Fiquei um pouco ansioso com a sentença da minha colega.
Hoje.
Será hoje que nosso plano vai ser posto em prática. Perguntei a Alice, por que nunca a encontrei no caminho da ida dela até o balé. Ela disse que vai de bicicleta. Fiquei cansado só de imaginar. Sou sedentário, isso é um fato, mas nado todos os sábados à tarde. Acho que isso conta alguma coisa. Tudo bem que não nado nem uma hora e que só vou porque é de graça, num centro de convivência do bairro, patrocinado por algum político que eu esqueci o nome... Enfim...
Fiquei pensando em muitas coisas durante a aula de matemática, menos em matemática. Por exemplo, como manter assunto com Natasha depois de dar o primeiro passo? Ou então, por que Igor está cheio de graça pra cima de Alice? E se Natasha não se lembrar de mim? Ou, Por que Bento não se incomoda nem um pouquinho com toda essa graça de Igor?
No fim da aula fui para casa com Bento. Alice foi com Cachorro louco. Fui todo o caminho ouvindo as reclamações do meu amigo em relação à Sabrina, que derramou acidentalmente - eu acho - suco de uva em sua camisa, quando voltávamos para sala. Se eu mostrasse a Bento os emoticons de diabinho que ela me enviou rindo da cara que ele fez, pelo WhatsApp...
Enquanto almoçava, recebi uma mensagem de Bento dizendo que se vingaria.
"Cara, ela pediu desculpas O_o" – Mandei para ele, surpreso, porque Bento é muito da paz.
"VERDADE. PEDIU DESCULPAS CHORANDO... CHORANDO DE RIR!" – Respondeu.
"Não precisa gritar ¬¬" – Estava falando direito com ele, para quê essa agressividade com Caps Lock?
"Beleza... Mais tarde nos falamos, estou com umas ideias..." – Li sua frase imaginando um tom bem maquiavélico.
Essas pessoas boazinhas e certinhas, quando decidem fazer algo um pouco mau... Ou elas não conseguem, ou vai tudo para o ventilador. E fede!
"Beleza Capitão" – Respondi usando seu apelido, quem sabe o lembrasse da pessoa responsável que era.
Demorou, mas finalmente chegou a hora de ir para o ponto. Quando saía de casa minha avó me estranhou um pouco.
- Dormiu com um gambá? – ela perguntou quando passei por ela na cozinha.
- O que? Por quê? – Perguntei cheirando a mim mesmo. Achei que tinha feito um bom trabalho ao me arrumar.
- Para passar tanto perfume assim, deve ter dormido com um. E abraçado. – ela afirmou – talvez você tenha que consultar um otorrinolaringologista, esse seu problema de identificar os cheiros pode estar se agravando e você não está mais conseguindo sentir cheiro nenhum...
- Bate nessa boca. É claro que estou sentindo, é lavanda. – digo convicto, porque li na embalagem – talvez eu tenha passado um pouco de mais...
Ela gargalhou.
- Um pouco? Sei... Mas o que me deixa curiosa é... Por quê? – Dona Giovana pergunta, com os olhos semicerrados – por que tanto perfume hoje?
- Tchau vó. Fica com Deus – digo saindo rapidamente. Se eu fico mais um pouco, ela consegue tirar tudo de mim. Às vezes, ela pode ser uma mistura de Patrick de O Mentalista e Lilly Rush de Arquivo Morto.
- Não coloque Deus no meio... – Ouvi sua voz soar distante, já fechando a porta.
Chego no ponto, minha musa é uma das primeiras da fila. Não está mais de óculos e como o tempo está fresco, suas mangas compridas não estão tão deslocadas. Agora é torcer para que não sentem ao seu lado até eu entrar.
Passo a roleta. Droga. Tem uma senhora ao seu lado. Tudo Bem. Vou passar por ela (em câmera lenta), se ela olhar para mim, digo boa tarde.
Olha. Olha. Olha. Olha. Olha.
- Boa tarde – digo com um sorriso leve, quando ela me olha. Será que foi minha força mental?
- Boa tarde – ela responde simpática. Ah, a senhorinha também.
Sento-me no lugar de quase sempre.
No bloco de notas do meu celular, anoto algumas ideias. Penso na protagonista acordando pela manhã, imaginando que terá mais um dia de trabalho normal, lidando com crimes de colarinho branco e coisas burocráticas. Então, depois de uma briga com seu namorado (que seja uma briga bem feia se só me restar Igor a fazer esse papel) ela pega um ônibus. Espera... Ela é uma agente federal, deve ter um carro...
Perco o fio da meada (que expressão doida) quando o ônibus para no ponto de Natasha. Ela passa por mim - já que a porta de saída fica no fundo do ônibus – e dá um sorrisinho.
Um sorrisinho.
Sorri sem dentes para ela em resposta. Continuei sorrindo depois que o ônibus voltou a andar.
Já no curso, recebi uma mensagem de Alice.
"Lembre-se. Se alguém perguntar, você é meu primo. Que me busca porque minha mãe neurótica, não está gostando que eu ande sozinha depois das 16h".
"Ok, mas coitada da tia Suzi, ela não é neurótica" – respondo.
"Jura?" – A imaginei arqueando as sobrancelhas.
"Tá bom. Só um pouquinho" – Confesso.
"Deu tudo certo no ônibus?"
"Sim!!!" – Respondo feliz.
Alice me explicou mais ou menos, onde encontrar a área do balé na grande academia e não trocamos mais mensagens.
16 horas. Chegou assim, de mansinho, aumentando meu nervosismo. Era possível ir a pé até o ponto da academia, mas eu já falei que sou sedentário né? Peguei uma van. Isso aí. Me julguem.
Cheguei à Academia 16h10min. Vinte minutos de espera me aguardavam. Circulei pelo lugar. Vi a área dos marombados, dos lutadores, uma galera zen, acho que era yoga... Subi as escadas, já que balé, jazz e sei lá mais que danças, ficam no terceiro andar.
Poxa vida. Terceiro andar de escadas... Cadê a tecnologia, a acessibilidade, o elevador?
No terceiro andar, há pufes, bancos e mesinhas com revistas, numa área mais aberta com janelas de vidro alto e um balcão com um homem atrás. Mulheres, provavelmente mães, estão sentadas batendo papo ou lendo alguma coisa. É um ambiente bem clean. Gostei.
Me sento um pouco desconfortável num pufe e pego meu celular. É quase automático, uma espécie de defesa. Você é estranho num lugar, não tem ninguém para falar, pegue seu celular e reveja mensagens antigas, jogue um joguinho, faça contas aleatórias na calculadora...
Senti olhares sobre mim.
- Veio buscar sua irmãzinha? – uma mulher sentada no banco ao lado me pergunta.
- Ah, não. Minha priminha – digo com um sorriso simpático.
- Que graça. Qual dança ela faz? – a mulher insiste em socializar.
- Balé – digo.
- Uhn... Minha pequena Samanta faz zumba. Tentei coloca-la no balé, mas não teve jeito... – ela diz num suspiro – rasgava a meia calça, desmanchava o coque... Era meu sonho ver minha pequena de tutu.
Acho que atraio pessoas que gostam de desabafar com estranhos. É na fila do banco, do ponto de ônibus, do supermercado... Agora na sala de espera do balé.
- A senhora fez balé? – dei corda.
- Ah, não me chame de senhora, me sinto uma velha. Meu nome é Telma e não, não fiz balé. – Ela diz – sei o que está pensando, que estou tentando me realizar na minha filha e, bom, talvez você tenha razão, um pouco...
- Sabe Telma, você ainda pode fazer balé se quiser. Nada te impede – sim, estou dando conselhos.
- Não, meu tempo já passou. Seria um mico uma mulher de quase 40 anos aprendendo os passos, ah não – ela faz um gesto de desdém com a mão.
- Um mico seria deixar de fazer o que se gosta por causa dos outros – Meu Deus, quem sou eu? Will Smith em A Procura da Felicidade? Porque meu discurso motivacional está óh... No ponto.
A mulher me olha um pouco surpresa, mas dá um sorriso leve.
- Acho que você tem razão rapaz – ela diz e de repente, surgem do corredor um bando de menininhas de colam correndo pelo lugar. Depois, menininhas de roupa de ginástica e umas faixas coloridas, eu sei lá o que é isso...
- MÃEEEEEEE! – uma pequena descabelada se joga sobre Telma, que ri e a abraça – Vamos logo que o papai prometeu sorvete hoje!
- Calma Samanta, deixa eu levantar – ela levanta pegando sua bolsa -dá tchau para o...
- Cezar – digo.
- Tchau Cezar! – Samanta diz, mostrando um sorriso banguela.
As duas se vão acenando. Telma e suas questões me fizeram esquecer um pouco da ansiedade.
Meninas maiores começam a sair do corredor e eu me levanto. Todo o nervosismo esquecido durante esses minutos volta. Minha musa pode aparecer a qualquer instante.
E ela aparece.
Nossos olhares se cruzam. Ela vem em minha direção. Certo, ela se lembra de mim. Está com a expressão entre surpresa e confusa. Faço a mesma expressão. Tento, pelo menos.
- Oi – ela diz suavemente.
- Oi – digo, torcendo para que ela não estenda a mão para me cumprimentar, porque estou suando.
- Você... Pega o mesmo ônibus que eu não pega?
- Acho que sim... – Tento soar espontâneo, sem parecer desesperado, mas por dentro digo: CLARO QUE SIM! JÁ SENTEI AO SEU LADO. SENTI SEU PERFUME. VOCÊ PISOU EM MIM! SEI SEU NOME. JÁ TE VI NA CALÇADA DA MINHA ESCOLA. ACHO ESTRANHÍSSIMAS SUAS MUDANÇAS DE HUMOR E AS MARCAS NO SEU CORPO!
Mas isso soaria doente, ridiculamente doente...
- Que coincidência né? Você tem aulas aqui? – ela pergunta amigável.
- Não. Não – eu rio (de nervoso. ESTOU FALANDO COM ELA!) – vim buscar minha priminha.
Porque estou usando a palavra prima no diminutivo?
- Ah sim, que legal.
Um pequeno silêncio reina. Preciso dizer alguma coisa.
- Então... Você gosta de balé? – pergunto.
IMAGINA CEZAR, ELA FAZ BALÉ PORQUE GOSTA DE HIPHOP!
Quais são os limites da idiotice? Alguém me responde...
- Gosto – ela ri, acho que da minha pergunta – gosto muito. Tanto quanto chocolate.
Rimos um para o outro.
- Oi Natasha. Conhece meu primo Cezar? – Alice surge ao seu lado, olhando entre nós.
Natasha explica a "coincidência" para Alice.
- Ual! Quem diria... Coincidência mesmo! – Alice é uma ótima atriz.
Sinto como se eu e Alice fôssemos dois manipuladores do universo. Natasha nem desconfia.
- Pois é... Bom, foi um prazer te conhecer Cezar. Digo, sem ser no ônibus... – rimos – Tenho que resolver umas coisas da minha ficha na recepção. Até semana que vem!
- Até Natasha! – Alice diz sorrindo.
- O prazer foi meu, até! – digo e a vejo partir para o balcão.
Alice balança meu ombro.
- Ei! Vamos logo. Antes que ela desça. Corre para seu ponto, antes que ela vá para lá! Se ela pega o mesmo ônibus que o seu pra vir, deve ser o mesmo pra voltar. – Alice diz e começamos a descer.
- Espera. – paro no meio da escada - Você não vai comigo? – pergunto
- E vou enfiar a bicicleta onde? Na sua cabeça? – ela parece cansada – segue seu rumo colega. Você já cumpriu seu papel por hoje e eu o meu. Correu tudo como você queria não foi?
Assinto com a cabeça. Sou muito grato a Alice, pois o que aconteceu hoje foi graças a ela. Ela deve ter tido uma aula cansativa e não quero perturbá-la nem nada. Apesar de suas barreiras de mau humor ou respostas ásperas, Alice é uma pessoa tão legal. Quem faria o que ela fez por mim?
- Obrigado por tudo Alice. De verdade. – Digo enquanto ela sobe em sua bicicleta, que ela destrancou dos guardadores na calçada. Faço menção em me aproximar com os braços um pouco estendidos.
- Não foi nada, mas não me agradeça ainda... E nem pense em quebrar a primeira regra – ela diz levantando uma mão e eu paro.
Nada de abraçar. Ok. Por enquanto...
Continua...