FRANK
Tentei evitar que minha atenção se desviasse para o grupo que agora se separava levando Hazel com eles. Seria super protetor de minha parte eu ficar preocupado mesmo sabendo que ela consegue se virar? Muita coisa aconteceu recentemente. Às vezes parece até que foi ontem que ficávamos no Acampamento Júpiter, parece até que foi ontem que eu vivia com a minha avó. Tudo mudou muito. O grupo de amigos aumentou e diminuiu. E aqui estamos nós mais uma vez enfrentando um monstro.
Sam havia se juntando à mim e à Anúbis no combate com o cachorro de Odin mas... acho que eles pensavam o mesmo que eu e o mesmo que Reyna pensava. Nenhum de nós atacava o animal à não ser que ele nos atacasse. Infelizmente, isso era algo que ele estava muito interessado em fazer.
- Como vamos pegar um cachorro enorme e brigão como esse inteiro? - perguntou Sam - De forma que fiquemos inteiros também, preferencialmente.
- Temos que pensar em um jeito de acalmá-lo pelo menos - disse Reyna que evitava se aproximar do conflito provavelmente pensando no que fazer.
- Está machucado - disse Anúbis notando os ferimentos que sangravam, a maioria já estava lá antes.
- Talvez se tentarem ser menos agressivos? - sugeriu Amir do cantinho dele tentando se manter o mais longe possível da luta - Usar menos dentes, garras e essas coisas.
O enorme cachorro rosnava e sangue pingava de sua boca. Eu, Sam e Anúbis o cercavamos. Cada um em uma ponta, formando um triângulo. Como se quisesse nos desafiar a lidar com ele sem usar artifícios mais violentos, o enorme cão acelerou em direção à Sam com a boca bem aberta pronto para devorá-la. Em outra saída, me enrolei em uma das patas dele já que eu estava na forma de um dragão chinês. E assim, repentinamente, ele parou de andar e quase caiu com a freada brusca. Não gostando do jeito que era tratado, o cão rosnava e latia. Ele era bem forte. Acho que eu não esperaria menos de um cachorro de Odin.
Entretanto, achei estranho ele ter parado de andar. Do jeito que eu o agarrava, seria mais possível ele ter caído de lado no chão. Notei, meio segundo depois, que ele estava envolto em tiras de pano brancas que me lembraram um pouco papel higiênico. Tentei olhar qual era a origem delas e vi que elas vinham de Anúbis que as segurava com força em ambas as mãos. Ele havia voltado a normal, ou melhor... não sei mais o que seria "normal" para ele. Talvez como consequência da força bruta que o animal emanava, a aparência de Anúbis tinha mudado. Sim, eu ainda podia ver o adolescente que me lembrava muito Nico, mas era como se esse adolescente estivesse por dentro de um segundo ser. Levemente maior, roupas de época, mesmo porte físico mas com o diferencial de ter uma cabeça de chacal.
- Temos que o acalmar! Não o deixar ainda mais irritado! - exclamou Sam, também de volta na forma normal.
- Odeio isso tanto quanto você. Talvez até mais. - reclamou ele e eu notei o que ele fazia, usava as faixas de pano para impedir que o animal se começasse outra briga.
Foi aí então que Amir pareceu ter uma ideia e foi se aproximando lentamente do animal enquanto contava que a gente não soltasse ele.
- Por favor, segurem, não quero virar palito de dente hoje - pediu Amir.
- Não faça isso! O que está fazendo? É perigoso! - disse Sam já ficando desesperada e provavelmente procurando os melhores lugares para atacar.
- Deixa eu tentar ser útil para alguma coisa. - respondeu Amir calmamente embora sua calma não chegasse até seus olhos.
O cão o olhou. Seu olho direito o encarou como se já imaginasse se preferia me devorar de uma vez ou em pedaços. Era possível ver o medo estampado no rosto de Amir. Estava branco feito osso. Ele botou a espada que carregava no chão e levantou as mãos, um sinal de rendição ou de paz.
- O que está fazendo? - perguntou Sam num tom de preocupação mais calmo.
- Tentando fazer um novo amigo, acho... - eu disse.
- Pera... o que é aquilo? - disse Amir.
Não ousei olhar para onde ele olhava, mas logo a coisa em questão entrou em meu campo de visão. Era como se uma forte tempestade se aproximasse rapidamente à oeste. Todavida, quando a nuvem negra e cinza foi chegando mais perto, eu vi que elas eram formadas de pessoas. Pessoas que gritavam, pessoas que estavam indo em nossa direção. No horizonte, também pude ver, uma grande figura se aproximando à pé. A melhor descrição que posso dar é que era um elefante andando sobre as duas patas mas as mãos eram como mãos de humanos. Só que elefantes não têm chifres, tão pouco tem mãos com dedos com grandes garras afiadas.
Reagindo aos novos adversários, o cachorro mudou completamente. Antes, era bravo. Agora, estava chorando, acovardado.
- Foi ele quem o feriu.- disse Anúbis.
- Quem é ele? - eu perguntei depois de voltar a forma normal. Não era mais necessário segurar o cachorro. Anúbis apenas se garantia agora de que ele não fugisse enquanto segurava-o com o pano de linho como se o enorme cachorro usasse coleira. Além disso, a imagem de Anúbis estava de volta ao normal.
- E o que são essas coisas no céu? - perguntou Sam segurando seu machado com força.
- No céu, Sluagh. - disse Anúbis - Espíritos de mortos inquietos e devoradores de almas. No chão...
- Vai mesmo me fazer perder a honra de me apresentar? - perguntou o enorme elefante.
A apresentação dele, no entanto, não veio tão cedo pois a nuvem de Sluagh nos atacou. Virei dragão novamente e rugi lançando fogo contra eles. Foi eficiente para a maior parte. Reyna e Sam lutavam derrotando mais alguns que sobravam e Amir atacava mais alguns usando a espada como se ela fosse um taco de beisebol. Atrás de nós, Anúbis não lutava. Não. Tentava acalmar o cachorro que tentava desesperadamente fugir. O tom do deus era calmo e tranquilizador embora eu não entendesse uma palavra sequer do que ele dissesse. Nem conseguia imaginar que idioma era aquele. Ainda bem que o elefante não se aproximou, pois os Sluagh eram muitos e difíceis de afastar.
Em uma brecha que conseguimos, Amir se juntou à Anúbis e os dois conversaram alguma coisa. O cachorro pareceu mais quieto e... talvez até menor? Não sei, estava ocupado tentando segurar os Sluagh. Eu tossi, meu fôlego para soltar chamas acaba-se. O pequeno espaço de tempo foi o suficiente para Sluagh demais passarem e, junto com eles, o elefante.
O caos começou, não conseguia mais ver os outros e tentava de tudo para me livrar dos Sluagh. A quantidade deles foi diminuindo devido não só aos meus ataques, mas também aos ataques dos outros. Achei ter visto Anúbis se aproximando para atacar o elefante, mas esse facilmente agarrou o deus pela cabeça como se esta fosse uma bola de futebol americano, bateu ela contra o chão com tanta força que o chão quebrou levemente.
- Sabe que não deveria me atacar assim Anúbis - disse o elefante com a voz séria mas quase cuspindo em Anúbis - Onde estão seus modos?
Tentei me aproximar deles mas uma nuvem de Sluagh me envolveu. Giravam ao meu redor me deixando tonto.
- O que Hórus diria? O que seu faraó diria se te visse desobedecendo uma das regras mais importantes? - continuava o elefante. Eu ainda podia o ouvir embora não pudesse ver a luta devido a luta na qual eu agora me concentrava. Pelos gritos e pelos barulhos de armas batendo, eu podia imaginar que as meninas tinham se juntado à luta também. Eu estava muito agoniado de não saber o que estava acontecendo - Sabe que vocês, reles "mitologias" estão num patamar bem mais abaixo.
- Eu não ligo para o que aquela galinha diz - escutei Anúbis falando - e tão pouco ligo para o que você diz, Behemoth.
Ow ow ow, acho que já ouvi falar desse nome em algum lugar. Não sou um cara que entende muito do assunto mas... ele não é um demônio importante? Acho que tá até em alguns jogos de videogame também?
Acho que foi a curiosidade que me fez ter forças para dar mais uma forte rugida e me livrar de boa parte dos Sluagh que restavam. Pensei, preocupado, no que aconteceria com a alma daquelas pessoas. Talvez eu tenha pensado nisso tarde demais. Me envergonho disso agora.
Quando olhei, a primeira coisa que vi foi que Reyna o empalava com sua lança como se ele fosse espetinho. Sam, no entanto, dava alguns passos para trás como se algo tivesse a assustado e ela estivesse dividida sobre o que fazer. Segurava seu machado com força e parecia se perguntar se deveria o usar. Eu não via sinal de Amir. Mas vi de Anúbis que, sabe-se lá de onde, invocou um longo bastão de madeira, pouco maior do que.
- Uma pequena vingança pelos Sluagh - disse Anúbis ao bater o bastão de madeira no chão.
Quando ele o fez, o chão rachou um pouco. Pouco menos de um metro. E de lá, vazaram almas. Dezenas de almas que atingiram Behemoth na cara como um jato quente. Ele caiu desorientado quando as almas o acertaram embora não tivesse sido tantas almas quanto os Sluagh.
Ofegante, eu voltei para minha forma normal poucos segundos depois de Behemoth ter caído no chão enquanto eu julgava a batalha como terminada. Errei ao julgar isso. Behemoth era um bom ator. Um sorriso macabro abriu um seu rosto e seus olhos começaram a brilhar. Vermelho, que cor horrível vermelho podia ser em uma situação como aquela. Seus chifres cresciam, suas presas também, outro rabo nasceu e eu só ia ficando mais preocupado com a situação. Era possível sentir uma pressão emanando do monstro que me fazia travar no mesmo lugar sem ter coragem de me aproximar. Tudo o que pude fazer foi, sem pensar duas vezes antes de atirar uma flecha contra o monstro. Uma acertou-o bem no olho e ele olhou para mim com um sorriso no rosto. Vi que aquilo o irritou e, por isso, ele ia vir para cima de mim mas, num segundo ele estava ali e, no outro, sumiu como poeira.
- Lamento, era minha vez de ficar de olho nele essa década. Prestarei mais atenção - disse um homem se aproximando de nós.
Ele tinha as orelhas grandes, quase de abano. Um nariz longo mas baixo, usava calças brancas elegantes e uma camisa de gola e manga comprida azul escura que combinava com o céu que estava começando a anoitecer.
- Ai e essa agora... - reclamou Reyna. Notei que ela estava com um corte feio na coxa e na bochecha - E você, quem é?
- Baal. - disse ele - Explicações, no entanto, podem ficar para depois. Você, Samirah certo? Precisam de você em outro lugar.
Ele disse isso olhando para Sam e, assim como Behemoth, uma hora Sam estava lá e, na outra, não.
- O que fez com ela?! - exclamou Amir que agora nos braços segurava um filhotinho de cachorro que.... parecia a versão em miniatura do que enfrentávamos até então?
- Ela está bem, não se preocupe. - explicou ele - Agora que Behemoth não é problema de vocês, o outro grupo está precisando de uma pequena ajuda.
- Como conseguiu o conter tão facilmente? - perguntei.
- Ele estava com um selo desde do começo. Era para ter ficado de castigo por mais alguns milênios, no mínimo. No entanto, ele conseguiu dar uma pequena escapada. - explicou ele - Tudo que precisei foi ativar a magia desse selo.
- Bem que podia compartilhá-la com a gente - disse Reyna.
- Não posso compartilhar essa informação.
- Está tudo muito complicado por lá? - perguntou Anúbis e Baal afirmou com a cabeça.
- Creio que vocês merecem algumas explicações. Sim, a situação está ruim. Alguns monstros, demônios e deuses parecem ter se reunido, como bem notaram. Sabemos que o objetivo deles é... bem... diverso.
- Cada um tem seu próprio objetivo? - perguntei.
- Sim. Mas de certa forma, relacionado. Ainda não sabemos os meios que pretendem usar e os objetivos não passam de suposições nossas.
- Quem são essas pessoas no plural de quem tanto fala? - perguntou Reyna.
Baal sorriu como se pedisse desculpas e Anúbis abaixou a cabeça. Algo me falava que ele sabia qual era a resposta.
- Não posso compartilhar essa informação.
- O que pode compartilhar então no final de contas?! - exclamou Reyna enquanto eu meramente suspirava.
- Que muitas de suas perguntas vão ser respondidas se verem o estrago que foi feito no obeslico. - disse Baal dando uma piscadela e então desaparecendo.
- Obeslico? - repeti enquanto Anúbis dava um tapa na própria testa ao aparentemente se lembrar de algo.
- Nek - reclamou ele - Claro. Que idiota fui. O obeslico de Caesarea. Temos que ir para onde a luz vermelha veio.
- Porque? O que aconteceu? - perguntei preocupado pensando em Hazel, ela tinha ido até a luz vermelha.
- Não sei exatamente. Tenho que ver - disse ele enquanto eu, Reyna e Amir (que tinha o cachorrinho nos braços) indo até ele. Mas, no segundo seguinte, ele virou névoa preta exatamente como Nico viajava pelas sombras e desapareceu.
- Espero que ele tenha ido na frente. - eu comentei.
Não pensamos duas vezes, começamos a correr na direção para qual nossos amigos tinham ido. Passamos por alguns cidadãos comuns que escapavam do lugar também. Meu queixo caiu e meu coração apertou quando eu vi o tanto de monstros que se aglomeravam. Muitos deles, no entanto, já estavam caídos. Imagino também que o tanto de monstros uma vez foi maior pois vários pontinhos de areia estavam espalhados por aí.
O que me chocou de vez foi a imagem de um pássaro enorme caindo. Perto dele, também caindo, Alex.
- ALEX - ouvi uma voz gritar, Magnus.
Perto de Alex, um pássaro surgiu e tentava puxar a menina para cima ou ao menos diminuir a velocidade da queda. Sam, notei. Então foi para ali que Baal tinha mandado ela.
- FRANK! - uma segunda voz chegou até meus ouvidos.
- HAZEL! - eu gritei de volta quando notei ela rodeada de monstros.
Não pensei duas vezes antes de virar um rinoceronte e sair correndo na direção dela derrubando qualquer um que estivesse em meu caminho. Mal ouvi as palavras que Reyna gritou atrás de mim. Cruzei até ela rápido e voltei ao normal no mesmo segundo em que ela se jogava em meus braços me abraçando. Senti, estava cansada. O suor era prova. Me perguntei o tanto já tinham lutado, me perguntei quantas vezes tinha usado viagens nas sombras. Acho que cada vez mais eu entendia como Will se sentia com Nico.
- Me dá cobertura nessa? - perguntou ela quando o círculo de monstros ia se fechando ao nosso redor mais uma vez.
- Com todo o prazer - respondi com um sorriso tímido
Sem querer perder mais um segundo sequer, ela me beijou lentamente nos lábios mas não se demorou muito pois uma batalha nos esperava.