Chegaram ao anoitecer na casa de Cheng, que ofereceu, antes de tudo, um jantar para as duas garotas, uma lasanha que tinha acabado de preparar. Erika e Franziska aceitaram sem reclamar, afinal tudo que tinham comido naquele dia foi um rápido café da manhã.
Depois de servidas, Cheng tirou o avental e sentou à pequena mesa da cozinha, sorrindo ao ver aquelas duas garotas comendo com tanta vontade.
– Se voltaram... – disse ainda sem experimentar a comida – isso significa que descobriram o que faz com que Erika não morra.
– Uhum – disse sorrindo. É o medo, se não tenho medo, não morro. Simples, não é?
– Muito. O medo é uma forma de crença. Por exemplo, se você tem medo de vampiros, logo você acredita em sua existência. Se você não tem medo da morte, você não acredita que possa ser morta – comeu um pequeno pedaço, continuando. Entretanto, se você tiver medo, Erika, você morrerá. Tão simples como a forma de ficar viva, é a forma de matá-la.
Erika parou por um momento e ficou encarando o seu prato, entortou o lábio e ficou pensativa, tentava entender plenamente sua situação e como contorná-la. Franziska, por sua vez, a encarou por um breve momento e voltou a atacar sua comida.
Não disseram mais nada até todos terminarem de jantar. Cheng recolheu os pratos e começou a lavá-los na pia.
– Então, só preciso não ter medo? – disse, por fim, Erika.
– Acredito que sim – sorriu. Entretanto, como é uma pessoa que não tem medo de nada?
– Eu não sei – respondeu desanimada.
– Nem eu.
– Mas o que eu vou fazer agora? Já consegui entender que tudo isso é sério. Olhou para Franziska, apontando para ela. Essa aí quase meteu uma bala na minha cabeça hoje de tarde, você quase meteu uma hoje de manhã. E agora à noite, quem vai tentar meter uma bala na minha cabeça?
– Você.
– Eu? – riu. O que isso tem a ver? Eu não tenho medo de mim.
– Não tem? – desligou a torneira, enxugando as mãos. Andressa me contou sobre seu sonho, aquele que você se matava repetidas vezes. Não tem medo de acabar daquela forma? Cedendo a todos os desejos a ponto de não aguentar o peso na consciência e tirar a própria vida?
– Todos nós, pelo que me contam, passamos por isso. Por que Franziska não se matou? Ou você?
– A taxa de suicídio entre os de nosso circulo é de 90%. Nós somos o que sobrou de todos os outros que vieram antes de nós. Meu tutor se matou há três anos, após esquartejar uma turma da sétima série na qual seu filho estudava, depois de receber a notícia de que as crianças daquela turma abusavam do garoto. E seu filho hoje está em um hospital psiquiátrico... – suspirou e sentou à mesa novamente, encarando Erika. É difícil, para todos nós, contermos nossos maiores desejos, aqueles que mais nos atacam.
Franziska encarou Cheng e ajeitou os cabelos, se levantando. Naquele momento, Erika sentiu uma leve vibração no ambiente, semelhante à estática que sentimos ao aproximarmos de uma televisão.
– Cheng, ela já sabe disso! – cruzou os braços o encarando. Vamos passar para a parte em que ela impede que Eduard consiga matar a todos nós.
– Do que você tem medo, Erika? Tem medo de que Eduard vença e todos nós pereçamos?
– Na verdade não – sorriu sem vontade. Porque não me sinto tão relacionada a todos os outros seres humanos dessa forma. Sabe, senhor Cheng... – suspirou e encarou Franziska, que arqueou uma sobrancelha – não quero muito nessa vida e nunca cheguei a me importar com toda a humanidade – debruçou-se sobre a mesa. Sabe essas pessoas sem muita utilidade que existem por aí? Essas que têm um trabalho que não influencia ninguém, que têm uma rotina que não influencia ninguém... Eu sou mais ou menos esse tipo de pessoa.
– Entendo. E por que ainda não desistiu de tudo isso?
– Boa pergunta – respondeu sem ânimo.
A vibração aumentava e a atenção de Erika foi atraída para Franziska, que estava visivelmente nervosa, um semblante que Erika não conhecia, nem mesmo quando discutiu com sua irmã Andressa. Não era um nervosismo de raiva, mas de preocupação, talvez até de medo. Cheng também encarou a garota sem sorrir.
– Eu vou embora – disse Franziska, sem paciência. Quando terminar, me ligue que venho te buscar.
– Você vai me deixar sozinha aqui?
– Sim. Não precisa ter medo dele – apontou para Cheng que, finalmente, sorriu. Me ligue quando terminar.
Saiu em passos apressados antes que Erika retrucasse mais alguma coisa. Cheng sorriu e fez um sinal de negativo com a cabeça, encarando Erika.
– Não se importe com ela. Apenas está querendo cuidar da própria vida.
Depois de o roncar da moto se distanciar, a vibração diminuiu até sumir. Erika coçou a cabeça sem jeito e sem saber o que dizer. Cheng sorriu, como sempre, ao começar o que mais gostava de fazer, ensinar.
...
Cheng caminhava com Erika em uma praça de árvores pequenas e robustas, próxima a sua casa, graças à noite o frio agraciava as pessoas naquele momento. Enquanto caminhavam, Cheng conversava sobre sua vida, família e sobre algumas outras coisas, apenas para deixar Erika mais à vontade, para ela se familiarizar com aquela nova pessoa que agora fazia parte da sua vida. Após um tempo, sentaram em pequenos bancos de cimento, onde ouviam o trânsito monótono sem muita atenção.
– O que vou lhe dizer sobre a morte não é muita coisa – Cheng começou esfregando as mãos. Sempre considerei errada a ideia de Annabel de simular a morte com aquela droga, porque a experiência que você tem não é bem a de quase morte, mas é suficiente para você entender alguns pontos de você mesma.
– Eu não entendi muita coisa.
Cheng suspirou e continuou.
– Ninguém pode garantir, com cem por cento de certeza, o que é a morte. Do ponto de vista científico, vemos a morte como o cessar das atividades vitais do corpo. O corpo então morre e começa a definhar, até ser consumido pela terra. Já do ponto de vista espiritual, a morte é uma transição deste estado para outro. Alguns acreditam em céu e inferno, outros em reencarnação. Na medida em que o estudante adentra nesse assunto, ele percebe alguns fatos que são constantes em todas as religiões. Por exemplo, para você, o que é morte, ou melhor, o que acontece depois dela?
– Eu não quero parecer burra... Mas eu acredito que... – coçou a cabeça, pensativa. Na verdade... Eu não sei. Quando morri, ou quase morri, na primeira vez... Eu me encontrei na alma do mundo, como disse Andressa. E, em primeiro lugar, eu estava em uma neblina... gosmenta, pesada e negra... Depois, eu me vi envolvida dessa coisa, sem entender muito bem o que era. Então, eu não sei o que é céu e inferno, nem reencarnação porque... continuo aqui, não é mesmo? – sorriu. Então... acho que retornamos para a alma do mundo.
Cheng ficou em silêncio por um momento, sentado encarando o nada. Erika às vezes sorria, às vezes não, sem saber muito bem se havia acertado ou errado a resposta do homem. Começou a olhar o nada também, tentando imaginar o que Cheng pensava naquele momento, foi então que reparou no trânsito.
O trânsito para Erika era apenas um vai e vem de automóveis, mas, ao analisar, viu que não eram apenas automóveis, mas pessoas, cada qual com sua história, com sua vida, seus anseios e problemas. Cada qual precisando estar ali naquele momento para que possa chegar a algum lugar. Alguns tinham pressa, outros apenas iam. Alguns atrapalhavam, enquanto outros davam a preferência para aqueles com mais pressa. Erika sorriu sozinha ao começar a sentir melhor os seres humanos, não apenas como pacotes de carnes, mas como consciências.
– Cheng.
– Unh?
– Nós não morremos. Cheng sorriu, Erika continuou. Somos imortais, todos nós. Não é verdade? Nosso corpo morre, não nossa consciência. Nossa consciência continua, e continua... Quando eu estava no hospital, meu corpo estava tão ruim que atrapalhava a consciência, eu não pensava nem lembrava direito. Mas quando Annabel me deu aquela coisa, eu senti como... se minha consciência houvesse expandido. Entretanto meu corpo estava morto, de acordo com o que Annabel havia me dito. Então... a morte, na realidade, não existe.
– Exatamente – sorriu. Você entendeu mais rápido do que imaginei. Mas agora me explique, o que é vida?
Erika voltou a encarar o trânsito e a refletir sobre esse assunto. Imaginou o dia a dia das pessoas, suas rotinas sem graça, seus movimentos repetidos e robóticos, seus relacionamentos sem muito propósito, seus sonhos nunca alcançados... Todo esse pensamento a fez se lembrar de seus pais. Seus olhos encheram d'água ao imaginar o sofrimento deles ao ter perdido uma filha, ao imaginar a separação dos dois, ao ver como se estivesse lá, eles brigando e, por fim, cada um tomando seu rumo. Enquanto estava presente, isso não parecia ruim, agora, parecia um inferno. Cheng notou o estado da garota, mas não disse nada, esperou que tomasse seu próprio tempo.
Aos poucos, Erika começava a ver a pequena distância entre a morte e a vida, e também o imenso abismo que existia entre as duas.
– Vida? – Erika sorriu sínica. Se existe, é uma piada – balançava a cabeça negativamente enquanto falava, encarando o chão. Eu não sei mais o que é vida, antes eu vivia a minha... Na verdade, eu sobrevivia... Agora eu tenho de salvar a vida de todas as pessoas, apenas para que elas continuem em suas rotinas, em seus afazeres, em suas intriguinhas e bobeirinhas e coisinhas sem importância nenhuma – respirou fundo, fazendo uma breve pausa, que Cheng respeitou. Eu não sei por que se importam tanto em salvar a humanidade. Para quê? O que presta, o que precisa ser salvo aqui?
– Bom... a vida é interessante – sorriu, com um olhar compreensivo. Imagine um homem solitário, que ninguém conhece, vivendo em uma ilha e, de repente, esse homem morre. O que acontece ao mundo? Nada. Entretanto imagine que você morra, o que acontece ao mundo? Bom, ao mundo em si, não muita coisa, mas e a sua família? Amigos? Namorado? Imagine se Eisten tivesse morrido antes mesmo de se tornar um gênio e ter seu nome na história. Como seria o mundo? A vida, Erika, é uma teia, em que o meu relacionamento com você prova que você está viva, que eu estou vivo, e que tudo mais importa. Ainda que não façamos uma grande diferença ao mundo, fazemos a nós, aqui e agora. Dessa forma, imagine eu e você, morrendo nesse exato momento. Eu posso contabilizar ao menos vinte pessoas que vão sentir sua morte e, em questão a mim, que sou um professor, imagine meus alunos, colegas, família... A vida, no sentido que o ser humano precisa entender, é isso, são os relacionamentos, a relação entre todos nós como um todo, como uma única entidade, como uma única existência. A humanidade. E é essa humanidade que, por Eduard pensar como você e não ver mais um motivo para a sua existência, quer simplesmente dizimá-la.
Erika ficou em silêncio, absorvendo o que Cheng havia lhe dito e também refletindo sobre aquilo. Para Erika, os relacionamentos não faziam muita diferença no mundo, mas, a partir dessa reflexão, começou a notar pequenos detalhes que antes não havia prestado atenção, detalhes que deixou passar em sua vida, em suas pequenas e poucas amizades, em Lídia, em um garoto não muito simpático, que salvou uma professora de sua escola.
Erika levantou, enfiou as mãos no bolso da calça e encarou Cheng, que levantou também. Ela sentia que precisava fazer algo, mas ainda não havia entendido o quê. Aquele sentimento que Cheng havia despertado em Erika começou a despertar, e em tudo que ela conseguia pensar era em Franziska e naquele garoto.
– Eu imagino que esteja pensando no que eu lhe disse. Sabe, sempre valorizei aqueles ao meu redor, principalmente meus alunos. Ser um instrumento do ensino, repassar o conhecimento para as outras pessoas, perpetuar a história... – Cheng sorriu para Erika. Desculpe, divaguei por um momento. Então, o que pretende fazer?
– O que eu pretendo eu ainda não sei, mas, no momento... Cheng, e se eu me importar com a humanidade? Isso ajudaria? Se eu me importasse com tudo que acontece, com os seres vivos, com as pessoas...
– Sim. Na verdade, você só vai conseguir isso no momento que entender a vida. Quando perceber a necessidade da vivência, aí sim irá entender o que é realmente a morte – suspirou e olhou as pessoas caminhando naquela praça. Ainda que pareça supérfluo e desnecessário, eu lhe digo, siga aquelas palavras tão conhecidas, "ame ao próximo, assim como ama a ti mesmo".
– Meu Deus! Agora você acabou com tudo, a humanidade está perdida.
Cheng riu e tocou o ombro de Erika para lhe chamar atenção, então começou a explicar, pausadamente, o sentido dessa frase, a olhando nos olhos.
– Erika, você não tem de amar o próximo da mesma forma que se ama. Você tem de amar o próximo 'e' a si mesma. Você precisa perpetuar o amor a todos os seres humanos, mas como você vai amar dessa forma, se não se ama? Se não conhece o amor próprio, como pode saber que o que sente pelo próximo é realmente amor? É isso que essa palavra quer dizer.
– Você ama a humanidade? Assim, mais cedo você me disse que faz umas coisas bem estranhas...
– Sim, e por isso faço o que faço. Entenda... Eduard não está completamente errado. Há pessoas nesse mundo que precisam ser mortas, recicladas. Mas não é toda a humanidade. Veja como o pensamento dele é sem fundamento. Se todos nós morrêssemos, se a humanidade recomeçasse do zero, não iríamos nós, humanos, repetir nossos erros? Afinal, é do erro que vem a experiência.
– Entendo... – disse Erika, por fim, olhando para o céu de poucas estrelas. Eu não preciso aprender sobre a morte, preciso aprender sobre o amor. Mas eu preciso de uma forma de não morrer, digo, de meu corpo não sofrer nenhuma espécie de dano.
– Isso você já sabe, vem da ideia do seu desejo e da sua coragem – apontou para seu bolso. Ligue para sua amiga vir te buscar e volte daqui a uma semana, reflita sobre o que aprendeu hoje e procure encontrar a beleza e o amor em todas as pessoas ao seu redor.
– Todas?
– Você tem de salvar a humanidade, não um ou outro.
Cheng deixou Erika na praça sem se despedir, apenas acenando com a mão, Erika sentou no banco novamente e ligou para Franziska, aliviada por ter entendido, finalmente, alguma coisa.
...
Na manhã do outro dia, Erika se arrumou, ficou bonita para si mesma em frente ao espelho. Pegou algumas roupas mais bonitas de Franziska e se arrumou como se fosse para uma festa, ainda que tenha se vestido de forma comportada, apenas com uma jaqueta branca e uma blusa preta, prendeu o cabelo, colocou um brinco e passou uma leve maquiagem. Sorriu para si em frente ao espelho, sentindo-se mais viva do que nos dias anteriores.
Preparou um café da manhã simples, na verdade, não sabia fazer muita coisa, então preparou apenas sanduíches, já que, como reclamou em seu diário, Franziska não tinha uma fruta sequer em casa.
Franziska parou na porta da cozinha, ainda vestida com seu pijama branco com coelhinhos azuis, e sorriu para Erika, toda arrumada, terminando de preparar um dos sanduíches.
– Bom dia, Franziska, dormiu bem?
– Você está mais vibrante... – respondeu, sentando à mesa. Está feliz, sorridente... Você transou ontem?
– O quê?! Claro que não!
– Unh... – coçou o cabelo bagunçado e se debruçou na mesa, bocejando. O que aconteceu, então?
– Eu entendi o que preciso fazer, foi isso que aconteceu. É tão simples e óbvio, mas eu nunca tinha parado para pensar e perceber isso.
– Não me surpreende... – disse desanimada.
– Eu só preciso amar.
Houve um silêncio naquela cozinha, Franziska levantou a cabeça e encarou Erika um tanto confusa, um tanto nervosa. Ela, por sua vez, sorriu e colocou o prato com o sanduíche na frente da amiga, alcançando um suco encaixotado para ela. Franziska suspirou e deu de ombros, dando uma pequena mordida no sanduíche.
– Eu sou heterossexual – disse, quebrando o silêncio.
Erika riu e sentou à mesa, deixando o prato em sua frente e servindo-se de um copo de leite. Leite que mais uns poucos dias alcançaria o prazo de validade.
– Eu sou... Eu não sei –riu. Não sei se sou lésbica, se sou hetero... Sei que o Vazio me fez experimentar algumas meninas já. Mas fica tranquila, Franziska, eu não mordo.
– Ainda bem... – mordeu o sanduíche.
– Só se você pedir – Franziska quase engasgou com aquele pedaço e Erika riu da garota a sua frente, que mesmo portando todo aquele ar de superioridade, ainda era um ser humano igual a ela, com suas qualidades e virtudes. Mas eu sei que não vai acontecer... Você deve ter um namorado bem legal e tal... A não ser, é claro, que o seu Vazio cresça, lhe faça desejar coisas que...
– Entendi. Obrigada, mas não – negou, fechando os olhos. Eu tenho um amor, sim, mas não é meu namorado... Não é correspondido – suspirou, abrindo os olhos e comendo mais um pedaço do sanduíche. Meu Deus, como eu quero que aquele homem me dê prazer! Assim, de forma gentil, mas firme – sorriu, depois riu ao ver Erika a encarando. O que foi? Desculpa por ter falado isso... Não vou entrar em detalhes pessoais.
– Tudo bem, eu não ligo, Franziska. Já que vamos passar tanto tempo juntas, não vejo problema em me dizer sobre você.
– Quem sabe em outra hora. Então... o que vamos fazer hoje?
– Não ria, tudo bem? Preciso aprender a amar. Assim, de modo geral, toda a humanidade. Preciso de um motivo para salvá-la.
– Você salvaria a única pessoa que ama?
– Acredito que sim. Mas não amo ninguém... Não dessa forma, assim, de namorar e tal.
– Vamos arranjar um homem para você! Ou uma mulher, sei lá – deu de ombros. Já é um começo.
– Boa ideia! Vamos à boate tomar uma tequila e dançar a noite inteira! – levantou e começou a dançar, devagar. Ao redor de todas aquelas pessoas bonitas, gostosas... Unh... Posso até ouvir a música daqui.
– Má ideia. Da última vez, minha irmã teve de te buscar bêbada em um buraco que talvez nem Deus soubesse que existia.
– Eu vou – mostrou a língua para Franziska, com as mãos na cintura. Com ou sem você. Você que fique aí se lamentando pelo amor que não tem, eu vou é me divertir, tirar o stress desses dias, afinal, Cheng disse para eu voltar apenas uma semana depois.
– Uma semana?! – Franziska se levantou, passando as duas mãos no rosto. No que aquele chinês imbecil estava pensando? Uma semana é muito tempo!
– Uma semana, lá lá lá... – disse Erika de forma infantil. Agora eu vou aproveitar minha vida enquanto você fica se amargando aí.
– Eu preciso sair, você fique aqui – apontou para o chão. Não saia daqui, se quiser ir a sua boate a noite, que vá, mas hoje você fica aqui pela parte do dia. Combinado?
– Combinado.
...
Já passava da hora do almoço e Erika estava entediada, passando os canais da televisão um por um, sem ânimo. Corrida de carro, clipes de música, filmes, séries extremamente repetidas, programas sem sentido... Até que parou em um que lhe chamou a atenção, um canal adulto. Erika sorriu ao ver a cena pornô na tela e olhou para os lados, como alguém que está fazendo algo errado e não quer ser pego. Olhou a porta da sala que é a única entrada e deu de ombros, imaginou que ouviria a moto de Franziska chegar de qualquer forma. Desabotoou a calça e desceu sua mão, olhando mais uma vez ao redor. Sentia-se ainda mais excitada por estar na casa de Franziska, na sensação de poder ser pega e na amiga, que pensava de todas as formas que já fez com as outras garotas da boate.
No final da tarde, Erika havia pegado uma caixa de suco e misturado com vodca, que encontrou na geladeira. Tomava despreocupada sentada na entrada da casa, olhando o movimento. Aquele momento diminuiu um pouco a vontade de ir à boate, assim como ter se satisfeito mais cedo também ajudou, mas, naquele momento, sentia-se tranquila, sem preocupações. Descansava no pequeno banco de madeira, ao som lento de uma banda que costumava ouvir para dormir.
A noite chegou, e Franziska não. Erika já estava entorpecida pela vodca e estava deitada na sala, com a televisão ligada em um jogo de Hockey, no mudo, ouvindo suas músicas em seu iPod. Por um momento, pensou em ligar para a amiga, mas preferiu deixá-la, afinal, provavelmente, só estava cuidando dos próprios assuntos. Daquela forma preguiçosa e cansada, se virou no sofá e ficou encarando o jogo, sem prestar nenhuma atenção nele, enquanto sua mente vagava em pensamentos que variavam de sobre como iria encontrar um amor por toda a humanidade, pela Franziska, sua nova vida e antiga, e pequenas girafas voadoras com asas de besouro.
...
Erika acordou coberta por um lençol, a luz da manhã entrava pelas frestas da janela fechada. Sorriu ao saber que Franziska havia voltado e, principalmente, por a cobrir, sentindo nesse ato singelo uma atenção que a amiga tinha por ela. Aninhou-se preguiçosa no sofá e abraçou uma parte do lençol, sentindo um leve perfume de erva-doce, cheiro do creme de pele que Franziska costumava usar.
Por Franziska compensava lutar, compensava passar por aquilo tudo apenas para deixá-la viva. Não sabia muito sobre ela, na verdade, praticamente nada, apenas desse estranho sentimento ou obrigação que tinha de cuidar de Erika, mas já era suficiente para ela despertar um apego por Franziska.
Sentou, por fim, se espreguiçando, mas ainda embrulhada no lençol. Notou que ainda estava com os fones no ouvido e a televisão continuava ligada, realmente Franziska não quis acordá-la. Da mesma forma que no dia passado, Erika foi até a cozinha preparar um café da manhã para as duas, mesmo que as opções não fossem tão grandes a ponto de poder mudar o cardápio.
Franziska chegou na cozinha um pouco depois de Erika ter terminado o café da manhã, estava um tanto quanto revigorada, se comparada aos dias anteriores, e, dessa vez, ao menos se penteou ao acordar, mas ainda estava de pijamas. Não conversaram muito pela manhã, apenas trocaram algumas palavras sem muita importância e, quase na hora do almoço, novamente Franziska deixou Erika em casa, mas disse que retornaria ao entardecer.
Sem muita animação, Erika pediu uma pizza pequena para almoçar, que comeu sentada no sofá assistindo a mais uma reprise de algum seriado. Sentiu vontade de ligar para Lídia, para saber como estava a garota, se ela ainda estava "disponível", mas dada como morta isso era impossível. Novamente Erika sintonizou nos canais adultos e, entre uma dose de vodca e outra, satisfazia seus pequenos desejos, que buscavam o prazer da carne.
Quando Franziska chegou em casa ao anoitecer, encontrou uma Erika cansada e um tanto bêbada, deitada no sofá assistindo a um documentário sobre criaturas do mar. Franziska tirou a jaqueta e a boina, pendurando no cabideiro. Cruzou os braços e ficou encarando Erika.
– Ei, Caso Perdido! Ainda está viva?
– Unh? – Erika levantou a cabeça e sorriu, deitando novamente. Uhum. Onde esteve esse tempo todo, já estava ficando com saudades.
– Corta essa! – foi até ela e sentou no outro sofá. Estive com Aquiles e os outros, procurando uma forma de apressar esse seu aprendizado. Eu continuo achando que isso é um caso perdido.
– Eu também – sentou e esfregou os olhos, ainda sorrindo. Eu quero mais é aproveitar o que me resta antes que tudo acabe, você não quer?
– Eu não quero que tudo acabe – disse séria. Eu quero que você tome uma providência quanto a essa situação.
– Uhum, amanhã. Porque agora nós vamos... ser duas amigas próximas... brincando de coisas...
– Não. Agora você vai dormir, aposto que ficou bebendo a tarde toda.
– Entre outras coisas – riu. Esses canais adultos passam coisas tão legais... Tinha um filme que...
– Me poupe!
Franziska levantou nervosa e foi à cozinha, Erika esfregou as mãos no rosto amortecido e suspirou.
Em seu diário, Erika explicou que tudo que queria era se divertir um pouco, pois estava estressada com a situação em que se encontrava. Sentia falta dos bons momentos com Lídia, com sua família, com sua escola. Franziska não entendia isso, acho que nunca entendeu. É claro que ser assediada aqui e ali causa certo desconforto, mas o que Erika poderia fazer? Afinal, com o Vazio se alastrando, conter certos impulsos se tornava uma tarefa complicada.
Todos nós, em algum momento, nos sentimos impotentes contra a onda de desejos incessantes que nos ataca. Enquanto uma pessoa que não manipula o Vazio às vezes simplesmente escolhe não fazer tal coisa, nós não temos esse privilégio. Lutar contra nossos desejos é como lutar contra um vício, um vício que já está tão enraizado em nossa alma, que é mais fácil simplesmente ceder e aproveitar o momento de paz em que a dor se vai.
Franziska fumava um cigarro sentada à janela, olhando o céu noturno que começava a mostrar as primeiras estrelas em seu negro azul. Erika estava sentada quase abaixo da janela, abraçada nas próprias pernas, com o nariz entre os joelhos, sentindo aquele entorpecimento passar aos poucos. Ficaram em silêncio por quase dez minutos, cada uma tendo seus próprios pensamentos, tentando encontrar respostas para as perguntas de suas vidas. Até que Erika quebrou o silêncio, sorrindo um tanto nostálgica.
– Eu não preciso de um motivo para ajudar os outros – falou com a voz baixa. As pessoas precisam ser ajudadas, é simples assim. Eu não precisei de um motivo para salvar Lídia, aquele rapaz da minha escola não precisou de um motivo para salvar a mulher que iria ser estuprada... Por que seria diferente, então, comigo, salvar todo o mundo?
– É verdade – amassou o resto do cigarro em um cinzeiro que deixava próximo à janela.
– Amanhã eu preciso voltar para a minha escola, preciso falar com esse garoto.
Franziska acendeu outro cigarro sorrindo, dando uma tragada longa e soltando a fumaça lentamente para cima.
– Certo, Caso Perdido, e como você pretende fazer isso?
– Não sei, por uma peruca – sorriu. Eu não preciso falar com todo mundo, só com ele.
– Sei... Não seria mais fácil cortarmos o seu cabelo e pintarmos de preto? Assim você ia ficar despreocupada quanto aos outros também – deu uma tragada e sorriu. Isso realçaria seus olhos azuis.
– Eu sei que você está falando para me animar. Cortar meu cabelo curto... pintar... – pensou por um momento e olhou para Franziska. Você acha mesmo?
– Acho – riu. Por quê? Você vai achar que estou dando em cima de você?
– Não... – voltou a colocar seu nariz entre os joelhos. É que eu acho você fria demais para pensar em gostos como esses.
Franziska ficou calada e cutucou Erika com o pé.
– Você, Caso Perdido, que é emotiva demais. Só porque eu sou séria, não significa que não possa ter gostos e sentimentos. Enfim... amanhã pela manhã compraremos sua peruca. E depois vamos procurar esse tal rapaz – deixou o cigarro pendurado na boca e pegou o celular. Vamos ver no que seu plano vai dar.
– Preciso saber como ele pensa. Preciso falar com ele... Ei, Franziska, e aquela ideia, ainda está de pé?
– Qual ideia?
– Eu, você, uma cama quen... – Franziska deu outro cutucão com o pé em Erika, interrompendo o fim da frase. Acho que isso é um não...
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Fico grato por ter lido, até a proxima parte.
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