O tempo foi passando e a dúvida sobre a minha existência começou a pairar sobre mim. Eu já tinha um domínio incrível sobre a telepatia e só conseguia ouvir o que as pessoas estavam pensando quando eu queria que isso acontecesse – e quando eles queriam também, já que não sou nenhuma mal caráter.
O Zeca também estava bem mais descontraído e vez ou outra me presenteava com alguma informação sobre o meu passado. Como quando ele me contou sobre uma pequena cicatriz que eu tenho no calcanhar.
– Você enfiou o pé no raio da bicicleta da Dona Valquíria, a dona do orfanato – contou ele sorrindo. – A gente roubava ela de vez em quando para brincar. Eu pensei que você tinha arrancado o pé fora, de tanto que gritou.
Por mais que eu não lembrasse de nada, era como se eu tivesse um passado novamente. E isso era incrível.
Com a aproximação do Zeca, veio o afastamento da Iolanda. Ela não disse nada, mas eu podia sentir que ela não gostava mais de ficar perto de mim. No começo, pensei que logo ia passar e tudo voltaria ao normal, mas ela só se afastava mais e mais. E com isso, grupo ficou dividido.
De um lado estava os defensores da Iolanda, que eram o Joca, a Helô e o Tião – que se tornou meu inimigo mortal desde então. Do outro ficamos eu, o Tonho e a Sara. O Zeca não estava em lado nenhum, já que ele era o "culpado". E o Tavinho oscilava entre os dois lados e vivia bufando e reclamando que essa era a coisa mais idiota que ele já tinha visto. E eu tenho que admitir que uma criança de dez anos era a pessoa mais sensata do grupo.
∞
Decidi que era mais sensato me afastar do Zeca. Isso iria unir o grupo novamente e, no momento, isso era o que mais importava, já que eu não tinha nenhum interesse em acabar com o namoro dos dois.
No começo só tentei evitá-lo, o que foi bem difícil porque ele era a pessoa mais próxima de mim naquele grupo e eu só estava lá por causa dele.
Quando eu vi que não deu muito certo, tentei pensar em algo que pudesse fazê-lo ficar com raiva de mim. Infelizmente, eu não sabia o que poderia irritá-lo a ponto de se afastar, então achei que essa poderia ser uma ideia ruim.
Decidi optar pelo óbvio e conversar com a Iolanda. Assim que cheguei perto senti que ela não estava afim de falar comigo. E nem precisei usar minha telepatia pra isso.
Ela estava conversando com a Helô.
– A gente pode conversar? – indaguei.
– Não sei – respondeu ela.
Então ela finalmente pediu pra Helô sair.
– Olha só Iolanda – comecei. – Eu só queria deixar bem claro que nunca tive a intenção de te chatear, nem de roubar o Zeca de você, nem nada dessas coisas que você está pensando.
– Como você sabe o que eu estou pensando? – tornou, tapando os ouvidos. Como se isso fosse capaz de me deter, caso eu estivesse tentando ler seus pensamentos.
– Eu não sei – respondi. – Apenas deduzi. E eu não fico entrando no pensamento de vocês sem consentimento. Fica tranquila.
Então ela cruzou os braços e ficou esperando eu terminar.
– Eu sei que ele é o seu namorado e nunca sequer me passou pela cabeça fazer qualquer coisa para afastar vocês. E quero pedir desculpas se eu dei a entender uma coisas dessas.
Ela não respondeu nada. Apenas ficou me encarando num misto de raiva e surpresa. Como meu recada já estava dado, era hora de sair dali.
∞
Sara tinha passado a ser minha melhor amiga desde a divisão do grupo. Ela era engraçada, mas não tão bonita quanto a Iolanda. Para ser franca, acho que ela era a garota menos bonita do grupo. Ela era muito magra e tinha o rosto esguio demais, sem contar os dentes separados iguais ao do irmão. O Tonho vivia dizendo que ela parecia um cavalo de cabelo comprido e, sem ser maldosa, ele tinha razão.
Nós duas estávamos andando pela rua. Ela disse que tinha uma torneira ali por perto e que precisava muito usá-la e eu só a acompanhei até lá.
– Quer usar também? – perguntou ela, depois que acabou de se molhar.
– Claro – respondi.
Estava muito calor para um início de inverno, então molhei a nuca e lavei o rosto.
– A Helô ia gostar de vir aqui – disse, triste. – Talvez ela venha mais tarde com a Iolanda.
Permaneci em silêncio. Não tinha nada que eu pudesse dizer naquele momento. Eu tinha dividido o grupo, mesmo que sem intenção.
– Você e o Zeca eram bem amigos, né? – perguntou.
Esse era um defeito grave da Sara. Ela não sabia ficar de boca fechada, então para não deixar o assunto morrer, ela recorria a qualquer coisa.
– Eu não lembro – respondi.
– Sabe por que eu fiquei do seu lado nessa briga? - tornou, emendando um assunto no outro.
– Não sei.
– Porque eu acho que a Iolanda está viajando – respondeu. – Quer dizer, eu não acho que ela vá conseguir alguma coisa agindo desse jeito.
– Eu nunca tive intenção de causar todo esse transtorno – defendi-me. – Eu me propus a ir embora daqui!
– Mas o Zeca não quis, não é? – tornou, erguendo uma sobrancelha.
Concordei, triste.
– Uma coisa é certa, Malu – concluiu. – Eu não queria estar no lugar da Iolanda.
∞
Depois que já estávamos cansadas de tanto conversar e se molhar na torneira, retornamos pra casa. É engraçado como as pessoas que passavam na rua nos tratavam como se fôssemos invisíveis. Passamos por tantas pessoas e elas simplesmente nos ignoravam, como se fossem capazes de ver somente o superficial. E acho que na verdade são incapazes de mais do que isso.
Assim que colocamos o pé em casa notamos que alguma coisa errada tinha acontecido. O clima estava bem pesado e o silêncio pairava, quebrado apenas por soluços vindos de longe.
No olhamos assustadas e saímos correndo para ver o que tinha acontecido. Encontramos a Iolanda chorando desesperada, junto da Helô que a consolava e o Tião e o Tonho andando de um lado pro outro igual duas baratas tontas.
– O que aconteceu? – perguntou a Sara, aproximando-se das meninas.
– O Tavinho sumiu – respondeu a Helô.
– Como assim? - tornei, confusa. – Ele deve ter se distraído conversando com algum inseto e se atrasado.
– Ele não levou os óculos – explicou a Iolanda, entre soluços.
– Ele nunca sai sem os óculos, porque ele não enxerga direito sem eles – completou o Tião.
Tentei manter a calma e raciocinar. Onde um garoto de dez anos poderia ter ido?
Afastei-me do grupo, a fim de ir para um lugar silencioso. Fechei os olhos e me concentrei.
– Tavinho! Você está me ouvindo? – tentei.
– Malu?! É você? – respondeu ele, imediatamente.
– Sou eu, sim – disse. – Onde você está?
– Eu não sei. Eu estava do lado da construção, conversando com um casal de lesmas sobre as mudanças climáticas que viemos enfrentando. Elas eram muito inteligentes...
– Resume, Tavinho! - ralhei.
– Eu estava lá e uns caras apareceram. Usavam roupas de médico, mas não são médicos. A menos que sejam os médicos mais estúpidos da face da Terra. E eles tentaram me pegar. Eu consegui escapar, porque a lesma me avisou para tomar cuidado com os caras que estavam me vigiando há um tempo. Então eu fugi e me escondi em uma construção abandonada. Quando eu achei que a barra estava limpa, eles voltaram. Dessa vez com reforço. Eu até tentei fugir novamente, mas eles me pegaram e me trouxeram pra cá.
– Tenta explicar mais ou menos como é o lugar onde você está.
– Lembra o hospital, mas parece abandonado. Eu acho que talvez seja...
E antes que ele pudesse terminar a frase, um barulho ensurdecedor tomou conta da minha mente. Era um som tão estridente que parecia que ia explodir a minha cabeça. E então, tudo ficou escuro.