Novael (VOL. 1) - O Conto de...

By beehangr

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Novael não é apenas a história de um Reino desconhecido para lhe manter acordado durante a noite. Não é mais... More

Booktrailer
Mapa de Novael
《Prólogo》
O início
Descobertas
Surpresas
Futuro Obscuro, Passado Encoberto
O Teste
Um estranho que sabia de sua história
A Lenda do Reino de Novael
"Esvair-se por entre seus dedos"
Barkley
A Linha Azul
Caça e captura
Dores
Lasïsk
O Mapa
Pacto
Vingança e Adeus
Trasken
Acerto de Contas
《Notas da Autora》

Piratas

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By beehangr

A luz que batia diretamente em seus olhos o incomodou de uma forma inimaginável. Suspirou. Já tinha pedido inúmeras vezes para não deixarem aquela bendita cortina aberta, mas ninguém o ouvia. Tyler bufou e levantou-se lentamente. Nenhum de seus amigos encontrava-se no recinto. Descendo da cama, ouviu passos no andar de baixo. Provavelmente o café da manhã estava pronto.

Respirou fundo e sentiu um cheiro delicioso invadir suas narinas. Mais passos, porém desta vez eram rápidos e entregavam que a pessoa corria escada acima. Tomara que não gritasse o seu nome como da última vez.

— Vai vir tomar café ou não? — indagou Sam, desaparecendo em seguida.

Respirou fundo. Colocando-se de pé, espreguiçou-se. Mal podia acreditar que já se passara um mês. Começou a descer as escadas. Ao menos não tinha sido tão difícil se adaptar. Tirando o fato de que todas as manhãs a cortina continuava sendo deixada aberta. Fechou os olhos e, depois do último degrau, alinhou os pés ao chão do ambiente. Pareciam felizes. Assim como em todas as manhãs.

Haviam conseguido comprar um lugar para morar com os próprios magvelins que Adam deixara. Não faziam ideia de quanto o homem tinha dado, mas não demorou para entenderem que podiam encontrar um lar. Agora o compartilhavam como uma grande família. Cada um possuía suas próprias obrigações e já haviam se encaixado com o clima e as pessoas de Trasken. Era como recomeçar do zero, e se saíam muito bem.

— Precisamos comprar mais comida — avisou Ashley.

— Quando tivermos nosso restaurante, você vai fazer nossas compras — afirmou Benjamin. — Combinado?

— Desde que me paguem. — E riu.

Todos a acompanharam nas gargalhadas. Este era o plano de Christopher e do loiro: construir um restaurante próprio. Talvez fosse sonhar muito alto, mas, se assim o fosse, ambos eram ótimos nisso. Sam costumava sair com algumas crianças e parecia finalmente viver e ter uma infância normal. Ashley acabara por ficar cuidando da casa, já que o restante trabalhava fora. Tyler ajudava um senhor em uma loja de coleções especiais e antigas, ouvindo uma história ou outra sobre os velhos tempos de Novael. Já Lincoln, com sua paixão pelo mar, trabalhava com os pescadores, mais precisamente levando os peixes aos estabelecimentos. Talvez não fosse algo extremamente empolgante, mas era grato a isso, pois estava sempre perto das águas. O que também acarretava o fato de que as notícias eram ouvidas primeiro por ele.

— Sam — disse Lincoln. — Hoje você vem comigo. Vou te ensinar o poder que o cheiro de peixe tem.

— Posso adiar esse passeio? — indagou com um olhar preguiçoso. — Não estou muito ansioso para voltar para casa fedendo...

— Você vai voltar para casa com cheiro de homem trabalhador — afirmou de forma brincalhona. — Anda logo, garoto, vai ser divertido.

— Nossas definições de diversão são bem diferentes — riu desgostoso. — Se a Ash concordar, eu vou, mas acho que ela precisa de ajuda por aqui... — E a olhou como se implorasse para não o deixar ir.

— Bom passeio, meninos! — Disse dando uma piscadela para o garoto, que bufou.

— Um não... — sussurrou ele. — Era tudo o que eu precisava. Que criança pede por um não? Você deveria aproveitar que eu sou a melhor pessoa para se conviver e cuidar. Até tento me ajudar. — E fez uma careta. — Você está é querendo se livrar de mim para passear com o Meisner, não é? Um dia vocês vão casar, certeza.

— Você precisa estar vivo para ver esse dia chegar — retrucou também em baixo tom. — E se continuar com esses comentários espertinhos, talvez não saboreie o momento em que ele peça minha mão. — O olhou com uma braveza imitada. — Você vai gostar de passear com o homem do peixe — continuou em voz alta, depois abaixando a voz novamente: — Ao menos vai saber o que não fazer quando crescer.

Sam riu. Ao fim do café, todos tomaram seus próprios caminhos, e Ashley encontrava-se só. Não que ansiasse por isso, mas o silêncio sempre lhe era bem-vindo. Ainda mais depois de todas as inquietações que sua mente produzia. Caminhando até seu quarto, sentou-se na cama como sempre fazia e observou seu reflexo no espelho à frente. Por alguma razão, repetia o mesmo procedimento todos os dias, talvez para lembrar-se de quem lutava dentro dela para sair. Mesmo que um mês tivesse se passado desde que quase morrera pelas mãos de Elizabeth, dentro de si tudo continuava de forma absurdamente vívida. Mas sentia falta de Adam.

De repente, ouviu batidas na porta de entrada. Era Meisner. Descendo, acompanhou-o ao centro da cidade. Franziu o cenho, lembrando o comentário de Sam, e riu com as ideias que se passavam na cabeça do menino.

— Me diga o que você vê — indagou o jovem, com as mãos atrás das costas.

— Pessoas apressadas, com seus afazeres diários. — Deu de ombros.

— E o que está errado?

— As suas mãos. — Arqueou uma das sobrancelhas. — Você está escondendo algo.

— Não consigo enganar você. — Revirou os olhos. — Comprei isso — disse, esticando um relicário de prata até ela. — Vai ser melhor para esconder esse seu colar. Algumas pessoas matariam para colocar as mãos nele, e todos a olham demais por causa disso.

Encaixou-o ao redor da joia e notou que Meisner tivera de mandar fazer sob medida tal relicário para que ficasse perfeito. Sorriu. Apesar de não ter obtido respostas para as perguntas que quase sempre fazia, o garoto de pele morena era gentil com ela. Parecia tentar protegê-la sempre que encontrava a oportunidade. E sentia que ele não tentava se impor como as outras pessoas; deixava que tudo continuasse naturalmente.

A frase "matariam para colocar as mãos nele", a fez se lembrar de Adam. Apenas alguém que soubesse o que aquele colar realmente era poderia dizer algo assim. Porém, por mais que continuasse tentando conseguir respostas, o garoto não se deixava vencer e mantinha seus segredos. Talvez fosse melhor assim. Talvez fosse algo tão perturbador que, se soubesse, ela fugiria instantaneamente.

— Por que você parece saber mais do que diz, mas não me conta nada? — Então franziu o cenho, percebendo que mais uma vez não conseguira deixar para lá. — Adam... enviou você?

Perguntas. Elas eram algo tão forte que Ashley poderia prometer não as fazer e acabaria dando com a língua nos dentes. Às vezes intencionalmente, às vezes não. Meisner a olhou. Seus olhos pareceram expressar profunda tristeza por um breve momento, mas logo tornaram a brilhar e ele sorriu.

— Você é realmente muito insistente — disse, e parou pensativo. — Se eu te disser que sim ou que não, vai adiantar alguma coisa?

— Não — sussurrou.

Exatamente — riu. — Vou esperar por você, não se preocupe. Há um momento certo para todas as coisas.

Ashley o encarou. Seu sorriso era genuíno, mas definitivamente carregado de um conhecimento que ela não tinha. O jovem fazia cada vez menos sentido, e suas palavras tomavam uma forma importante antes de serem colocadas numa ala em sua mente, onde mistérios a serem descobertos ficavam. Talvez, se simplesmente se esquecesse de tudo e apenas apreciasse a companhia do amigo, sua necessidade de saber o que se passava iria embora. Além de não o incomodar tanto com as suas constantes perguntas. Porém, algo chamara a sua atenção: ele não perguntara quem era Adam. Então ele o conhece, matutou dentro de si, e não negou.

Um burburinho estranho parecia acontecer alguns metros à frente. A cidade de Trasken crescia para todos os lados, e do local onde moravam ao norte ficava a praia. Já mais ao leste, o porto. Os barcos que atracavam eram tão belos quanto as roupas dos marinheiros por trás deles. Piratas de todos os cantos costumavam atracar suas embarcações para aproveitar o dia nas tavernas e trazer desordem. Por mais que Novael fosse aparentemente avançada, muito parecia ter se perdido. Era real o que o castor, Pêy e Adam haviam dito. O reino estava cada vez mais se afundando no caos. Esquecendo-se de seus velhos hábitos, da raiz e das histórias.

Ouvira falar que, na época em que o reino ainda prosperava diante de reis, as pessoas procuravam ajuda em um único nome. Diziam que Ele era o Criador. Deus. Mestre. Maravilhoso. E todos O adoravam. Ali, Ele era conhecido como Aluf. Naqueles tempos, era possível sentir a Sua presença, mesmo que não tivesse uma forma física. Ele era tudo. Estava em tudo. Estava na menor parte das moléculas, dos átomos e em todo o universo. E sempre estivera presente para ajudá-los no que pedissem. Até na guerra, na qual os reis e o povo que eram fiéis a Ele desapareceram. Os mais velhos diziam que naquela época o Mestre tentou aparar o povo durante o período de perda, mas quando os gananciosos subiram ao poder, não havia nada que pudesse fazer. Cada vez mais viravam a face para o Criador, e, triste, Ele se retirou do meio dos homens. Desde então, a contenda reinou em Novael e nunca mais se ouviu falar de Aluf. Alguns ainda O adoravam, mas diziam que Sua presença não era mais a mesma. O livre-arbítrio O impedia de interferir no mundo dos homens.

Agora, o povo não mais acreditava e Aluf não passava de uma velha história. Ashley, no entanto, sentiu uma imensa vontade de tornar àqueles tempos e ver como seria ter o Criador ao seu lado. Novael era um lugar em perfeita harmonia e paz, até que a linhagem de Lu'thyien se rebelou e quis tudo para si. Eram tantas histórias que a garota apenas desejava descobrir quais delas faziam parte da verdade. Mesmo que fossem várias as versões, a que mais a fazia sentir ser real era essa, na qual Aluf reinava sobre os homens e os tratava como filhos. Pois de fato o eram.

O homem precisava de alguém justo, senão tudo sucumbiria como estava acontecendo. Não havia mais um cabeça em Novael, não havia mais reis. Quem o povo seguiria? Em quem confiariam? O reino agora jazia na confusão.

Os murmúrios se tornaram altos e chamaram a atenção da garota, trazendo-a ao presente momento. O que estariam discutindo? Gritos foram ouvidos e parecia que as pessoas se encontravam aflitas. Ao se aproximarem, conseguiram ouvir melhor.

— Os piratas estão cada vez mais desajuizados. Já bastava terem criado uma linha invisível que impede os pescadores de avançarem, agora querem diminuí-la? Sem autorização da assembleia? — uma mulher berrava dentre a multidão.

— Eles são uns abusados! — outra gritou.

— Malditos sejam! — praguejou um indivíduo ao lado de Ashley. — Como iremos conseguir peixes se não nos deixam mais nem chegar à metade de Goreen?

— Acalmem-se! Acalmem-se! — exclamou um homem mais velho subindo em uma caixa para ser visto. — Falaremos com a assembleia, mas não há problema! Temos a linha além de Blalkpÿr ao leste. Podemos também pedir ajuda para Wiensto e Tainto ao norte; eles têm parte do mar dentro do próprio território.

— Wiensto e Tainto não se importam com ninguém além de si mesmos! Não admitem, mas são todos bárbaros! — um urro saiu de alguém não muito longe.

— Eu estive lá — uma voz rouca sobressaiu-se — e vi que estão mais desesperados que nós. Os piratas já tomaram boa parte dos mares e a costa quase não é mais acessível — terminou Meisner. — Todos aguardam por uma guerra que nunca chega. Os piratas só estão tomando suas providências para que ninguém os ataque.

O tumulto se tornou ainda mais alto. Pessoas dizendo que o garoto estava do lado dos piratas. Que fazia parte dos Peynser. Até mesmo dos Bajvot, com que ninguém se importava.

— Silêncio! — bradou o homem sobre a caixa. — Infelizmente, não poderemos pedir ajuda a eles, mas encontraremos um jeito. Não é motivo para desespero. Temos que enterrar nossos mortos e nos preparar. Todos sabem que uma grande guerra está para acontecer, como há trezentos anos! Todos sabem!

— E lá vamos nós... — alguém murmurou.

As pessoas começaram a se dispersar rapidamente.

— Por favor, ouçam! A guerra chegará para todos, queiram ou não! Esta só é mais uma prova!

Ashley aproximou-se do homem enquanto todos o deixavam falando sozinho. Já não restava mais ninguém ao seu redor, como se há poucos minutos o que parecia ser importante tivesse simplesmente sido ignorado.

— O que você sabe sobre isso, ...?

— Ertuan — cumprimentou-a. — Não sei muito, mas tudo aponta para uma guerra colossal. Dizem por aí que Lu'thyien voltou. Já não creio ser impossível. Você viu o tanto de mortos que apareceram nos últimos dias? Corpos boiando nos mares. Não é à toa que esse povo tolo esteja amedrontado. Mas nunca ouvem.

Concordou com a cabeça, agradeceu pelas palavras e despediu-se do homem. Se sentia um pouco zonza com o punhado de informações. Era a primeira vez desde que chegara que ouvira outra pessoa mencionar a tal guerra. Meisner sabia da mesma, mas pelas suas palavras talvez estivesse desacreditado. Uma guerra que nunca chega. Por que informar sobre algo que estaria para acontecer sem fornecer mais informações? Ashley implorava por qualquer coisa que a dissesse onde deveria estar, com quem se encontrar, o que fazer, mas não sabia de nada.

— Preciso... — começou o garoto.

Meisner parecia incomodado. Mais uma vez estava ali aquilo que perscrutava seus pensamentos toda vez que se encontravam. Seu olhar era de tristeza, e naquele momento ele não se fora. Parecia lutar contra seus sentimentos, como se realmente escondesse algo. Algo maior do que apenas um segredo. Sabia que, se ele falasse, muitas das dúvidas que tinha seriam sanadas. Ele conhecia Adam, e em momento algum negara esse fato, então, assim como o homem, a conhecia. E algo dentro de si também a fazia sentir, como com o loiro, segurança.

— Preciso te dizer algo. Não posso mais esperar — disse o jovem, enfim. — Amanhã de manhã, no banco da teimosia — falou, esboçando um pequeno sorriso, tentando disfarçar o profundo transe em que estivera momentos antes.

— Meisner — chamou ela. — Está tudo bem? Você sabe que pode confiar em mim, não sabe?

— Sim... Eu sei — afirmou, respirando fundo. — O tempo passa tão rápido quando conversamos que às vezes me esqueço da razão de eu estar aqui — suspirou. — Mas tudo vai ficar bem quando você entender. Até lá... Me perdoe.

Ashley abriu a boca para responder, porém foi impedida. O garoto levantou o dedo indicador e o colocou sobre a própria boca, como que pedindo para que ela não falasse nada. Engolindo o que quer que fosse dizer, observou-o caminhar para longe, e, de forma incômoda, a garota sentiu como se seu coração murchasse. Sentia que algo de ruim estava para acontecer, e o pior era que Meisner também sabia disso.

Enquanto o via, já distante, sem olhar para trás, respirou fundo fechando os olhos. Estava exausta. Levando as duas mãos ao rosto, as sentiu queimar em contato com a pele. Queria que as coisas continuassem como estavam, sem problemas, sem nada de ruim, mas sabia que era pedir demais. Um frio na barriga fez com que se lembrasse das palavras do garoto. Me perdoe. O que precisava ser perdoado? Sentiu um empurrão.

— Ei! — reclamou. — Cuidado por onde anda!

Observou uma carta de aparência importante cair no chão. Estava prestes a gritar chamando o sujeito de volta para devolvê-la, não fosse pelo nome escrito na mesma. Seu coração pulou uma batida, e tudo à sua volta pareceu congelar. Sua respiração se tornava cada vez mais rápida à medida que pensava em todas as palavras que poderiam estar escritas ali. Suas mãos tremiam.

Pensando no que fazer, resolveu levar a carta para casa. Afinal, ela não era a única envolvida naquilo tudo, apesar de ser o seu nome escrito ali.

***

Lincoln tinha acabado de deixar algumas caixas empilhadas para a entrega quando notou que alguém o olhava ao longe. O cais estava movimentado, pois três dos pescadores locais tinham morrido. Ou melhor, haviam sido assassinados. A briga por território se tornava cada vez mais perigosa, e o garoto não se sentia mais tão seguro em trabalhar ali. Logo, começava a pensar em encontrar outra coisa para fazer. Rápido.

— Olha, é a Kat — apontou Sam, sentando-se em um caixote, balançando as pernas.

Olha, é a Kat — imitou com uma voz fina. — Pouco me interessa. Ela fica me destratando como se estivesse falando com um qualquer — cuspiu. — Só a tolero por ser amiga da Ash, senão já tinha dito umas verdades a ela.

— Você quis dizer — e o corrigiu: — a amiga da Ash que fica te tratando como você costuma tratar as pessoas? — perguntou descontraído, apenas revelando uma realidade. — Acho que no fundo ela gosta de você. Talvez bem no fundo — afirmou como se fosse profissional em ler pessoas. — Mas eu poderia muito bem dizer que te tolero, por ser amigo do Benji e do Chris, porque você é um cara muito chato. O que acha?

Eu acho — começou — que alguém vai chegar com alguns pedaços de peixe dentro das calças.

Sam fez uma careta. O jovem levantou os olhos novamente, e ela continuava lá. Uma garota morena, de cabelos cacheados e olhos pretos como o ébano o encarava. O garoto já havia conversado com ela algumas vezes, mas ela o tratara com desdém desde o início. Aquilo o irritara profundamente, fazendo com que ganhasse sua apatia imediata. Porém, o menino parecia estar certo. Ela apenas o tratava como ele mesmo tratava as pessoas. Mas não admitiria isso. O olhar dela era tão intenso quanto o cheiro de peixe que inundava o local. Respirou fundo, Katsyuna começava a se aproximar.

— Se veio me destratar de novo, sugiro que dê meia-volta.

— Engraçadinho — zombou. — Oi, Sam.

— Oi, Kat — cumprimentou com um aceno. — Ele disse que não quer conversar com você.

Lincoln o fuzilou com os olhos.

— Não seria nada fora do comum. — Ela deu de ombros. — Acho que ele está gostando de ser tratado como trata as pessoas. Deve estar sendo uma experiência incrível.

Ai — foi o garotinho, fazendo uma careta como se tivesse se machucado. — Podia ter ido para casa sem essa, homem do peixe.

Já falei — repetiu —: se veio me destratar, vá embora. Estou trabalhando.

— Calma, garotão — zombou. — Posso não ser a pessoa mais gentil com você, mas não é por isso que deixo de te considerar, afinal, você é amigo da minha amiga.

Sam soltou um risinho, como quem se divertia em meio àquele torneio de insultos.

— Encontrei algo em casa e achei que fosse gostar — revelou a moça.

— Pensou em mim? — riu desacreditado. — Essa é nova.

— Se começar, vai perder o presente.

— Se ele não quiser, eu quero — falou o menino.

Lincoln revirou os olhos. De dentro da bolsa que Katsyuna carregava, ela tirou algo com o formato de uma adaga, mas ele não podia ter certeza, pois estava dentro de um apetrecho de couro. A garota também era conhecida por pregar peças. Não nas pessoas, mas nele. Era muito boa nisso, confessava, sendo a única pessoa capaz de deixá-lo genuinamente irritado. Antes de esticá-la para ele, parou e pareceu pensar, mas logo a ofereceu.

— Era do meu irmão — disse, e cruzou os braços.

Olhou para ela de imediato e encontrou-a com um sorriso em seu expressivo rosto. A jovem não era nem de perto o tipo de pessoa que entregaria algo tão importante para ele, para uma pessoa que aparentemente odiava. Ele não disse nada, apenas retirou a adaga de dentro de seu invólucro e a admirou. O punho era preto e fosco. Um tipo de desenho fora talhado em prata, cobrindo toda a empunhadura. Era uma perfeita obra de arte.

— Não entendo... — assoprou confuso. — Era do seu irmão e você está me dando? Acho que me confundiu com o carinha da esquina.

— Claro, é extremamente fácil confundir qualquer um com um chato, insuportável, orgulhoso, último gás de alsk.

— Não me venha com essa — retrucou. — Alsk é a pior bebida que já tomei. Não sou tão ruim assim.

— Não é, não. É minha bebida preferida, apesar de todo mundo odiar. Só porque é suco de planta. — Cutucou-o. — Preconceituoso.

Lincoln não entendera muito bem o porquê de Katsyuna ter entregado aquela adaga para ele, tampouco a razão de a garota estar finalmente sendo gentil. Bom, gentil em sua forma de ser. Respirou fundo. Sua presença era forte, e sempre que vinha acompanhada de Ashley, podiam ter certeza de que o jantar seria estupendo. A jovem já era praticamente parte da família, mas ela ainda não sabia da verdadeira origem de seus amigos. Talvez, se algum dia dissessem, temiam que poderia mudar de ideia quanto a cada um deles, e o moreno não queria que Ashley perdesse sua única amiga.

— Querem comer algo? — indagou Katsyuna.

— Desde que não tente me envenenar.

— Suas piadas são horríveis — disse Sam.

— Eu discordo — retrucou.

O garoto moreno então direcionou-se ao chefe e pediu as contas. Não trabalharia mais num local em que vários homens apareciam mortos da noite para o dia. Já bastava estarem envolvidos com algo que nem sabiam o que era. Algo batucava no fundo de sua cabeça. Tudo estava muito calmo em relação ao segredo que os circundara em Toronto. E isso só significava uma coisa: a verdadeira tempestade ainda estaria por vir.

***

Ashley estava sentada em sua cama e olhava a carta que permanecia a três palmos dela. Não queria abri-la, mas sabia que, se não o fizesse, nunca saberia o que estava escrito. E se fosse uma carta de Adam? Aproximou-se e pegou-a em mãos. Era muito improvável ser dele. Largou-a novamente.

Estava nesse dilema havia ao menos dez minutos. Os garotos ainda não tinham chegado, então ainda restava tempo para encarar o pedaço de papel. Talvez, se o olhasse o suficiente, ele se abriria sozinho e recitaria o texto sem que precisasse ler. Pôs-se a rir. Que ridículo. Enfim tomou coragem e, com a carta em mãos, abriu-a. Com cuidado, desdobrou o papel e, respirando fundo, começou a ler.

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Olá, minha querida,

Soube de sua chegada desde quando pisara naquela areia. Uma pena você não ter conseguido ajudar aquele animalzinho... Espero que sua estadia esteja sendo boa, porque o tempo de calmaria acabou. Fique de olhos bem abertos, pois em alguns dias você vai saber o verdadeiro significado da palavra sofrimento. Tudo que mais importa será tirado de você, então aproveite enquanto pode. Nos vemos por aí.

E.

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Um frio doentio tomou conta dela. Sentiu como se seu coração fosse parar de bater para preveni-la de qualquer coisa ruim que haveria de vir. O perigo era real. Tudo que mais importa será tirado de você. Não conseguia acreditar no que lera. Seus olhos encheram-se de lágrimas, mas não as deixou cair. Não deixaria que Elizabeth mais uma vez estragasse sua vida. Não deixaria que entrasse em sua mente. Seria a guerreira que fora destinada a ser.

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