— Tudo começou no mais profundo tédio... —
As palavras estavam estampadas tal como em um grande apelo jornalístico, do mesmo jeito que se houvessem sido escritas por jornalistas fúteis que redigem pra uma dessas revistas de fofoca sobre famosos. A única diferença, talvez, era que o England General Medical Council era um dos jornais médico de maior circulação em toda Grã-Bretanha, que somente publicavam os maiores e mais recentes feitos médicos.
"Cirurgias do pericárdico em risco de extinção: surge o grampo Shipman."
Aquilo que seria celebrado com grande extravagância pela maior parte dos médicos, para Shipman parecia ser só um capricho a mais. Já não bastava ser o dono do maior Instituto de pesquisas médicas da Europa com uma idade de apenas trinta e quatro anos, ele também já havia recebido vários prêmios e tido seu nome estampado em grandes jornais muitas vezes.
Já haviam se passado quatro horas desde que estava em pé, debruçado à janela aberta segurando aquele jornal. O cinzeiro recém-comprado ao seu lado estava quase lotado.
Leoni Shipman era um rapaz de corpo magro e alto, com cabelos bem negros lisos e a parte lateral de sua cabeça raspada, penteado não muito comum ao de um médico. Alguns poderiam dizer que o que mais chamava atenção em sua aparência eram seus olhos: não eram de uma cor padronizada, mas sim, de um cinza que não chegava a ser negro, tampouco um gris puxado para o branco. Talvez um brasão escuro, mais escuro em ambientes fechados, mas também um petróleo em dias claros.
Se você perguntasse a Edward, o que mais chamava atenção em Shipman era sua pele. Um tom de marrom brilhoso, textura macia e traços delicados. Já para quem o precisava mais formal, seu brinco e piercing na orelha direita, junto com sua barba que estava sempre por fazer e a escolha de roupas que, por mais que fossem de marca, soavam desleixadas pareciam ser um problema de tão perceptíveis que pareciam ser à primeira vista.
A brasa de seu cigarro atingiu o jornal. Isso o fez voltar a si no mesmo instante.
Não é que não estava feliz por ter seu nome em um novo instrumento cirúrgico. Longe disso, na verdade, sempre que conseguia realizar um grande feito em sua carreira ele se sentia ainda mais realizado. Seu corpo reagia rápido, ficava momentaneamente mais leve. Ninguém duvidava que a carreira era a coisa mais importante de sua vida.
Porém, não havia, para ele, um valor concreto naquilo. Não havia capacidade própria para afirmar que qualquer coisa seria a mais importante que sua carreira, quando a medicina era crua e objetivamente a única coisa que ele tinha.
Não havia sentido em expressar qualquer tipo de reação ao ler seu nome em um jornal. Não havia como ficar eufórico com uma notícia dessas. Esse sentimento de euforia só nos é útil quando há um próximo capítulo a seguir. Como quando ficamos eufóricos ao saber que no dia seguinte vamos nos reencontrar com um ente querido, ou amanhã será o primeiro dia de trabalho numa grande companhia. Se não existe um "dia seguinte" ou um "amanhã", então essa euforia não nos serve para nada.
E ele tampouco conseguia absorver algum resquício de felicidade. Não importa se um novo aparelho cirúrgico recebia seu nome ou se o próprio tivesse descoberto a cura pro câncer. Acreditava que se a medicina não havia conquistado isso até agora, era porque ela era burra e atrasada, e ele só precisaria fazer o que alguém estava com preguiça de fazer.
"... seu... dinheiro..."
Morava em um apartamento silencioso e também absurdo de grande. O prédio tinha somente dois apartamentos por andar, motivo pelo qual eram espaçosos. Shipman vivia no oitavo, porém, havia comprado também o apartamento do sétimo andar que ficava logo abaixo ao seu. A única pessoa que sabia quem era o dono do Sétimo Andar – B era o dono do edifício. Nem mesmo o seu melhor amigo de anos tinha conhecimento daquilo.
Dentro dali não haviam móveis, não haviam janelas ou qualquer tipo de decoração. Todas as paredes eram do mais escuro negro e a porta não era trancada; mas sim, engessada de uma forma que o único modo de o adentrar era pelo quarto de Shipman.
Ali dentro só haviam alguns cadernos de anotações comuns.
E mesmo assim, mesmo sendo difícil e altamente restrito o acesso ao quarto, estes objetos ainda ficavam escondido em um buraco na parede. Um buraco tão bem feito que era impossível de achar a não ser que você quebrasse a parede inteira para procurá-lo.
Shipman era terrivelmente meticuloso e cauteloso.
– Que foi? – Enquanto subia as escadas do apartamento 7B em direção ao seu quarto, ouviu seu telefone tocar e o atendeu.
"Meu Deus, será que você vai morrer se for um pouco mais simpático comigo?" – Edward respondeu, debochando da maneira com que Shipman falou. – "'Que foi...'" – Repetiu com voz grosseira. – "Tsc... sua língua não vai necrosar se você me der pelo menos um oi".
– Você me ligou no meio da madrugada pra reclamar da maneira como eu falo?
"Que madrugada? Olha pro seu relógio!"
Shipman não era só um médico escondendo um grande segredo, ele também era extremamente impaciente. Sua forma de falar não se restringia apenas ao seu quase-inexistente círculo social, mas também muitas vezes com seus pacientes e com quem precisasse se relacionar no trabalho. Sua salvação era seu talento: ninguém podia reclamar de seu temperamento enquanto ele tinha resultados excelentes.
Edward mais do que ninguém sabia como era isso. Conhecia Shipman desde criança e chegaram a dividir moradia por muitos anos. Todos os passos que Shipman dava, Edward conhecia e vice-versa. E apesar do modo em como falava ao telefone, Edward sabia que era o único a quem Shipman confiava para chamar de "amigo", e essa não era uma palavra nada bem vista por ele.
– São cinco e meia da manhã? – Shipman disse em automático quando olhou para seu relógio, mas logo se recompôs. – Quer dizer, eu já sabia disso.
"Você passou a noite toda acordado?"
– Claro que não. Eu estava indo fazer café.
"Você ficou encarando a matéria que fizeram pra você no jornal, não foi? Nah, não se preocupa com isso, só gente estranha lê esses jornais médicos, ninguém de verdade liga pra se você inventou a cura pro acúmulo de fluido no coração."
– Para com isso, Edd, eu não gostei dessa notícia justamente por ser tendenciosa demais. É só um dreno estúpido pra evitar cirurgias desnecessárias. Qualquer idiota poderia fazer isso, um título sensacionalista desses me faz parecer um idiota.
"Hahahaha, você pega muito pesado consigo mesmo. Aproveita a sua fama, agora cê tem um aparelho com o seu nome, vão estudar sobre você nas faculdades... é uma boa notícia, Leo, relaxa."
– É sério, não é legal, é escroto! Nomearam até esse negócio com o meu sobrenome contra a minha vontade.
"Você se martiriza demais. Mas não foi pra isso que eu te liguei, a gente precisa conversar. É urgente."
É comum as pessoas ficarem apreensivas depois de tal frase, ainda mais quando usada com um tom de voz que parecia mais tenso que o normal, seguido da palavra "urgente".
Entretanto, para alguém como Shipman, que chegou ao ponto em que nenhuma sorte de notícia, boa ou ruim, o causasse qualquer variação de emoções, aquela frase soou normal.
– Almoçamos hoje juntos? – Perguntou, fazendo forças para ficar acordado depois de dois dias seguidos sem dormir.
"Sim, vamos sim."
Shipman não conseguia sentir nada. Nem sequer raiva ou rancor, muito menos felicidade. Não que estivesse triste ou infeliz com sua vida, mas todos os dias pareciam o mesmo para ele.
Não encontrava nada que o permitisse fugir de sua própria rotina: tinha o melhor emprego que um médico poderia desejar, uma carreira invejável e dinheiro suficiente para fazer qualquer coisa. Porém, lhe faltava algum tipo de ambição. Desejava que algo de novo acontecesse, mesmo que fosse alguma coisa ruim, pelo menos já seria alguma coisa.
A despeito de todo seu mau humor, ninguém duvidava que Shipman adorava ser médico. Não por prêmios ou banalidades; ele gostava de ser médico porquê, sempre que segurava em um bisturi, sentia alguma coisa. Como se fosse um poder forte; um sentimento de ambição por sempre querer ser o melhor e fazer o possível para fazer tudo da maneira mais próxima da perfeição.
Aos trinta e um anos de idade era dono do maior Instituto de pesquisas médicas e também o maior hospital da Europa. Aquele Instituto, que também funcionava como hospital, recebia pacientes do mundo inteiro com as mais terríveis síndromes e doenças.
A indústria farmacêutica é conhecida por ser uma das mais lucrativas na Terra – e uma das mais frias existentes. Dizem que já sabemos a cura pra diversas doenças, mas que as escondem para poder continuarem lucrando em cima de tratamentos caros e desnecessários. Se não é monetariamente vantajoso erradicar uma doença, é difícil explicar como um Instituto tão grande que já foi responsável pelas mais importantes pesquisas consegue ter verbas para se manter como referência mundial. Ainda mais quando todos os tratamentos dentro dali eram gratuitos.
E é por esse motivo que não existia ninguém vivo na Terra melhor que Shipman para ser o dono daquele lugar.
Ignorando o sentimento de vazio que habitava dentro dele, Shipman estava pronto para sair de casa e ir ao trabalho. Noites em claras eram comuns; a insônia, para ele, era como sua sombra: já o acompanhava para onde ele fosse e era uma parte dele. Ainda assim, um pingo de esperança ainda o restava. Todos os dias em que saía de seu apartamento para ir ao trabalho, ele via nessa pequena esperança uma chance de sair da mesmice.
Ansiava para alguma coisa mudar quando deixasse sua casa, e ainda que todos os cinco anos consecutivos em que fora o chefe do Instituto fossem a mesma mesmice de sempre, algum dia sabia que as coisas iriam mudar.
Ele só não esperava que se arrependeria tão rápido de pedir por "algo novo".
Querido diário, eu nunca achei que a minha preocupação para com esse indivíduo seria derivada de um pensamento tão egoísta