A aula estava tranquila, sem palhaçadas dos marmanjos, sem goma de mascar sendo jogado na mesa do professor de filosofia e sem perguntas para Andy Silva. É. Tranquila, o que me era estranho naquela manhã. Aliás, tudo estava estranho, o céu estava nublado fazendo com que o dia amanhecesse frio, o diretor estava recepcionando os alunos na entrada, o professor não fazia perguntas esquisitas aos demais e por aí ia a lista. Tudo bem que estava muito bom, mas não podia descartar a hipótese de 'dia estranho'.
— Muito bem, alguém pode me dizer qual era a ideia de belo na visão do filósofo Platão? — perguntou o professor Sérgio.
A pergunta me pegou desprevenido, pois eu ainda estava com muito sono. Fique até tarde da noite lendo Noite Eterna da série Evernight, de Cláudia Gray — uma série de livros muito boa por sinal — e não me dei conta que as horas passavam rápidas demais.
Vanessa olhou para mim, esperando alguma resposta sucinta à pergunta do professor. Eu não sabia o que fazer, então ela decidiu agir.
— O belo para Platão é um sentimento de bondade, atraindo o homem para que possa conhecer a essência de beleza, ou seja, às demais ideias. A beleza é algo único, o belo atrai olhares com sua visibilidade. As demais ideias são consequências da visão do belo.
Fiquei pasmo. Ela era muito inteligente, é claro, mas filosofia não era sua matéria predileta.
— Muito bom, Vanessa — ele sorriu. — Continuando, a objetividade não depende de obras individuais mesmo elas se aproximando desse ideal individual...
Olhei para fora, estava chovendo forte. O frio tomava conta da sala.
— Damien...
— Pois não professor — respondi.
— Você poderia ir à área de limpeza falar para o faxineiro diminuir o ar condicionado? Eu não vou conseguir dar mais um minuto de aula nesse estado de calamidade gélida.
— Claro.
Vanessa me deu um olhar penetrante, que decifrei logo de imediato.
— Não — sussurrei. — Somente no intervalo.
— Não estou falando da conversa com o diretor... Estou falando daquilo... — ela me lançou um olhar furtivo enquanto sussurrava, que me fez lembrar 'daquilo'.
— Repito a palavra 'Não'. É arriscado demais.
— Não é não. Vou com você. Professor! — ela gritou. — Eu vou ao banheiro um minutinho. Não demoro.
— Tudo bem. Não demore muito. Você também Damien. Não podem perder a explicação da ideia de 'Belo e feio'.
Assenti. Não estava nem um pouco interessado em saber desse assunto.
Ela simplesmente levantou de sua cadeira, puxou meu braço e me levou para fora da sala.
— Vanessa, não. Tenho que ir à sala de...
— Vanessa, sim. Damien! Temos que colocar aquela cola naquelas coquilhas custe o que custar! Você não vai deixar que eles brinquem novamente com você, não é? Aquele time de vôlei medíocre...
— Vanessa, eu já me esqueci desse fato... E você se lembra de que seu namorado faz parte do time?
Ela pensou somente em um milésimo de segundos antes de falar:
— Ah, Não, não esqueceu não. Vou relevar meu namorado nisso sim, já que ele e aquele seu amigo de cabelo roxo não participou. Vamos. Agora.
É, novamente Vanessa tinha a razão. Eu não havia me esquecido. Como eu poderia esquecer meus livros favoritos sendo destruídos por cola e trigo na minha mochila? Inesquecível. Tudo culpa daquele time de vôlei. Gostavam de ser os maiorais da escola, mas não são nada. Fazem o que querem quando bem quiserem. O diretor não fala nada a respeito deles, pois sabe que a metade da grana que eles ganham em jogos olímpicos vai para a escola. A triste lei não viável da ignorância múltipla grupal, onde várias pessoas só pensam em si e em mais ninguém.
A pergunta que não quer calar: O que foi que eu fiz para eles terem feito aquilo com meus preciosos livros?
A resposta que não quer calar: Foi a escolha do diretor em me escolher para ser o produtor e organizador da festa de Halloween. Triste, não? Todos da escola não paravam de conversar sobre a nova escolha do diretor. Isso me incomodava muito.
Vanessa soubera de tudo e queria pagar na mesma moeda. Eu não gostava de vingança, mas colar meus livros com trigo foi a gota da água para despertar em mim, de imediato, um pequeno ódio evasivo.
É. Eu iria fazer isso.
— Meus livros... Tudo bem, eu vou. Mas só dessa vez, não haverá outra vez — falei, andando corredor acima.
— Você é quem manda — seu sorriso era maquiavélico.
Ao chegarmos ao vestiário, que estava vazio por sinal porque o time estava em um jogo importante, Vanessa tirou uns três tubos de cola e passou em várias coquilhas que ela encontrava jogadas nos bancos e nos armários. Esses jogadores não se importavam mesmo com higiene.
Eu apenas observava a brilhante ideia de Vanessa.
— Vamos, está bom — falei, pois eu jurei ouvir uns barulhos de porta se abrindo no fundo do corredor.
— Não, não, eles têm que aprender a respeitar todo mundo — ela continuou a passar a cola nos protetores genitais masculinos. — Só mais um pouco, e mais um pouquinho...
— Mais rápido, Vanessa!
Ela não me respondeu.
Prontifiquei-me a ficar vigiando a porta do vestiário, pois se alguém passasse e nos visse seria motivo de grande derrota acadêmica para nós dois, e talvez o diretor fosse tirar o cargo de organizador da festa. Não que eu me impostasse, mas importaria muito pra Vanessa, pois eu iria colocar ela como coprodutora da festa.
Vanessa tinha essas questões, digamos, sentimentais em relação ao que se concentrava ao redor dela. Tudo o que ela admitia como dela ou que pertencia ao seu vínculo social era fruto de carinho e atenção. Seus amigos, famílias, roupas, bolsas, objetos, ursos de pelúcia e tudo o mais era tratado com maior amor. E isso me incluía. Tomou minhas dores, fazendo com que se vingasse deles por mim.
— O que está fazendo aí?
Não. Isso não estava acontecendo. Eu queria tanto que essa voz fosse de Vanessa, mas parecia muito masculina para ser dela. Virei-me lentamente para ouvir de onde a voz tinha saído.
É, estávamos encrencados.
Eu conhecia aquele menino do time, era alto, musculoso, loiro e de olhos castanhos escuros. O filho do diretor Marlon. Não o namorado de Vanessa, mas o irmão dele, a metade má da família do diretor. Diferente de Alex, Felipe me odiava mais do que qualquer coisa. Ele era o chefe do time e mandava em tudo e em todos na escola, debaixo das cortinas. Era a perfeita personificação de um jogador avarento de vôlei. Caracas, tinha que ser ele pra estar naquele momento? Ou eu estava no momento errado e na hora errada?
— Oi Felipe! É... O grupo de organização de limpeza está fazendo uma faxina no vestiário, então ninguém pode entrar — falei.
Ele me olhou desconfiado.
— Hoje não é quinta-feira para isso acontecer.
Engoli em seco. Ele tentou entrar, bloqueei-o.
— Mudamos o horário. É... Mudamos. Está tudo molhado e escorregadio então...
— Sai da frente Mané — Felipe me deu um empurrão. Acho que seu objeto de discussão, dessa vez, não era eu. Com certeza sabia que Vanessa estava comigo e que havia planejado algo, pois ele foi logo procurando por ela.
Ele adentrou o vestiário.
Entrei logo em seguida e por incrível que pareça, ela não estava por lá. Aonde Vanessa foi parar?
Felipe rondou todo o vestiário.
— Grupo de limpeza, não é? — ele me olhou furtivamente quando me mostrou um tubo de cola vazio. — Quem está com você?
Fiquei sem resposta.
— Estou só, limpando — falei, depois de minutos.
— Vocês estão tramando algo não é? Você e aquele seus amigos. O que estão fazendo? O quê que esse tubo de cola faz aqui? — ele se aproximou de mim em pose de confronto. — Vanessa está aqui, não está? Sinto o perfume dela. Esse perfume me dá enjoo toda vez que ela vai em casa namorar o trouxa do meu irmão.
— Não sei do que você está falando...
Dessa parte do perfume eu não sabia mesmo.
— Não minta pra mim! Você estava fazendo o quê lá fora vigiando a porta se não era dando cobertura pra aquela bruxa de Blair?
Sentia que no fundo, aquela ofensa iria fazer despertar uma fúria em um coração que estava em algum lugar daquela sala. Dito e feito.
Vanessa saiu de um armário que estava atrás de Felipe.
— Do que você me chamou? — ela gritou.
— De bruxa de Blair. Ou será que estou mentindo, cunhadinha?
Vanessa partiu para o ataque.
— Isso vai ser pelo Damien e por ter falado mal do meu perfume que foi muito caro — ela deu um tapa muito forte na face dele que vi a marca das mãos dela fincarem na pele.
A pancada foi mais forte do que eu tinha previsto, mas incrivelmente parece que teve efeito, pois Felipe apenas olhou para nós e cuspiu na blusa de Vanessa. Como eu estava bloqueando sua passagem, ele falou:
— Sai da frente seu lixo! — e mais uma vez me empurrou.
Fiquei ressentido com aquilo. Pra ele eu era um lixo. Talvez esse fosse o sentimento que eu sentia. Lixo. Talvez ele tivesse razão naquilo.
— Olha só o que ele fez... — ela me tirou do transe emocional.
— Vanessa! O que você fez? — perguntei, atordoado com a situação.
— O que deveria ser feito. Ai, isso doeu — ela balançou a mão.
— Me deixa ver... — Peguei sua mão e fiz uma pequena massagem que tinha aprendido na televisão.
— Onde você aprendeu isso?
— Ah, eu aprendi sozinho. Intuição — menti.
— Hum... Preciso limpar esse cuspe que ele me deu. Nossa, que menino nojento, não é? Nem parece meu cunhado. Não sei por que ele me odeia. Na verdade, eu até sei — ela falou enquanto íamos ao banheiro que ficava ao lado do vestiário. — Ouvi algo de Douglas, aquele melhor amigo dele sabe?
Assenti, enquanto esperava ela limpar com água sua blusa. Sorte que não havia ninguém no banheiro. O que iriam pensar ao ver um menino em um banheiro feminino?
— Então, ele falou para meu colega, o Bruce do primeiro ano, que gostava de mim e faria tudo para ver eu me separar de seu irmão.
Eu já sabia disso também.
— Ouvi rumores sobre isso. Achei estranho o fato de ele te amar e fazer isso com você — falei.
— Damien, já ouviu fala em 'Louco Amor'? Quando uma pessoa ama outra pessoa que não a ama e faz de tudo para essa pessoa se apaixone por ela na forma mais estranha que existe? Com pancadas, vergonha na rua, cuspe... Essas coisas.
Tinha visto algo relacionado na TV semana passada.
— Está assistindo muita 'Loucuras de amor' isso sim — falei, lembrando-me do programa que eu havia assistido.
Eu gostava de assistir programas polêmicos no pouco tempo que me sobrava para apreciar meu capuchino. Inclusive 'Loucuras de Amor', onde mostrava a vida cotidiana de casais héteros e homossexuais na relação amorosa.
— Até que enfim! O que vocês fazem aqui? — Eduh apareceu na porta. — Procurei vocês em todo o canto!
Eduh olhou a cena de Vanessa limpando a blusa.
— O que aconteceu? — ele perguntou.
— Decidimos colocar aquele plano em prática. Deu certo, mas Felipe apareceu e cuspiu na minha blusa.
Ele também sabia do plano.
— Sério? Poxa, porque não me chamaram para ver?
— Tive a ideia de colocar o plano em prática de repente. Você estava do outro lado da sala, o professor iria estranhar se saíssem três alunos ao mesmo tempo.
— Chamava mesmo assim ué! — ele reclamou.
— Você não perdeu nada de bom. Mas acredita que Vanessa deu um tapa nele? — falei.
— Mentira? Caracas Vanessa! Poxa, queria ter visto — ele falou.
— Você não era amigo dele? — perguntei, lembrando-me da vez em que o vi sentado com Felipe na mesa dos 'Valentões'. Na realidade, o vi somente uma ou duas vezes. Tenho ciúmes furtivos dos meus amigos.
— Colega — ele me corrigiu. — E não gosto mais da companhia dele. Não depois que ele me ofereceu dro...
Lancei um olhar fulminante para ele, fazendo um sinal de silêncio com o dedo.
Felipe havia oferecido LCD a Eduh na aula de Educação Física. Na verdade, ele o obrigou a ficar com o entorpecente. Lembro-me que Eduh chegou em casa atordoado, pois nunca tinha tocado em algo assim.
— Damien, o que eu faço com isso? — me perguntou, aflito.
— Jogue fora. Agora.
Eduh jogou a droga no lixo. Tínhamos nossos momentos de jovens em baladas sim, mas não tocamos em coisas que podem nos levar a ruina.
Vanessa nunca soubera disso, e se ela descobrisse, mataria Eduh por ter aceitado e fuzilaria o corpo já morto de Felipe por ter oferecido. Felizmente Vanessa não ouviu esse nosso momento de distração, pois estava enxugando a parte da blusa molhada no secador de mãos.
— Ah, vamos. O professor me mandou ir atrás de vocês. Estão demorando! — ele falou.
— Ok — disse Vanessa, limpando as gotículas de água com papel.
Em seguida fomos à sala de limpeza dar a mensagem do professor e também fomos em direção à sala do diretor, pois a campainha do intervalo havia batido bem na hora em que havíamos sentado na carteira da sala. Ao chegarmos lá, ele também mandou que Vanessa entrasse na sala junto comigo, o que nessa ocasião, não foi estranho, pois ele já deveria saber o que fizemos com seu filho.
— Pode entrar Eduh. Mas fique ali naquela poltrona — disse o diretor.
Eduh se sentou na poltrona de espera.
O diretor estava nos olhando com uma feição ameaçadora. Ficamos em silêncio por uns segundos.
— Bem, Senhor Silva e Senhora Araújo. Eu já tomei conhecimento do que aprontaram no vestiário masculino de vôlei. Felipe veio me avisar. E isso não foi legal.
Eu queria responder, mas não conseguia levantar minha cabeça.
— Digo que não fiquei contente por tal ato, pois meu filho esteve na enfermaria há pouco tempo. Ele veio me contar logo em seguida.
— Desculpa, eu...
— Tudo bem, isso não importa Vanessa. Foi apenas um tapa e Felipe exagera com essas coisas. O que eu venho propor aqui é deixar bem claro que eu não quero que vocês tenham essa atitude novamente no Colégio, pois como é que Damien, um organizador da maior festa anual, será visto pelos outros alunos ao saberem da baderna feita por ele? Como um Diretor de festas raivoso? Não — Felipe dever ter aumentado os fatos para seu pai.
— Sinto muito pelo que aconteceu. — falei — Foi uma discussão banal e não irá se repetir novamente.
Ele assentiu.
— Assim espero. Pois bem, tirando esse incidente, venho falar que a festa acontecerá dentro de um mês. Temos apenas poucos dias para organizá-la e tudo o mais. Claro que terá uma equipe lhe auxiliando, mas precisamos escolher um diretor oficial, que claro, é você. Precisa arranjar o mais rápido possível listas com endereços e contatos de empresas que possam fazer comidas, bebidas, decoração, etc. Preciso disso urgentemente. Estará disposto?
Acho que seria melhor eu me arriscar. Pensei muito no que Vanessa e Eduh me falaram. Se acontecer tudo o que eles colocaram, isso será bom para mim.
— Tudo bem, eu serei o diretor. Não fiquei contente por terem tirado a semana acadêmica literária da vez, mas tenho planos para ela acontecer que somente revelarei no decorrer da festa do Halloween. E tem uma condição.
— Fale.
— Quero que Vanessa ministre a festa. Quero que ela seja a coprodutora.
Ela deu um sorriso de leve.
— Tudo bem. Contanto que não tenhamos mais incidentes como o de hoje... Agora que comece os preparativos desde... Digamos... Agora.
— Agora? — perguntei assustado.
— Sim, agora, hoje, há dois segundos, tanto faz. Agora. Vá à sala de artes e converse com a professora. Ela lhe indicará os passos corretamente.
— Ok — falei.
— Assunto encerrado — ele cruzou os dedos. — Bem vindos ao corpo docente da escola.
Assentimos e Vanessa deu um "Obrigado".
Saímos lentamente porta afora. Não foi uma conversa que eu estava esperando, mas não foi contraditória, já que tinha planos em minha mente de arrecadar fundos para a semana literária.
— Pensei que ele ia nos punir — Vanessa falou.
— Para Damien é quase uma punição — disse Eduh.
— Quase. Mas vamos meter a cara. E não pense que você vai ficar relaxado na sua cama enquanto a gente trabalha. Vai nos ajudar também — falei para Eduh.
— Damien! Não! Eu tenho...
— Não diga não Eduh, por favor — falei, sabendo que Eduh iria aceitar mesmo assim. Ele só queria que eu implorasse.
— Tudo bem, por vocês. Não quero que essa festa seja mal falada por conta de organizadores que não souberam planejar direito.
— Muito engraçado! — falei enquanto entrávamos na sala de artes.
Conversamos com a professora e ela nos deu uma lista do que fazer antes de nos falar quem irá trabalhar conosco. O diretor nem sabia que eu ia aceitar e já estava arquitetando tudo em meu nome.
Ao sairmos da escola, a chuva havia dado uma trégua, mas ainda era fina e gélida.
— Vanessa colocou cola nas coquilhas dos jogadores de Vôlei mesmo?
— Sim — falei.
— Nossa, não quero nem saber do resultado disso sexta, já que quinta é o jogo. Um resultado horrível, tanto para vocês quanto pra eles, já que aquilo vai dar uma coceira danada — Eduh falou.
— É verdade — concordei.
— Porque resultado pra mim? — Vanessa falou quando adentrávamos a avenida à frente da escola.
— Porque Felipe vai falar pros amigos dele que foi você e Damien.
— Não vai dar em nada. Os amigos deles me amam. Literalmente. E ele não contaria não. Não gostaria de ver seus amigos machucarem esse lindo rostinho — ela revirou tocou em seu rosto sem nenhuma espinha.
Eduh riu.
O namorado de Vanessa veio ao nosso encontro. Não cumprimentou a mim e nem a Eduh.
— Meu doce, não vai dar para levar você para casa hoje. Tenho algumas coisas pendentes para resolver na secretaria e isso implicaria em horas e horas. Se você quiser, posso pedir para Francisco levar você, ele tem um Jipe que...
Ela deu um beijo nele. Acho que ele não sabia ainda o que Vanessa havia feito com o seu irmão.
— Amor, tudo bem, eu vou andando com eles — ela olhou para a gente. — Tenho assuntos pendentes também para resolver. Não se preocupe.
— Mesmo?
— Mesmo — e mais um beijo.
Ele se foi depois de dizer um tchau vago. Eduh e eu fingimos que contávamos carros no estacionamento.
— Vamos — ela falou.
Colocamos as nossas jaquetas e seguimos a pé até a loja da senhora Jéssica, uma doceira encantadora e que em época de Halloween, vendia os mais diversos sabores e tipos de bombons. Eu prometera a Vanessa, semana passada, que iríamos à loja hoje. Tínhamos que ver também os doces que iriam para a mesa da festa. Promessa quase cumprida.
— Vamos à Doces ou Travessuras? Me disseram que chegaram novos sabores de Fini Tubes ontem — Vanessa não tirava os olhos da loja que se aproximava à medida que caminhávamos.
— Claro. Estávamos indo pra lá, certo? Como prometi naquele dia — falei. — E agora temos que ver os doces que estarão na festa também.
— Eu sabia que não tinha se esquecido — ela apressou os passos para a loja.
A porta estava entreaberta, como de costume. Vanessa entrou junto com Eduh, mas algo me chamou atenção quando vários ratos saíram de uma ruela ao lado da loja. Tinha que admitir que aquilo foi estranho demais, pois não haviam ratos naquela área.
— Mas o que...
Meus amigos já haviam sumido nas diversas estantes de bombons da loja, então fui ao encontro da ruela.
Apesar de ainda não ter anoitecido e estar longe para o sol se pôr, a ruela estava bem escura. Os ratos haviam desaparecido pelas frestas da rua principal.
Foi quando eu os vi.
Quatro homens estavam conversando rapidamente, em sussurros pesarosos, como se quisessem gritar e ao mesmo tempo não, para não serem ouvidos. Eles estavam com túnicas negras até os pés com capuzes cobrindo-lhes os rostos. De longe, percebi que suas mãos eram brancas como a neve. Eles faziam movimentos enraivecidos. Cheguei mais perto, caminhando lentamente para não ser notado.
— ... Masss ssssenhor, a Chave Celestial não está aqui! Procuramossss por um ssssinal do primeiro elemento por todo o canto desssssa cidade! Não encontramosss nem o último portador do mapa!
— É, Mestre, não conseguimos obter nada aqui. Parece que os quatro elementos realmente não querem ser descobertos. O mapa não dá sua localização — outro ser falou.
As vozes deles eram todas graves, só não a do que sibilava.
Do que eles falavam? Quatro elementos? Chave?
— Não adiantou entramos na Cidade Celestial. Nada por Nada! — disse outro ser.
— Calem a boca seus míseros incrédulos. Eu sinto a aura do mapa por perto. Não está muito longe. Estamos perto de alcançar o primeiro elemento. Meu faro nunca erra em suas revelações — disse o ser do meio, mais alto.
Aquilo estava me incomodando profundamente, como se aquela conversa fosse realmente um diálogo real. Será que ia ter uma apresentação de teatro surpresa agora por perto? Não. Não aqui, nesse dia chuvoso e nesse beco escuro. Hipótese descartada.
Eu me escorei em um pau velho, que logo se partiu fazendo um grande estalido. Droga. Acho que eles ouviram. Olhei em direção ao quarteto, mas no lugar dos homens, apenas o vento frio fazia sussurros.
Estava eu ficando louco? Era uma miragem gélida em minha mente? Ou eles entraram em uma porta no canto da ruela?
Andei calmamente até o ponto onde eles estavam há alguns segundos atrás. Verifiquei o local e não havia portas. Eles não podiam ter voado, não é? Ou se teletransportado, como aquele homem do filme de terror que assisti semana passada?
Não. Claro que não.
O mundo não estava tão esquisito assim.
Estava?