombras. Havia algo aqui.
Saindo das sombras entre as árvores, um lobo enorme apareceu, mas diferente do outro que eu já tinha visto. Sua pelagem era uma mistura fascinante de cinza-escuro e prateado, com manchas escuras quase imperceptível que se destacavam sob a luz fraca da lua. Seu pelo parecia ondular com o vento, mas o que realmente chamou minha atenção foram seus olhos — de um azul pálido, quase congelante, que pareciam atravessar minha alma.
Ele não era como o lobo marrom que tinha enfrentado a besta antes. Este lobo... havia algo de diferente nele, algo que me fez hesitar, como se ele fosse mais do que apenas uma criatura da floresta. Havia uma aura de poder ao seu redor, um peso na forma como ele me observava, imóvel, apenas fitando-me de longe, como se estivesse me estudando.
Eu segurei a faca de Eli com mais força, mas sabia que seria inútil se o lobo decidisse atacar. Por que ele estava ali? O que ele queria? Meu corpo inteiro tremia, mas não de medo. Algo na presença daquele lobo parecia... ancestral. Como se ele carregasse consigo um conhecimento profundo, antigo, algo que eu não poderia compreender.
E então, ele deu um passo à frente, e a floresta ao redor ficou ainda mais silenciosa, como se o mundo esperasse pela sua próxima ação.
O lobo prateado avançou mais um passo, e de repente todo o ar ao meu redor pareceu pesar. O silêncio profundo da floresta foi rompido por um rosnado baixo e ameaçador. Meu corpo congelou, o som reverberando no meu peito como um aviso, mas não havia tempo para hesitação. Ele estava se preparando para atacar.
Com um movimento ágil, o lobo saltou na minha direção. Tudo aconteceu em um piscar de olhos — eu me joguei para o lado, rolando pelo chão enquanto sentia o vento causado por suas garras passando perigosamente perto. O impacto dele ao tocar o chão fez as folhas ao redor voarem, e eu, cambaleante, me levantei com a faca de Eli em mãos.
Meus sentidos gritavam para que eu corresse, mas algo em mim se recusava a ceder.
Eu tinha que lutar.
O lobo girou rapidamente, os olhos azuis brilhando de fúria. Ele atacou de novo, desta vez mais rápido, e eu apenas consegui erguer a faca no último segundo, bloqueando o golpe. A força do impacto foi devastadora, e a faca mal conseguiu deter o ataque. Suas garras rasgaram meu ombro, a dor aguda me fazendo perder o fôlego por um momento, mas eu continuei em pé.
Eu tinha que continuar.
Ele recuou, preparando-se para um novo ataque. O sangue escorria pela minha pele, mas meus pensamentos estavam claros. Quando o lobo prateado avançou novamente, eu consegui desviar por um triz, girando o corpo com o máximo de força e precisão que pude reunir. A faca de Eli cortou o ar, encontrando a carne do lobo com um som surdo. Um grito animalesco escapou de seus lábios, e ele recuou, o sangue escorrendo de sua lateral.
Por um momento, o lobo hesitou, os olhos azuis fixos nos meus, agora cheios de dor e fúria. Eu sabia que isso não o deteria por muito tempo. Ele lambeu a ferida com um rosnado profundo, as patas arranhando o chão com raiva, mas antes que ele pudesse avançar novamente, outro som invadiu o silêncio da floresta.
Um grito. Um grito humano, distante.
Davian.
Eu me virei instintivamente na direção do som. Meu coração disparou novamente, o medo por ele superando o perigo imediato do lobo. Eu precisava encontrá-lo. O lobo prateado hesitou mais uma vez, como se estivesse esperando por algo, mas eu não podia esperar. Sem pensar duas vezes, comecei a correr, o grito de Davian ainda ecoando na minha mente.
Eu sabia que estava me afastando do lobo, mas a voz de Davian era tudo o que importava naquele momento. Eu não falharia com ele também. O lobo prateado que fosse para o inferno.
A cada passo, a escuridão se tornava mais espessa, e o cheiro de terra e folhagem se misturava ao do sangue. Meu corpo estava em chamas, mas a única coisa que eu conseguia pensar era em encontrá-lo.
Ao emergir de um emaranhado de arbustos, vi Davian lutando contra vários lobos. Ele estava cercado, seu rosto suado e manchado de terra, e a expressão de terror em seus olhos cortou meu coração. Os lobos, ágeis e ferozes, atacavam em grupo, e eu podia ver que ele estava se esforçando para se manter de pé. Um deles mordeu sua perna, e o sangue escorreu em um fluxo contínuo, manchando a terra ao seu redor. Estavam brincando com ele.
Meu instinto gritou, e eu me lancei para frente. O que eu poderia fazer contra tantos? Minha mente girou em busca de uma solução, mas antes que eu pudesse formular um plano, um dos lobos se virou em minha direção, rosnando com a ferocidade de um predador faminto.
Aterrorizada, eu hesitei, mas não podia deixar Davian à mercê das feras. Com um grito, tentei me aproximar dele, mas antes que eu pudesse alcançar, um dos lobos me derrubou com um golpe brutal. O impacto me fez cair no chão, o ar sendo expelido de meus pulmões enquanto a dor percorria meu corpo. Rolei para longe, sentindo as folhas e a sujeira arranharem minha pele, até que minhas costas colidiram com a borda de um barranco.
O lobo se aproximou, seus olhos brilhando em um dourado predatório, e ele rosnou, mostrando os dentes afiados, prontos para o ataque. O pânico me envolveu como uma onda, e pensei que meu fim finalmente havia chegado.
Eu não ia morrer assim. Uma parte de mim ainda lutava, mas outra parte já havia desistido. Uma pessoa não poderia ter tanta sorte em uma única noite não é?
O lobo estava pronto para saltar em mim, então, em meio ao caos e ao rosnado profundo dos lobos, dos gritos de Davian, um som diferente cortou o ar. Um rosnado que não parecia vir de um simples animal, mas de algo mais. Algo poderoso.
Naquela fração de segundo, senti uma presença familiar se aproximando. Meus olhos se abriram, e uma sombra imensa surgiu cobrindo meu corpo. O novo lobo era colossal, seu pelo negro como a noite, e a intensidade de sua presença me fez sentir um calor no peito, uma conexão inexplicável. Ele era maior do que todos os outros lobos, seus músculos se movendo sob a pelagem espessa enquanto avançava.
O lobo negro rosnou com uma autoridade que fez os outros hesitarem. Era como se, naquele momento, a floresta inteira tivesse parado para ouvir. Os lobos ao redor se afastaram um passo, rosnando, mas ele não hesitou. O rosnado dele reverberou através da noite, ecoando como um trovão que enviou calafrios por toda a minha espinha. Era como se eles estivessem se comunicando.
Ele desceu o monte de terra em que eu me apoiava, seu corpo poderoso passando ao meu lado. Enquanto observava, percebi que o lobo negro não estava lá para atacar, mas para me proteger. Ele se colocou entre mim e os outros. Uma onda de segurança me envolveu, como se o lobo estivesse me envolvendo em um manto de proteção, afastando o perigo. Me apoiei mais completamente no barranco, minhas costas encontrando raízes expostas que machucaram minha pele.
Senti a dor intensa na lateral do meu corpo, o sangue escorrendo do meu ombro e a respiração se tornando cada vez mais difícil. Meu tornozelo parecia estar pegando fogo. Um gemido de dor escabou dos meus lábios. As costelas, provavelmente quebradas, gritavam por socorro, e eu percebi que a energia que me sustentava estava se esvaindo.
Respirar estava se tornando um esforço monumental, o ar parecia descer rasgando minha garganta, então tossi e ao levar minha mão a boca ela voltou manchada de sangue.
O lobo negro olhou para mim, e naquele momento, eu soube que ele era diferente. Algo em seus olhos, uma profundidade que falava de sabedoria e compreensão, me fez sentir que eu não estava sozinha. Uma conexão profunda se formou entre nós, como se ele estivesse carregando não apenas sua própria força, mas a minha também.
Mas era difícil manter os olhos abertos, e a dor se tornava insuportável. Senti o mundo girar à minha volta, as sombras dançando antes de se tornarem escuridão total. Um sorriso involuntário se formou em meus lábios enquanto me deixava desmaiar. Não importava se a morte me aguardava. Eu estava feliz por vê-lo uma última vez, por sentir essa conexão que não podia ser desfeita, mesmo em meio ao caos.
A escuridão me abraçou, e enquanto a consciência se esvaía, a última coisa que ouvi foi o rosnado do lobo negro, um som que prometia proteção e força em um mundo cheio de incertezas.