Tinha dezessete anos; pungia-me um buçozinho que eu forcejava por
trazer a bigode. Os olhos, vivos e resolutos, eram a minha feição
verdadeiramente máscula. Como ostentasse certa arrogância, não se
distinguia bem se era uma criança, com fumos de homem, se um
homem com ares de menino. Ao cabo, era um lindo garção, lindo e
audaz, que entrava na vida de botas e esporas, chicote na mão e
sangue nas veias, cavalgando um corcel nervoso, rijo, veloz, como o
corcel das antigas baladas, que o romantismo foi buscar ao castelo
medieval, para dar com ele nas ruas do nosso século. O pior é que o
estafaram a tal ponto, que foi preciso deitá-lo à margem, onde o
realismo o veio achar, comido de lazeira e vermes, e, por compaixão,
o transportou para os seus livros. Sim, eu era esse garção bonito, airoso, abastado; e facilmente se
imagina que mais de uma dama inclinou diante de mim a fronte
pensativa, ou levantou para mim os olhos cobiçosos. De todas porém
a que me cativou logo foi uma... uma... não sei se diga; este livro é
casto, ao menos na intenção; na intenção é castíssimo. Mas vá lá; ou
se há de dizer tudo ou nada. A que me cativou foi uma dama
espanhola, Marcela, a "linda Marcela", como lhe chamavam os
rapazes do tempo. E tinham razão os rapazes. Era filha de um
hortelão das Astúrias; disse-mo ela mesma, num dia de sinceridade,
porque a opinião aceita é que nascera de um letrado de Madri, vítima
da invasão francesa, ferido, encarcerado, espingardeado, quando ela
tinha apenas doze anos.
Cosas de España. Quem quer que fosse, porém, o pai, letrado ou
hortelão, a verdade é que Marcela não possuía a inocência rústica, e
mal chegava a entender a moral do código. Era boa moça, lépida,
sem escrúpulos, um pouco tolhida pela austeridade do tempo, que
lhe não permitia arrastar pelas ruas os seus estouvamentos e
berlindas; luxuosa, impaciente, amiga de dinheiro e de rapazes.
Naquele ano, morria de amores por um certo Xavier, sujeito abastado
e tísico, - uma pérola.
Vi-a pela primeira vez, no Rocio Grande, na noite das luminárias, logo
que constou a declaração da independência, uma festa de primavera,
um amanhecer da alma pública. Éramos dois rapazes, o povo e eu;
vínhamos da infância, com todos os arrebatamentos da juventude.
Vi-a sair de uma cadeirinha, airosa e vistosa, um corpo esbelto,
ondulante, um desgarre, alguma coisa que nunca achara nas
mulheres puras. - Segue-me, disse ela ao pajem. E eu segui-a, tão
pajem como o outro, como se a ordem me fosse dada, deixei-me ir
namorado, vibrante, cheio das primeiras auroras. A meio caminho,
chamaram-lhe "linda Marcela", lembrou-me que ouvira tal nome a
meu tio João, e fiquei, confesso que fiquei tonto.
Três dias depois perguntou-me meu tio, em segredo, se queria ir a
uma ceia de moças, nos Cajueiros. Fomos; era em casa de Marcela.
O Xavier, com todos os seus tubérculos, presidia ao banquete
noturno, em que eu pouco ou nada comi, porque só tinha olhos para
a dona da casa. Que gentil que estava a espanhola! Havia mais uma
meia dúzia de mulheres, - todas de partido -, e bonitas, cheias de
graça, mas a espanhola... O entusiasmo, alguns goles de vinho, o
gênio imperioso, estouvado, tudo isso me levou a fazer uma coisa
única; à saída, à porta da rua, disse a meu tio que esperasse um
instante, e tornei a subir as escadas.
- Esqueceu alguma coisa? perguntou Marcela de pé, no patamar.
- O lenço.
Ela ia abrir-me caminho para tornar à sala; eu segurei-lhe nas mãos,
puxei-a para mim, e dei-lhe um beijo. Não sei se ela disse alguma
coisa, se gritou, se chamou alguém; não sei nada; sei que desci outra
vez as escadas, veloz como um tufão, e incerto como um ébrio.