- Se eu sou lésbica? Desde quando você não sabe disso?
- Obturações?
- Humm... Duas.
- Usou ou faz uso de algum tipo de droga lícita ou ilícita nos últimos três meses?
- Três meses não.
- Costuma ter quantos parceiros sexuais em média ao longo de um ano?
- No máximo duas, põe aí. Eu não encaro essas coisas de forma tão mecânica – disse a mulher, terminando o café.
- Algum tipo de equipamento ou implante no corpo, colocado há menos de dois anos?
- Não.
- Para qual time você torce?
- Que tipos de perguntas são essas, Antônio? – Estranhou a garota, aumentando levemente o tom da voz. O rapaz calvo à sua frente olhou para as mesas em volta por um instante, de forma instintiva, para se certificar de que estava tudo calmo. Mesmo sabendo que, em sua maioria, se encontravam vazias...
- Não fui eu quem redigiu essa porcaria de contrato. Olha essas aqui: "possui alergia a algum tipo de madeira", "possui implantes de silicone", "tem daltonismo"...
- Qual o motivo dessas...
- Shhh!
- ...
- Certo, estou vendo que você já perdeu a paciência e vou finalizar isso aqui. As primeiras só você poderia responder. Não se preocupe.
- Você é um amor.
- Não sou não. Só sei que está atrasada. No almoço fechamos isso, e tudo certo.
Melissa levantou daquela cadeira, saindo rapidamente, para o escritório. Não pagou o café, esqueceu. Antônio era um corretor amigo, desde os tempos do colégio e estava ajudando a mulher a alugar o lugar para passar o feriado, que começaria na sexta-feira e se estenderia até a segunda. Ele observou Melissa até esta desaparecer quando a porta fechou atrás de si. Naquele momento ele sabia que havia fechado negócio.
Melissa se dirigiu ao ponto, o trabalho ficava a um quilômetro dali. Mas era a segunda vez que chegava atrasada em uma semana. Ao adentrar o escritório, ouviu de Marta, sua chefe branquela e cheia de sardas, mais uma vez a mesma ladainha. Seu tempo estava acabando.
- Você quer bolinhos hoje? – disse Marta, após o sermão de "não gosto quando você se atrasa", como se nada tivesse acontecido. Melissa não ouviu. Apenas respondeu mecanicamente, negando, balançando a cabeça. Naquele momento ela estava mais preocupada em morder o lábio, por dentro. Ao sentir o gosto de sangue, parou.
Melissa trabalhava em um escritório no centro da cidade. Sua profissão era a de designer de interiores, o que exercia há pouco mais de cinco anos, quando chegou ali. Agora ela observava Marta conversando com alguém no telefone. As horas passaram e ela não percebeu, finalizando dois projetos de apartamentos próximos. Voltou para encontrar Antônio, dessa vez em uma lanchonete ali nas redondezas. Ela tinha pressa...
- Mas por que cacete você quer alugar uma porra de um Chevette? Isso é brincadeira?
- Não.
- Melissa, estamos em 2017! Quer meu carro emprestado? Eu tenho três!
- Não precisa – disse ela, áspera - coisa de criança. Você tem só vinte e cinco anos, ainda cheira a leite. Não iria entender.
O rapaz gargalhou.
- Você não é nem quatro anos mais velha, não é?
- E então – disse ela, abrindo a bolsa. – Morre em quatrocentos mesmo ou vai me enrolar?
- Certo. Quatrocentos. Eu espero realmente que seja do seu agrado. Para mim é, apesar de não ir muito lá nos últimos tempos. É a única cabana que alugo e pelas condições, por enquanto não penso em mudar isso.
- Claro que sim. E isso é a última coisa com a qual me preocuparia agora.
- Não entendi – disse Antônio erguendo os ombros. - Qual o motivo da afirmação? Não me diga que está pensando em dar uma festa lá. Olhe lá hein...
A garota entregou quatro notas novas de cem ao amigo.
- Meus tempos de festa ficaram lá atrás, quando eu tinha uns dezessete anos e era cheia de amizades falsas, e fazia tudo por elas. Agora eu não minto tanto quanto antes, nem tenho amizades. Colega.
- Sei – Antônio sorriu. – Você nunca me enganou. Sua viciada.
- Cara, vai para o inferno!
- Vou repetir pela última vez, no quilômetro 35 você pega um desvio à direita. É isso mesmo. Vai ver um poço, e siga em frente uns cinco quilômetros, sempre reto. Após isso você verá um portão, sempre aberto. O nome da propriedade é Jacarandá; verá uma placa velha, e o nome está recém pintado. A casinha é a única em um raio de uns dois ou três quilômetros.
- Você já disse isso trinta vezes. Já fez um mapa à mão, já mandou prints de cada centímetro do caminho.
- É por que ainda não me acostumei com a ideia de você querer passar todo o fim de semana sozinha em um lugar praticamente deserto. Se fosse perigoso lá eu nem estaria aqui tendo essa conversa.
- Eu sei. Obrigado por se preocupar.
Melissa saiu mais uma vez sem olhar para trás. Seguiu para a segunda jornada do dia, no escritório. Naquela noite, ao chegar em casa, não prestou atenção nos recados da secretária, nem nas mensagens do celular. Não mais naquele dia. O feriado seria uma opção interessante para relaxar, ainda que fossem apenas três dias. Mas isso era para pessoas... As outras pessoas. Melissa sentou-se em frente à TV e olhou em volta. Tudo escuro, apenas a claridade daquele aparelho iluminando seu rosto. Colocou um pouco de conhaque de gengibre em um copo, misturado a outra bebida qualquer, que ela não quis saber o que era. Adormeceu no sofá. O telefone tocou, minutos depois.
- Alô? – disse a garota sonolenta, mas levemente irritada. Qual imbecil ligaria às onze da noite?
- Ah sim, claro Antônio. As chaves estão sob o carpete. Entendi, mas acho que eu deduziria isso assim mesmo, não é? Não, não estava dormindo. Obrigado, até segunda! Sim, sim, vou aproveitar bem.
Agora talvez demorasse mais para dormir. Maldito Antônio. Tomou outro gole e continuou tentando reparar na TV. Mas olhem só, bem naquele dia a maldita TV, o maldito canal estava "em manutenção", como explicava o letreiro branco destacados das listras verticais coloridas. O som da frequência de 60 hz tomou conta do ambiente, e ela aumentou até o máximo. "Ainda não. Ainda não é o momento de enlouquecer por completo". Pensou a garota. Diminuiu o volume novamente.
Melissa era uma garota negra, esguia e atlética. Era o que observava no espelho, enquanto se preparava para dormir. Seus olhos esverdeados eram a única herança que o pai lhe deixou, antes de partir para algum estado do sul que ela agora nem mesmo lembrava mais qual era. Mas sua lembrança agora se resumia a isso, aos olhos, pois até as fotos haviam sumido. Fora criada pela mãe e pelo padrasto, recebera carinho, uma condição folgada. Bons amigos, boas namoradas, bons estudos. Nunca se sentiu realmente sozinha, porém também nunca também se sentiu feliz. Não que isso fosse algo que buscasse, mas o nível de euforia e felicidade que muitos à sua volta costumavam demonstrar, para ela não iam muito além de demonstração forçada. De um tempo para cá, algo estava crescendo. Ela tentara esconder ao máximo isso, e estava bem convencida de seu sucesso, e justamente esse sucesso em esconder estava fazendo mal, já que ninguém notava o que ocorria.
Há meses ninguém mais entrava naquela casa. Há meses a casa não via uma vassoura. Melissa já tinha surtos estranhos, e não via o tempo passando. Ficava horas olhando para a parede, em outros momentos levantava da cama apenas para ir deitar no sofá. Às vezes dormia o dia todo, outras passava dias sem pregar os olhos. Dizia para si mesma estar no "piloto automático", fosse lá o que isso quisesse dizer, mas até esta fase já havia se deteriorado. Acordar era tão dramático quanto nascer de novo, diariamente. Em sua cama quebrada, havia um afundamento no colchão e ela já se encaixava perfeitamente naquele lugar, no quarto frio, sujo, bagunçado e úmido. Só ficava com ódio extremo quando tinha a maldita enxaqueca. Seu ódio, por perder um dia inteiro deitada no escuro, só melhorando depois que colocava tudo para fora, era algo o qual ela possuía o mais extremo asco que um ser humano pode ter.
A garota ficou mexendo no controle remoto, passando aleatoriamente por canais. Parou em um que lhe chamou atenção pelo mais alto volume; um canal tosco. Ali se via um programa em que um patético pastor fingia exorcizar uma atriz contratada diante de alguns milhares de tolos. Um desses programas que ela nunca via, mas esse em especial parecia bem engraçado. A atriz era boa dessa vez, e parecia que sua interpretação havia excedido o cachê, uma vez que o tal pastor estava apanhando! Boa atuação, moça. Concluiu Melissa. Se aquelas coisas fossem realmente verdade, ela iria direto para o inferno, pois nunca, em nenhum momento, havia acreditado na existência de uma divindade. Muito menos de pastores. Por isso desligou a TV em menos de 20 segundos assistindo aquilo.
Melissa aconchegou-se em seu local de costume; em sua cama sem lençol e com um colchão sujo e mofado. Colocou a almofada entre as pernas, adormecendo em posição fetal, cabelo solto. Era engraçado, uma arquiteta de interiores tão dedicada dormindo em um quarto onde não se distinguiam mais as roupas espalhadas dos lençóis. Seria Melissa uma acumuladora? Não. A coisa já havia passado desse ponto também. Acumuladores estão presos a algo, e Melissa não estava presa a nada. Nem a sí mesma. Aliás, na verdade, estava presa a uma ideia. Já não tinha mais receio de pensar, não tinha pudor de imaginar, e talvez não tivesse nem mesmo dificuldade em conversar com alguém sobre seu simples desejo naqueles tempos: O suicídio.