Na manhã seguinte, logo que trocou as crianças, Rafa foi a primeira a entrar na cozinha. Apareceu com um dos celulares pendurado na orelha esquerda, colocando os filhos um a um em suas cadeiras de alimentação.
- Eu sabia que esse negócio de shopping ia dar uma dor de cabeça danada. Todo mundo sabe que quem trabalha naquele lugar, já tem passe livre pro céu.
Ela falava com um dos assessores da contabilidade. A próxima filial da academia seria dentro do maior shopping da cidade, mas o empreendimento andava sendo bastante trabalhoso. Kelly a ajudou a colocar a alimentação para os pequenos, e por mais bagunça que fizessem, comiam bastante e conseguiam ser autônomos na medida do possível. Em seguida, a porta de serviço abriu. Eram as diaristas que ajudavam Kelly, também haviam acabado de chegar à casa de Rafa.
- Oi meninas, bom dia! - Disse Rafa meio apressada, ajeitando frutinhas nos pratos. Até por instinto, ela acabava fazendo tudo correndo.
- Dona gi ainda tá dormindo, Dona Rafa? - Perguntou Kelly.
Gizelly já estava no escritório desde muito cedo. Sequer havia amanhecido direito. Logo ela chegou à cozinha com uma cara amassada, atrás de uma xícara de café. Sentou-se à mesa depois de cumprimentar todo mundo, beijou a esposa, os filhos e as notificações chegavam uma após a outra em seu celular.
"Será que você pode fazer essa parte do trabalho pra mim?".
Era a pergunta que aparecia, enquanto Rafa esticava o pescoço tentando parecer discreta observando o visor do celular alheio. Gizelly apoiou o cotovelo na mesa, segurando a cabeça com a palma das mãos e os dedos. Suspirou colocando um pedaço de pão na boca enquanto Rafa falou:
- Tá cansada? Com o impulso certo, você carrega o mundo nas costas com mais facilidade. Eu tô até achando que você consegue fazer mais algumas atividades.
As notificações não eram tímidas, elas vinham sem cerimônia alguma. Até Gizelly virar o celular para baixo.
- O pessoal tá precisando de ajuda pra concluir o trabalho. - Pontuou.
- E você vai dar um jeito. Solícita, dane-se que precisa de um sono, isso é bobagem. - Retrucou Rafa.
Elas falavam baixo. As ajudantes de Kelly preparavam um café antes de entrar para o serviço. Uma das moças já estava acostumada com a Rafa falante e Gizelly mais quieta. A outra moça ainda não as conhecia tão bem. E como ainda não era o bastante, Kelly havia pedido para GIzelly ver uma coisa que não entendia muito bem. Ela estava precisando de apoio jurídico para iniciar sua empresa de serviços domésticos, que estava montando com uma amiga que também trabalhava para um casal num apartamento perto da beira mar, mas Gizelly havia esquecido.
- Caramba, Kelly! Tinha esquecido que ia ver a papelada. Hoje na hora do almoço, vejo pra você. Deixa eu anotar aqui pra não esquecer.
Rafa não gostava muito quando Gizelly ficava daquela forma. Evidentemente cansada. Dormia pouco, embora fosse fiel aos compromissos. E por um momento Gizelly cochilou na cadeira. Rafa e as moças a observaram. Um pequeno minuto que no sono dela pareceu uma eternidade. Até a professora despertar num susto.
- Eu...
A cabeça dela ia precisar de um tempinho para processar as ideias que fugiu.
- Deu pra sonhar? - Perguntou Rafa. - Tem meia hora que a gente tá olhando você dormir na mesa. E só nesse tempo, já nasceram três rugas novas na sua testa!
Gizelly sorriu largamente passando a mão na testa, olhou para todo mundo, ficou vermelha da cor do suco de acerola que seus filhos tomavam.
-Ê, dona gi, desse jeito a senhora não vai durar muito não. - Falou uma das moças. - Vai acabar adoecendo. Melhor comprar uma vitamina pra aumentar a energia.
Rafa viu quando a babá chegou. As crianças amavam a moça que lhes enchiam de carinhos e fazia de tudo para mantê-los ocupados. Os gritinhos começaram e Rafa respondeu para a funcionária:
- Ela vai durar muito sim! Olha só o tanto de coisa que a gente faz nessa casa? Nem que seja na forma de assombração ela vai continuar. Imagina, eu não tenho energia pra criar três filhos sozinha, cuidar das academias e ainda enlouquecer todo dia por causa dos problemas? Têm que se virar!
As moças sorriram, e Gizelly foi afastando a cadeira, falando:
- É meninas, esse é o jeito que ela tem de falar que me ama e não consegue viver sem mim!
Rafa fez uma cara de poucos amigos, a encarou enquanto ela sorria e soltava um beijinho no ar. Depois as duas se levantaram, se despediram das crianças e das funcionárias, se encaminharam à sala onde pegaram suas coisas.
Gizelly andava com uma mochila grande, que cabia até seu capacete. Esticou-se inteira vendo Rafa se olhar num dos espelhos da sala, retocando um batom claro.
- Será que ainda dá tempo de treinar? Sempre fico com mais energia quando treino. - Disse Gizelly se olhando.
- No seu relógio maluco deve dar. No seu dia de cinquenta horas, tudo é possível.
Gizelly sorriu se aproximando da esposa, a puxou pela mão depois beijou o rosto, em seguida a boca.
- Não fala assim comigo, amor. Meu cérebro tá lento hoje!
- Você acha isso normal, Gizelly? Olha o tanto de coisa que você anda fazendo. Ontem a gente foi dormir super tarde, se você ficou duas ou três horas na cama, foi muito.
Gizelly sabia que ela estava certa. Deu-lhe mais um beijo e disse:
- Vou procurar um jeito de dormir melhor, vou organizar essa bagunça. Tô realmente cansada.
Quieta, Rafa voltou ao que estava fazendo. Colocou o batom novamente e depois se voltou para Gizelly.
- E outra coisa! Você tá me devendo muito. Já perdi as contas do quanto me deve! Nunca mais saímos pra almoçar, pra jantar, respirar um ar que não seja da academia, ou daqui de casa. Fica só prometendo, prometendo e não cumpre. Agora quando é pra seus amiguinhos da faculdade, fazer trabalhinho, você arruma energia de Marte! Carrega o mundo com as pernas e se vira. Agora comigo... Tem que ser uma força tarefa.
Gizelly abriu um sorriso largo. Passou a mão no rosto, depois cruzou os braços a vendo prosseguir:
- O seu problema é achar que não observo as coisas! Só por que vai à academia me ver de vez em quando? No meio do expediente, ou aparece pra atrapalhar meus treinos? Isso não vale. Isso é somente casualidade. Você prometeu tudo e eu como boa empresária, sei cobrar muito bem! Quem mandou fazer três filhos? Na hora de fazer, você foi com tanta sede ao pote que deu no que deu. A ciência diz que isso não tem nada a ver, mas não tô nem aí. Tenho a minha lógica. Quem mandou escrever livro, série, se enfiar em empresa de um tanto lá de coisas... Fazer faculdade! Olha só...
Gizelly voltou a sorrir. Praticamente todos os dias nem que fosse por vinte minutos, passava para vê-la em qualquer lugar que provavelmente estava.
- Sabe de quem é a culpa da minha falta de sono? Ou do meu excesso de informação para escrita? - Indagou a professora.
Rafa evitou o sorriso, mas virando-se para Gizelly foi esmagada por um beijo e uns apertos. Esperando que ela terminasse de falar:
- É sua! Eu casei com uma pessoa que me traz conteúdo infinito! Acabei de criar três histórias diferentes com isso daí que você acabou de dizer.
Naquele momento Rafa fugiu do abraço da esposa. Que a segurava enquanto ela tentava escapar, mas sorria ao mesmo tempo.
- Tenho que ficar acordada mais uma semana pra desenvolver os capítulos de hoje.
Implicante, Rafa evitava sorrir, mas era levada pela brincadeira dela.
- Conteúdo infinito... Quem mandou me fazer de modelo?
Rafa a encarou enquanto era outra vez abraçada, acarinhada e mimada.
- Você tá muito linda hoje!
- Não vai me levar na conversa.
Gizelly a beijou com mais paixão. Olhou discretamente o relógio e viu que estava começando a se atrasar. Baixinho, repetia:
- Você tá muito linda hoje... Você estava muito linda ontem... Você vai estar muito linda amanhã...
Sem conter as risadinhas Rafa se deu a outro beijo, depois tentou voltar à sua postura habitual.
- Já tem mil coisas pra fazer na academia hoje. Eu espero que quando a filial do shopping inaugurar, não me deixe cem vezes mais doida.
- Vai dar tudo certo. - Disse Gizelly. - Se precisar de ajuda, tô com o celular o dia todo.
Gizelly se afastou primeiro, pegou o capacete ajeitando no braço e logo saíram. Quando chegaram na calçada, o ritual era o mesmo: Gizelly esperava Rafa sair antes, mas daquela vez Rafa a puxou pela camisa discretamente.
- Cuidado no trânsito. Moto pra lá, moto pra cá, desnecessário né, amor?
- Tomo sempre cuidado. De carro ia levar a vida inteira, o trânsito dessa cidade tá horrível.
Com carinho, Rafa ajeitou a camisa da professora. Acariciou os ombros como se desamassasse com as mãos. Inicialmente não disse nada, mas sorriu enquanto Gizelly a olhava.
- Morre de medo de ficar sem mim. - Disse Gizelly.
- Você tem muitas dívidas comigo e tenho cara de pau suficiente pra cobrar.
Lhe entregando um selinho, Gizelly sorriu mais tímida, tocou as mãos da moça respondendo:
- Você que não percebeu a minha estratégia de sempre ficar devendo pra você. Adoro ser cobrada da forma mais criativa que você usa as frases de cobrança. Muito conteúdo!
Rafa sorriu, se afastou abrindo a porta do carro.
- Você é uma safada.
Gizelly montou na moto. Colocou o capacete e saíram ao mesmo tempo, enquanto da área de serviço, Kelly fofocava com a outra funcionária:
- Elas vivem assim, tá vendo? Todo dia. Dona Rafa reclama, fala pelos cotovelos, e Dona gi calada, pacata...
- Elas costumam brigar, Kelly? - Perguntou a moça, enquanto estendia os panos de prato no varal.
- Tem dias que a Rafa tá bem louca mesmo, reclama um monte, e a gi deixa ela falando sozinha, vai tomar um café... Aí ela vira o samurai. Depois a gi volta perguntando se ela tá mais calma. Aí essa mulher muda até de cor. Dona gi não gosta muito de briga não, e dona Rafa é ciumenta daquelas que faz até pescoço de girafa pra ler a conversa no telefone. Mas às vezes a paciência da gi acaba e briga também. Um dia desses, elas brigaram e a Rafa disse que queria ficar sozinha. Dona gi disse que ia sair pra esfriar a cabeça, dona Rafa quase morre de ódio só por que a gi passou perfume pra sair. Ela se danou a falar... A gi ouviu tudinho, depois saiu. Nunca vi essa mulher ficar tão doida na vida.
- Eita, ave Maria! É mesmo? mas ela tem cara que é mais mandona. Que não me ouça falando. - As moças sorriram.
- É mandona, mas se dobra todinha com dois beijos e duas risadinhas. Dona gi coloca Dona Rafa no bolso e ela nem percebe. Doida pela gi. Ela acha que manda, a gi finge que obedece. Nesse dia que elas brigaram, a gi voltou com uma florzinha do jardim pra ela. Quando Rafa ia se danar a falar de novo, ela abraçou, arrumou paciência não sei onde, beijava enquanto Rafa tentava falar... E depois não vi o resto, né? Tava na hora de largar.
- Que fofinhas... E eu, Kelly? Quando vou arrumar um amor assim? - Questionou a moça.
- Ihhh menina, queria saber dizer. Queria eu alguém que me amasse tanto! Se desdobra pelas crianças, por ela. Até um perfume pra Dona Rafa, Dona gi inventou. Fez livro, um tanto de coisa lá...
- Fiquei sabendo... - Respondeu a moça
Enquanto o papo de Kelly com a moça prosseguia, três ruas depois, Gizelly e Rafa pararam no primeiro semáforo. De cara dava pra ver o trânsito nada amigável. Daquele ponto, Gizelly seguiria para a esquerda e Rafa para a direita. Quando a professora buzinou, logo Rafa abaixou o vidro. Ajeitando os óculos, Gizelly disse:
- Se eu pudesse, mandava trocar esses semáforos dessa rua. Fazia uma coisa mais tecnológica, um sensor pra quando seu carro parasse piscar uns coraçõezinhos vermelhos ao invés desse negócio redondo sem graça.
Rafa sorriu a ponto de encostar a cabeça no volante. Virando o rosto para vê-la enquanto ainda devaneava.
- Todo dia você passa por aqui, eu faria isso de boas.
- Gente... Eu não sei onde você arruma essas coisas. - Disse Rafa. - É sério, às vezes eu tento, mas não tem como...
- Você não acha que seria legal? Imagina aí na sua cabeça, semáforo de corações só pra você...
Gizelly levantou o capacete enquanto ria. As gracinhas eram propositais a cada palavra. E agora tinha certeza que Rafa nunca mais ia passar pelo semáforo daquela rua sem imaginar uns corações vermelhos piscando. De fato, a escritora era muito boa em criar memórias de uma pequena fantasia que fosse. Quando finalmente o semáforo abriu, Gizelly abaixou o capacete para seguir:
- Toma cuidado. - Disse Rafa.
Gizelly buzinou duas vezes e seguiu pelo caminho da esquerda, enquanto ela seguia pela direita. Quando chegou à academia, Rafa sabia o que ia encontrar pela frente. Ronaldo já estava trabalhando com um problema que havia acontecido na academia do centro. Outra vez na manutenção.
- VAMOS CHAMAR UM PADRE! UM PAI DE SANTO, UM PASTOR! APELA ATÉ PRA UMA TESTEMUNHA DE JEOVÁ, DESPACHA UMA GALINHA NA ENCRUZILHADA PRA VER SE RESOLVE... NÃO É POSSÍVEL... TÃO TAMPANDO OS CANOS DO VESTIÁRIO COM BAND-AID? TODO DIA DÁ PROBLEMA...
Rafa ouviu aquilo tudo e calmamente sentou em sua cadeira começou a cantarolar indiferente. Enquanto Ronaldo já havia perdido a paciência há muito tempo. Ela esperou a ligação terminar, viu um monte de papéis em sua mesa e levantou a mão, negando vagarosamente enquanto Ronaldo pretendia falar.
- Hoje eu tô muito calma! - Disse ela.
O amigo respirou a vendo afastar os papéis e largou o telefone pra lá. Ela olhou a tela do computador e foi dizendo:
- Vou lá. Na paz, ver que manutenção é essa que todo dia tem um problema. Hoje tô bem tranquila...
Ela estava mesmo. Só até a secretária da ante sala entrar:
- Seu Ronaldo, a Olga da zona norte disse que deu um problema lá na iluminação do salão principal. Tá na linha dois.
Rafa coçou a cabeça, fechou os olhos e levantou-se para falar no telefone lá fora. De dentro da sala, Ronaldo ouvia enquanto ela falava. Foram quase vinte minutos ela dando instruções para a gerente resolver um problema que sequer deveriam ter ligado para lá. A calmaria foi embora com a mesma velocidade que havia aparecido, em seguida ela voltou a sua cadeira.
- Gente, eu não dou conta disso mas não! Pelo amor de Deus. - Desabafou ao amigo.
Em seguida os dois começaram a ver a papelada. Falavam sobre o que tinham de pendências e se assustaram quando alguém batia na porta.
- Ah meu Deus, o que foi agora? - Questionou Ronaldo, ao ver a secretária entrar com uma caixa que parecia um presente.
- Entrega pra senhora, Dona Rafaella.
Ela não estava esperando nada, mas sorriu ao abrir e ver que era uma cesta com algumas coisas de café da manhã. Sorriu ainda mais ao ver o bilhete pequeno. Havia um semáforo desenhado com caneta vermelha e corações nos lugares das bolas sem graça.
"Vi que você não tomou café direito. Alimentou as crianças e nem tocou no seu. Tá errada! Precisa comer bem. E isso não é um jeito de amenizar minhas dívidas. O seu dia vai ser lindo igual você hoje passando batom."
No caminho até a editora, Gizelly havia passado numa cafeteria e pediu a entrega para a moça. Toda a eletricidade dela se desmanchou num sorriso enquanto Ronaldo implicava:
- Tem que ser alguém de outro planeta pra fazer você sorrir desse jeito vendo o caos do dia de hoje, que nem começou direito!
Na caixinha havia pãezinhos, leite, frios fatiados bem pequenos, biscoitinhos, suco natural e um cacho de uvas verdes sem sementes. Ela sentou em sua cadeira, releu o bilhete e o sorriso se misturava ao tanto de coisas que tinha pra fazer.
- MEU DEEEEUS! Como pode uma mulher dessas? Que ódio... Não consigo nem ficar chateada com o tanto de problemas.
Ronaldo sorriu, fazendo sinal com a cabeça a vendo ler o papel outra vez:
- É amiga, a sua cadelagem tem nome! E dobra você sem nem olhar pra sua cara. Faz o seu cérebro fabricar dopamina escrevendo duas linhas num papel!
Rafa sorriu novamente. Ao passo que Ronaldo fuçava o que podia comer também. E já que estavam tão lotados, não dava pra fugir do serviço.
- Bora passar um café! A gente come, e vê como faz pra resolver essa bagunça toda. - Disse Rafa.
Obviamente ele concordou, abriu a gaveta para pegar cápsulas de café, enquanto falava:
- Não vai agradecer a sua mulher, Rafinha? Manda um nude, boba. Um peitinho, uma carinha sensual...
Ela continuava sorrindo e respondeu:
- Vou agradecer sim. Não agora. Bora trabalhar, resolver esse batalhão de coisas que vou sair na hora do almoço.
- Adoroooo! Uma almoça a outra e as duas viram sobremesa!
- larga de ser safado! Não é nada disso.
- Gente, esse pãozinho tá uma delícia, acho que é de batata, humm... - Disse o rapaz provando, enquanto Rafa fazia o mesmo.
***
- Tem mais alguma pendência? Alguma coisa de errado com as academias? - Perguntou Rafa.
Ainda concentrada no trabalho com Ronaldo, tentava ver o que mais podia ser feito. Já passava das três da tarde, já havia ido à academia do centro e da zona norte. Além de conversar para acertar detalhes da inauguração do estabelecimento do shopping. No meio do caminho, ela foi à editora, mas a secretária falou que Gizelly e outros escritores estavam em atividade fora de lá. Coçou a cabeça ao olhar para o celular e ver que não deu tempo de fazer nem o resto das atividades que tinha. E mesmo com tantas coisas, foi em casa no fim da tarde, onde viu Kelly se arrumando para ir embora.
- A gi apareceu, Kelly?
- Ela veio voada Dona Rafa. Almoçou com as crianças, brincou um pouquinho e foi embora.
- E falou mais alguma coisa?
- Só disse que fez pedido de energético no aplicativo do mercado, e ia chegar tarde. - Respondeu Kelly.
Rafa passou mais de uma hora em casa. Fez vídeo com as crianças enquanto papeava com Kelly. Depois, fez um videozinho para Gizelly, onde agradeceu carinhosamente o café da manhã. Falou que queria vê-la, mas não a encontrou no trabalho. Em seguida voltou para an academia.
A reunião agora era com os nutricionistas dos estabelecimentos para resolver um pacote de consultas para os alunos novatos e resolver os cardápios das cantinas. Aquilo levava muito tempo, e por volta das sete e meia da noite, Rafa entrou no quartinho onde rapidamente se banhou enquanto Ronaldo a via séria com o rosto no telefone.
- Rafinha, esquecemos o aniversário do Eusébio. Ele acabou de mandar mensagem aqui. A gente confirmou semana passada, lembra? É depois de amanhã.
Rafa fechou os olhos longamente. Eusébio era um de seus braços direitos, em especial quando se tratava de inauguração de novos estabelecimentos. Ele sempre vinha de longe para ajudá-la.
- Esqueci completamente. É naquele hotel, né?
O celular de Ronaldo parecia uma máquina de notificações também. Assim como o de Rafa, que largou o aparelho na cama de solteiro ignorando tudo, fitando o amigo.
- Não vem dizer que são mais problemas essa hora? - Perguntou o amigo.
- Não.
- Que foi então, que tá com essa cara? Crise existencial? Sempre tenho também.
- A Gizelly ainda não respondeu minha mensagem. Já mandei várias. Acho que tá esperando as crianças fazerem quinze anos pra responder.
Ronaldo sorriu do exagero, mas ela já estava incomodada há algum tempo, não só com isso.
- Se parar pra pensar um pouco nas coisas, acho que não tô sendo mãe direito. Tudo é muito corrido. Vejo meus filhos três horas por dia, quando chego em casa eles estão praticamente dormindo e tô acabada. Não tenho energia nem pra levantar um ursinho.
Ronaldo sentou na cama e respondeu:
- Amiga, você está sem férias desde que seus filhos nasceram. Acumulando trabalho, fazendo mil coisas ao mesmo tempo. Sua esposa não fica atrás.
Ela sentou em seguida, e disse:
- Odeio essas coisas que não posso controlar. Eu amo meus filhos, mas o quão filha da puta serei se disser que é extremamente cansativo. E é ainda mais cansativo não saber como oferecer um tempo de qualidade nem pra mim mesma.
- Isso não é ser filha da puta. Isso é não romantizar a maternidade.
Rapidamente ela levantou-se da cama, ajeitou os cabelos afirmando:
- Nem a Gizelly, por mais que tente, consegue fazer isso. Ultimamente são minutos de qualidade juntas só pra não dizer que não tem nada. Ela tá exausta, se arrastando pelos cantos e além de tudo, essa ideia de mãe imaculada que eu deveria ser, simplesmente não existe.
- Não existe por que não existe mesmo. As pessoas acham que ser mãe é simplesmente abrir mão de quem você é. Não é assim. Não sou mãe, mas mãe também sente desejo, quer viver, quer sair, quer curtir e quer ser mãe também. O problema é que ninguém fala sobre isso, e se você não for mãe de forno e fogão, vão condenar.
Rafa concordou com Ronaldo, mas ainda assim estava preocupada.
- Na vida real acho que muita gente pensa isso, mas não fala nada. Meus filhos amam a babá, a Kelly, a mãe da Gizelly, meus pais...
Agora Ronaldo via Rafa olhando as fotos dos bebês no celular, passou o dedo indicador neles um a um enquanto o amigo perguntava:
- E você acha que eles não te amam?
Por um momento ela pensou. Olhou agora uma foto onde Gizelly aparecia brincando no tapete com os três na hora do almoço. Uma das fotos que ela costumava mandar aleatoriamente.
- Sei lá... Eles vivem rindo, às vezes parece que sou uma piada. Quando aprontam, eu tenho que falar duas ou três vezes, já com a Gizelly ela fala somente uma. Às vezes acho que nem meus filhos me levam a sério. - Ela respondeu.
- Ah não! Para de show. Isso é impressão sua. Acho que existem jeitos diferentes de administrar. E convenhamos que se tratando de comportamento, seus filhos são cópias suas, em especial as meninas.
Ela voltou a olhar o celular onde Gizelly agora estava online, mas sem visualizar as mensagens dela:
- Ai, mas eu tenho ódio quando a Gizelly fica online e nem visualiza o que mando pra ela. Faz horas que mandei mensagem. Todo mundo vive com o celular na mão e essa história de dizer que não responde por causa disso ou daquilo é mentira. Fico puta!
Ronaldo tentou amenizar:
- Por que você não tira uns quinze dias de férias com a sua família, passa uma semana os cinco, bem família de margarina. Depois mais uma semana só você e a gi, bem casal sacana, inventem um roteiro em algum lugar bom, com adrenalina. Essas coisas.
Ela sabia que aquilo só seria possível com muitos ajustes em ambas as agendas. Mesmo assim, iria tentar.
- Enquanto você pensa, fica em casa amanhã com as crianças. Eu cuido, e a gente pensa num jeito de fazer isso ao menos uma ou duas vezes na semana.
Rafa sorriu gostando da ideia. Os dois ficaram conversando por mais algum tempo. Por um momento ela esqueceu que Gizelly continuava sem responder as mensagens.
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