Já era aproximadamente sete horas da noite quando Martha, com seu filho recém-nascido nos braços, e Euclides, seu marido, resolveram sair de casa. Eles iam até a casa da irmã de Martha, que não ficava muito longe do pobre casebre em que viviam.
Eles moravam no interior de Minas Gerais, e levavam uma vida difícil na roça. Nunca havia comida suficiente para alimentá-los, e como a irmã mais nova de Martha, Mara, tinha se casado recentemente com um homem abastado, era na casa dela que eles marcavam presença quase toda noite.
O vento frio dançava pela noite escura e tranquila. A única coisa que eles podiam ouvir era os seus próprios passos. O céu estava tingido de um azul muito escuro, quase preto, e lá em cima, uma lua cheia enfeitava a paisagem.
Martha ajustou a manta vermelha-escarlate que cobria seu filho e imaginou se deveria ter pego um pano mais quente para cobrir a criança. Se a mulher não estivesse vendo o marido andar na sua frente, ela nem notaria a presença do homem. A boca dele era um túmulo, mas ela não desconfiava que havia algo de incomum nisso, era só o jeito dele, com certeza estava muito cansado depois do trabalho árduo no campo. Enquanto ela observava o marido, pensou o quão sortuda ela era por ter se casado com um homem tão bonito. Ela, diferente da irmã, escolhera Euclides pelo o que ele tinha no coração, não no bolso.
Tanto Martha quanto Euclides eram consideravelmente jovens, não passavam dos trinta anos cada um, mas Martha aparentava ter uns bons 35 anos por causa dos anos de trabalho duro que ela já tinha enfrentado. Euclides, por sua vez, parecia nunca ter tocado em uma pá.
Quando faltava apenas alguns metros para chegarem na casa de Claúdia, e já podiam avistar o grande portão de ferro da propriedade, Euclides disse:
- Mulher, eu preciso fazer minhas necessidades, vo ali no mato.
- Pois vá, eu espero ocê lá dentro.
Martha observou enquanto o seu marido entrava no matagal. Não demorou muito pra ela abrir o portão e entrar. Chegando lá ela encheu a barriga com tudo que podia, Euclides não se importava se ela comesse antes da volta dele, ele sabia que ela sonhava o dia todo com a refeição. Entretanto, ela achou muito estranho o marido não ter voltado até aquela hora.
Esperou e esperou, mas ele nunca chegava. Quando já passava das nove horas da noite, ela finalmente decidiu sair pra procurar o marido. Pegou seu filho no colo, se despediu de Mara e Augusto - o marido de sua irmã - e foi mata adentro procurar pelo homem.
Ela gritou o nome de Euclides muitas vezes, mas nenhuma resposta vinha. Martha já estava pensando seriamente em dar meia-volta e ir pra casa quando algo a fez pular pra trás. Ouviu o pior som de sua vida, uma mistura de grunhidos, com grasnados e algo parecido com ossos quebrando. Não pensou duas vezes, correu o mais rápido possível na tentativa de sair dali. Mas havia um problema. Ela estava fazendo muito barulho quebrando caules enquanto corria, e por isso, não demorou muito para despertar a atenção do que estava emitindo aquele horrível som.
Então ela avistou a coisa mais horrenda que já tinha visto. No meio do matagal havia uma criatura bípede, que mesmo corcunda, possuía uns dois metros de altura. Seu pelo eram escuros e grossos. Seus olhos eram amarelos dourados, e suas orelhas eram tão grandes que se chocavam uma com a outra enquanto a besta se movia.
Quando a fera detectou a presença de Martha, começou a correr imediatamente na direção da mesma. Martha seguiu na direção da casa da irmã, que ficava mais próximo do ponto em que ela estava do que o casebre dela.
O lobisomem - ela decidira em sua cabeça que se tratava dessa criatura - corria pelo menos três vezes mais rápido que ela, destruindo tudo pelo caminho. Dava pra perceber pelos gritos enfurecidos dele que ele não via a hora de colocar suas longas garras no pescoço de Martha.
Finalmente ela chegou no grande portão da propriedade de Augusto e Mara. Gritou e gritou, mas ninguém veio socorrê-la. Era óbvio que eles já tinham ido se deitar, certamente já passava das dez horas da noite e o povo da roça dormia bastante cedo.
A criatura estava bem perto agora, quase a alcançando. Não tinha pra onde ela correr e seu corpo já estava todo dolorido, não só por ter se chocado com galhos por todo canto, mas também porque ela havia tido um bebê recentemente. A casa de Mara era a única que ficava naquela rua deserta, de um lado havia uma mata e do outro um milharal, e de qualquer forma ela tinha que passar pela besta pra chegar do outro lado. O desespero bateu e ela agarrou seu filho. Não, ela não podia deixar ele morrer daquela forma, tinha que ter um jeito. Olhou para trás, a besta estava à menos de dez metros atrás dela. Só tinha uma opção.
Ela subiu no portão o mais rápido que pôde. Era uma tarefa difícil sozinha, mas quase impossível com uma criança no colo. Ela segurou o menino o mais forte que pôde e orou para que seu Deus os ajudassem.
Então a fera chegou ao seu encontro. A criatura tentava subir no alto portão mas suas garras deslizavam pelo ferro e caiam novamente no chão de terra. O animal - se é que era um animal - mordeu frustado a manta do recém-nascido enquanto Martha agarrava seu filho e tentava deixar ele o mais longe possível da besta. Foi quando ela ouviu o tiro. Um buraco se abriu na perna da criatura e o bicho correu para o mato.
***
- Eu disse pra ocê me esperar na casa da sua irmã, mulher! - disse Euclides enfurecido pela estupidez de sua esposa. - Ocê teve muita sorte do Augusto ter aparecido bem na hora, um bicho desses te faria um estrago!
- Eu não correria risco se ocê não tivesse demorado tanto! Aonde já se viu demorar quatro horas para se esvaziar! - retrucou Martha.
- Ocê sabe que eu tenho problemas, mulher! Agora deixe de história e venha me fazer um cafuné.
Martha deitou na velha cama doada por Mara, posicionando a cabeça de Euclides no seu colo e acariciando os cabelos escuros do mesmo.
Euclides deu um sorriso para a esposa. Foi quando ela viu, ali nos seus dentes, um fiapo vermelho escarlate, que com certeza pertencia a manta de seu filho.
Oi. Escrevi esse conto com base em um relato que minha vó sempre me contava e eu amava ouvir. Não é muito meu estilo mas enquanto estava escrevendo me veio na mente muitas memórias boas da minha vó, que hoje infelizmente é falecida. Obrigada por ler até aqui. Se sentir vontade, deixe sua opinião, ela é muito importante para mim <3