— Como? — Daniel correu os olhos entre nós. — Você está de brincadeira, cara. Isso não pode ser sério.
Se eu conseguisse me ver de fora, com certeza minha expressão seria do mais completo desamparo, enquanto transmitia a todos o que acontecera.
Eu bem gostaria de poder dizer que não estava falando a verdade. Mas possuía a mais absoluta certeza de que o livro havia sumido. Não podia senti-lo em nenhum lugar da biblioteca. O espaço entre a estante no qual ele ficava jazia destruído, não havendo uma folha inteira naquele lugar. E, entre pensar que um livro com eras de idade fora simplesmente fatiado ou que o Krenger veio até a cidade para roubá-lo... A segunda opção se mostrava bem mais cabível.
Só conseguia pensar no quanto Vreida nos odiava. Faltava um dia para o solstício de inverno e nós havíamos simplesmente perdido um dos principais itens para conjurar o portal!
— Então foi por isso que ele veio até aqui? — Karen perguntou, com uma mão paralisada sobre a grande queimadura que guardava a forma das mãos de Briseis em seu pescoço.
Aquilo foi bem estranho.
Porém, o roubo do livro de Vornek não me dava tempo de atentar para um problema menor.
— Provavelmente — A voz de Daniel estava baixa, como se ele temesse atrair a atenção do monstro. — O que os Krengers iriam querer com o livro de Vornek?
— A pergunta — Briseis olhou para Daniel, sua expressão carregada de tristeza enquanto falava —, é quem o enviou. Ou esse livro teria mesmo alguma serventia para eles?
Todos nós caímos num silêncio profundo, incapazes de verbalizar as dúvidas suscitadas ali. Fazia todo sentido. Krengers só se importavam em matar e comer. A não ser que fosse para usar as folhas como guardanapos, o livro de Vornek não lhes seria útil.
— Foram os Meltas — ela continuou, perante nossa falta de palavras. — Vocês não precisam me dizer. Mesmo sendo tão nova nessa... coisa toda de Hanaros, eu os vi e ouvi. Preciso de alguém que me explique essa palhaçada toda ou eu posso continuar sendo um peso inútil e expondo mais pessoas a isso...
Briseis girou o dedo, mostrando a situação da biblioteca. Olhei ao redor, tomando consciência do tamanho do estrago. O lugar que expressava calma, silêncio e paz, mas que agora não passava de um amontoado de escombros, livros e... sangue.
Quando entrei no lugar devastado, eu apenas voei em direção a estante que guardava o livro e a encontrei vazia, então voltei para a companhia dos outros e contei nossa perda. Nesse meio tempo, eu esqueci completamente da velha que Briseis procurava. Aquela pela qual ficamos lá em cima e quase tivemos nossos ossos separados da carne. Contudo, ela estava lá, deitada sobre uma poça de sangue, com três grandes cortes lhe revirando as entranhas.
Lutei para impedir que o vômito me subisse a boca quando o cheiro metálico de sangue chegou até mim.
O corte em minha perna, que estranhamente se tornara uma linha fina, começou a latejar como se reconhecesse seu causador nos cortes da idosa morta ao chão.
— O que... — sussurrei, enquanto me aproximava aos poucos do corpo no chão. — Pensei que ela houvesse conseguido.
— Ela tentou, mas não foi forte o bastante. Quem de nós seria, afinal? — A voz de Briseis estava amarga, ela virou de costas, evitando olhar em nossa direção. — E agora a neta dela está lá embaixo, esperando que eu retorne com sua avó. Avó que ela nunca mais verá. Mais uma morte para a minha lista de remorsos.
As palavras de Briseis na noite em que me contou as desventuras de sua vida, retornaram a minha mente como se acabassem de serem ditas: a caminhoneira que lhe ajudou mas fora morta por Alane. A forma como seus olhos se enevoaram ao lembrar do acontecido. No fundo da minha consciência havia uma voz que me censurava por não ter sido capaz de protegê-la de passar por aquilo mais uma vez, quando eu havia prometido que nada a perturbaria.
Eu sempre soube que ela não deveria ser uma hanariana, não deveria estar mais uma vez envolta naquela catástrofe. Contudo, não havia saídas para Briseis, nem para qualquer outro. Estávamos fadados a mais destruição até que pudéssemos acabar com tudo.
— Vamos lá. Todos sabem que a culpa não foi sua — pediu Daniel, aproximando-se do lugar onde ela estava e tocando-lhe a mão.
Briseis permanecia imóvel sob seu toque.
—E quanto a mim? — perguntou com a voz trêmula ajoelhando-se perto da senhora — E a minha consciência? As vozes que gritam em minha cabeça...
Seus olhos inquietos começaram a derramar mais lágrimas, as mãos trêmulas percorrendo o rosto lívido e sujo de sangue do cadáver por entre as folhas destruídas dos livros.
Eu não consegui encontrar palavras para confortá-la, embora soubesse exatamente como se sentia. De repente as mortes de Arminda e Carla ganhavam peso em minha mente novamente.
A imperatriz bufou em algum lugar ao meu lado.
— As vozes na sua cabeça são bastante seletivas, querida Briseis — cutucou Karen. — Os vários corpos mutilados lá fora também não possuíam vozes? Não possuíam uma família, alguém para quem voltar?
Esperei que Briseis voasse em seu pescoço mais uma vez e meu corpo ficou tenso. Embora fosse tentador, eu não poderia deixar que ela matasse a Imperatriz. Porém, contrariando meus pensamentos, Briseis apenas enxugou as lágrimas que continuavam caindo e disse:
— Eu não tive a chance de salvá-los.
— Tampouco teve a chance de salvar Luzia. Quem poderia derrotar aquela besta medonha? — lembrou Daniel, se pondo entre as duas, para evitar outro embate. — Mas se quiser fazer nosso esforço valer a pena, pare de lamentar o leite derramado e fixe-se no agora, Briseis. Existem muitas vidas lá fora precisando de nós. Vidas que podemos salvar.
Ouvir o cadáver ser nomeado pela primeira vez acendeu uma possibilidade que eu não considerara. Eu já havia praticamente salvado um humano antes, dois se considerasse que Briseis era uma quando a encontrei. Eu possuía um poder útil, que talvez não funcionasse, mas que na melhor das hipóteses guardava grandes possibilidades de êxito.
— Talvez haja uma forma de salvar esta vida — falei, me ajoelhando rapidamente ao lado da garota.
— Mas que porcaria está falando, Heitor? — praguejou Karen. — Você não pode fazer isso, não quando há tantas outras coisas mais importantes neste momento.
—Você pode fazer algo? — perguntou Briseis, confusa, enquanto me via espalmar as mãos acima do corpo de Luzia. — Não, não há nada que se possa fazer, ela está morta...
— Na verdade há — informou Daniel, com a voz entediada. — É mais um dos superpoderes dele. Heitor é o médico supremo dos Hanarianos. O cura-tudo.
—Não seja ridículo — pedi, tentando me concentrar ao máximo no que estava fazendo.
— Como... pode ser possível? — Os olhos negros da garota me olhavam como se eu fosse algo próximo a um santo, brilhando em expectativa. — Você consegue mesmo, Heitor?
— Ele é o Imperador. Imperadores possuem poderes supremos capazes de alterar em níveis superiores matéria, tempo e destino. O poder de Heitor é o da cura — Karen explicou displicentemente.
— Se estivéssemos em uma missão séria — acrescentou —, sua prioridade seria ajudar a Imperatriz ferida, ao invés de uma velha humana qualquer.
Os olhos de Briseis faiscaram em sua direção, incisivos, como se pudessem desintegrá-la.
— Para alguém que perdeu a última luta, Karen — Daniel parecia despreocupado enquanto se aproximava da Imperatriz, mas sua tensão exalava. — Você parece bastante corajosa, não acha?
— Ela não ousaria me ferir novamente — decretou, tocando a ferida em seu pescoço, o ódio fervilhando. — Eu cortaria seus dedos fora.
A ameaça não pareceu muito consistente. Primeiro porque quem estava queimada ao redor do coração de ônix era ela e segundo porque eu já sentira o poder de Briseis antes, e o de Karen não se comparava nem um pouco. A tensão do momento não deixou que eu me concentrasse o suficiente naquela problemática.
— Tenta a sorte — sibilou Briseis ao meu lado.
— Bem — Karen disse num suspiro, ignorando o evidente desafio —, enquanto vocês estragam o precioso tempo que poderíamos usar achando o livro. Eu vou até as guardiãs, pedir para que tragam as pessoas de volta e informar do triste acidente, já que a presença da Imperatriz é tão pouco estimada nesse meio.
Vá, por favor — implorei em minha mente.
Assim que ela se retirou, batendo os pés como uma criança birrenta, levei minha atenção novamente aos meus poderes, tentando invocá-los com toda a força possível. A luz vermelha saiu das minhas mãos em direção ao corpo da senhora, gotas de suor me tomavam o rosto e eu me sentia esgotado ao mesmo tempo que direcionava toda minha força para lá. Contudo, não identifiquei a mudança que ocorrera com Carla ou com Briseis. Seu estado não mudava, o coração parado não tornava a bater. A morte ainda estava lá, insistente e pesada, envolvendo cada pedaço daquele corpo.
Briseis tocou o rosto de Luzia, a pele de sua mão assimilando de prontidão o tom gélido que em nada combinava com a vida. Seus olhos dispararam até os meus em completo desespero. Daniel se remexeu a minha frente, desconfortável, ele também pressentira que algo não correu bem.
— O que houve? — perguntou a garota, avaliando cada centímetro das feridas do cadáver a sua frente com desespero. — Por que não se fecharam, Heitor? Diga-me que funcionou, por favor...
Eu e Daniel nos entreolhamos, compreendendo de súbito o que acontecera.
— Não se pode trazer algo que se foi — sussurrou Daniel, baixando os olhos, fixando-os em qualquer ponto no chão que não fosse Briseis.
— Como assim?
— Nem mesmo a mais forte magia hanariana pode salvar um ser da morte — expliquei, resgatando a informação que Arminda me fornecera.
Naquele tempo aquilo parecia óbvio, não se podia tirar o que era da terra. Mas agora uma tristeza, para não dizer desespero, se apoderava de mim. Até onde eu imaginava seria fácil curar pessoas, salvá-las, porém ressuscitá-las era uma habilidade pela qual eu daria uma parte de mim para ter.
— A força vital é a energia sagrada de todas as dimensões, seja ela humana ou mágica. Ninguém pode fazê-la ressurgir onde se extinguiu — finalizei.
— Então ela se foi — concluiu Briseis. — Não tem jeito?
Daniel balançou a cabeça, olhando mais uma vez ao redor.
A garota captou seu movimento e lançou um olhar soturno para o corpo no chão. Alcançou um pedaço do que anteriormente era um grande tapete da sala com mesas e puxou para perto de si. Entendendo o que ela pretendia, estiquei os braços para ajudá-la. Puxamos o tecido denso e poeirento até o corpo de Luzia e o cobrimos deixando apenas alguns fios de cabelo sujos de sangue do lado de fora. Um nó se formou em minha garganta.
Levantei lentamente, a perna machucada doendo em protesto, ainda olhando para o tapete sobre Luzia. Todos os seus anos reduzidos a nada só porque ela estava no lugar errado e na hora errada.
Mas não seria assim que todos nós morríamos? Por tristes fatalidades da perversa Vreida, ou do destino, como acreditavam os humanos...
— Bem, o que você fará agora? — questionei estendendo a mão para ela, que declinou e levantou só, varrendo uma poeira imaginária no jeans sujo da sua calça.
Briseis deu pequenos passos no sentido da antiga porta, que naquele momento nada mais era que lascas e pedaços de folhas, e falou:
— Precisamos agir no que ainda tem jeito — decidiu, os olhos negros perscrutando cada centímetro da destruição causada pelo Krenger. — Temos muitas notícias difíceis para dar as pessoas lá embaixo. Mas, a julgar pela feição de todos quando você disse que o tal livro...
— Aquele onde você diz ter me visto — lembrei. — O livro de Vornek...
— Aquele onde eu lhe vi — corrigiu, gélida. — Ele deve ter grande importância. Uma importância tão grande que alguém muito sinistro precisou mandar a máquina mortífera para o roubar. A pergunta em questão é, por que ele estava aqui e não num lugar seguro? Um cofre, por exemplo?
— Sua inteligência já deve ter lhe respondido isso — sugeriu Daniel.
— Eu precisava de um... incentivo para treinar minhas habilidades de defesa e ocultação. E mesmo que estivesse com o livro, minhas horas de prática seriam inúteis. Isto porque nossos inimigos se aliaram justamente às mais perigosas das bestas, aquelas que não admitem magia — respondi, lembrando das inúmeras noites que passei naquele lugar antes da chegada de Briseis. Das horas lembrando do sotaque e voz de Arminda, da minha antiga vida, as pessoas que abandonei.
— Espere — pediu a garota. — Se o krenger neutraliza nossa magia, como fomos capazes de entrar nos túneis mágicos e levar as pessoas para lá?
— Utilizamos a porção humana das passagens, entrando sem magia lá — expliquei, embora algo no fundo da minha mente me dissesse que não fora daquela maneira que eu e Briseis havíamos chegado até lá embaixo mais cedo.
— Entendo — ela assentiu. — Mas ainda não me parece claro por qual motivo o livro de Vornek não estava onde pudéssemos protegê-lo.
— O livro é uma praga — falei. — As histórias contam que ele quase levou a rainha Aine à loucura. E, se estivesse em casa... provavelmente Lucinda não estaria viva neste momento. É por causa dela e de sua proteção que estamos aqui. O Vale das Estações é o lugar mais seguro em todo o mundo. Meltas não podem nos rastrear, estranhos perigosos não podem entrar. O portal poderá ser aberto em segurança nessa cidade, sem sermos perseguidos ou mortos neste meio tempo.
— E ainda assim... — ponderou a garota, os dedos percorrendo uma mesa coberta de poeira e pedaços de folhas.
— Ainda assim? — incentivei o término de sua frase arqueando a sobrancelha.
Ela virou e em seus olhos eu conseguia ver passar um filme do dia em que nos vimos pela primeira vez, as minhas perguntas refletidas nela. Sua voz era apenas um murmúrio quando disse:
— Eu entrei aqui... E o Krenger também.
— Talvez Lucinda esteja doente — A voz de Daniel no canto chamou minha atenção. Por um minuto pude esquecer que ele estava ali. — Ela é a responsável pelas defesas, que já nem são mais defesas assim. Estaríamos nós mais salvos neste lugar mesmo?
— As defesas de Lucinda foram capazes de segurar o krenger enquanto procurávamos um lugar seguro. Além disso, nunca avistei um melta dentro dos nossos limites — falei na defensiva. Eu não conseguia imaginar um inferno onde não pudesse dormir sossegado, temendo ser morto por qualquer criatura.
— Não deveríamos ter Krengers aqui também! — exclamou ele. — Mas ainda assim os tivemos e várias pessoas morreram ou quase morreram... Vocês dois, inclusive.
— O que você sugere? — perguntei. — Que deixemos as barreiras nas mãos de Zínia? O que ela fez por qualquer um de nós, por essa missão, além de proteger e paparicar Karen?
Daniel girou os pés sobre uma pilha de folhas rasgadas pregadas em sangue.
— Você bem sabe que não podemos transmitir a proteção de um lugar para outro ser — lembrou displicentemente. — Mas deveríamos sair daqui. Parar de trazer caos e destruição para a cidade, ou em breve isto será apenas um grande o horrendo cemitério, cara.
— Nós seremos mortos.
— Ora, se não podemos nos proteger dos meltas mesmo com poderes e os integrantes em idade máxima. Por que fomos escolhidos, afinal? A rainha Aine e o livro de Vornek sempre estiveram pirados então, é isto?
Havia uma verdade esmagadora e preocupante em suas palavras.
— O que propõe que façamos, então?
Era uma péssima ideia sair do Vale das Estações numa data tão próxima ao solstício de inverno. Seria pedir para morrer.
— Tentar descobrir por que eles precisam do livro de Vornek, em primeiro lugar — sugeriu Briseis. — Se é útil para os meltas nem quero imaginar o quão útil era para nós.
Assenti com um gesto de cabeça.
— Ele apresenta informações preciosas sobre o multimundo hanariano, concentrando também a magia responsável por abrir o portal que nos levará ao mundo mágico juntamente com a adaga. Sem as peças de Vornek, jamais poderemos encontrar as joias elementais e chegar a Hanaros novamente — informou Daniel.
—Acredito que os Meltas tenham pego para poder rastrear as joias antes de nós e ter vantagem. Eles sabem que é impossível conjurar o portal sem que estejamos presentes — acrescentei.
Briseis levou as mãos à cabeça, completamente atordoada. Ela inspirou profundamente e então se dirigiu a nós:
— Okay, embora eu não entenda muito sobre isso, me parece bastante encrenca.
A aura de Karen começou a se aproximar mais uma vez. Notei que os outros a identificaram também, a julgar por seus músculos contraídos muito antes dela estar em nosso campo de visão. Seus cachos ruivos, que antes estavam milimetricamente definidosdos, agora apresentavam um ou dois fios rebeldes. Mas ela ainda estava bonita, contrastando duramente com o resto de todos nós e o cenário.
Ela soltou um longo suspiro quando notou nosso silêncio e disse:
— Eles estão subindo. Eu nunca imaginei que a coisa estivesse tão feia lá embaixo. O Krenger fatiou mais algumas pessoas além da velha. Felizmente, o humano médico está lá tendo um trabalho tremendo...
— Eu preciso ajudá-los — decidi, já me encaminhando para a porta que dava nas passagens subterrâneas. — Posso fazer muito mais. Isto é culpa nossa...
— Heitor... — impediu Daniel, colocando o braço para me conter. — Eu te entendo cara, tudo está péssimo. Mas acho que não temos tempo ou forças para cobrir a visão dos humanos sobre seus poderes.
— Daniel está certo — disse Karen. — Não podemos baixar a guarda, quer queira, quer não, a proteção do que sobrou da cidade depende exclusivamente de nós.
— Então por qual motivo não estamos a protegendo? — perguntou Daniel.
Silêncio.
Karen começou a abrir a boca, quando passos hesitantes ressoaram vindos da parte posterior e ainda intacta da biblioteca, onde os túneis subterrâneos desembocavam no lugar em que estávamos.
—Oh, não... — sussurrou uma voz trêmula em algum lugar às minhas costas.
Virei a ponto de ver a expressão horrorizada de Eunice e os óculos tortos e arranhados em seu rosto sujo. Lágrimas escorriam de seus olhos... Na verdade, elas estavam presentes em todos os rostos que emergiram da passagem ao chão, dezenas de pessoas desoladas, sujas, atordoadas e apavoradas. Os dedos da bibliotecária passeavam pelas paredes destruídas até a metade, os pés se arrastavam levando as muitas folhas picotadas. Fiquei feliz por vê-la bem, por saber que o Krenger não havia a levado também. Pensei em ir até ela e consolá-la, mas naquele momento muitas pessoas tomavam o prédio fazendo perguntas, procurando por pessoas que sabíamos não habitar mais entre os vivos.
—Eunice! — Briseis correu até ela para ampará-la antes que caísse no chão.
— O que aconteceu aqui, meus filhos? — Os olhos pequenos da bibliotecária estavam tristes. — Onde irei trabalhar agora?
— Vai dar tudo certo, Eunice — garanti, tentando acalmá-la. Embora soubesse que provavelmente a última coisa que aconteceria seria dar certo. — Só um momento.
Puxei Briseis até um canto afastado de Eunice.
— Ajude as pessoas que estão subindo a irem para casa em segurança, elas precisam.
— Mas Luzia... — Briseis apontou com um gesto de cabeça na direção do corpo coberto com o tapete.
— Eu irei encontrar Lucinda e ela dirá o que fazer. Podemos dar-lhe um enterro digno — sugeri, encorajando-a para que fosse. Mantê-la no cômodo com Luzia não estava lhe deixando bem, não estava deixando bem nenhum de nós na verdade.
Ela balançou a cabeça positivamente.
— Eu acho que precisaremos fazer uma vigia nas fronteiras da cidade — disse Daniel antes que Briseis saísse.
Ela se deteve.
Karen o olhou, entediada.
— É uma boa — falei. — Podemos fazer rodízios de turnos, se alguma coisa ameaçar a cidade não seremos pegos de surpresa.
Se, e somente se, a coisa não fosse um Krenger — pensei, infeliz.
— E quanto a mim? — perguntou Karen.
— Você pode ser útil ao menos uma vez e vir comigo, conseguiremos cobrir uma extensão maior em dois — chamou Daniel. — Heitor e Briseis ficam responsáveis pela ronda do turno da noite já que ela precisa ajudar as pessoas.
— Okay — concordou Briseis num suspiro. Ela virou-se para mim e acrescentou: — Encontro com você em frente à biblioteca às oito.
Tentei ignorar o tom de desconforto em sua voz.
— Tudo bem.
Briseis passou por nós e saiu. Karen a acompanhou com os olhos até que ela sumisse do nosso campo de visão.
— Essa garota tem algo de mau — falou, tocando a ferida em seu pescoço. — Algo de muito mau.
— Não seja tola, Karen — censurou Daniel. — Você apenas foi pega de surpresa. Não tem problema admitir.
— Pega de surpresa pelo Coração de Ônix. Faz muito sentido, realmente — avaliou com escárnio.
— Eu posso te ajudar? — perguntei, aquilo estava com um aspecto realmente ruim.
Ela assentiu silenciosamente, seus olhos azuis fixos em mim enquanto eu me aproximava com a mão estendida. Quando toquei a pele do seu pescoço a vermelhidão e as bolhas que havia em alguns lugares deram lugar ao branco de sua pele. Em poucos segundos seu pescoço estava imaculado novamente.
— Seu toque é macio — sussurrou.
— Depois de curar uma queimadura dessas, até o toque de um ouriço seria macio — falei, me afastando rapidamente.
Karen gargalhou.
— Um ouriço certamente não seria tão agradável ou me curaria.
— Hãn... é verdade.
— Desculpa atrapalhar o clima de romance entre vocês dois, mas nós precisamos ir — chamou Daniel rolando os olhos.
— Eu não irei, preciso de um banho... — decidiu Karen, cruzando os braços.
— Acredite Karen, das pessoas aqui, você é a que menos precisa de um banho — observei, apontando para minhas roupas imunda.
Ela me lançou um sorriso radiante.
— Seu elogio me deu motivação — gracejou.
— Ótimo — cortou Daniel. — Você vai ou não?
Ele virou as costas e foi em direção à antiga saída da biblioteca. Karen deu uma piscadela para mim, jogou o rabo de cavalo para trás e o seguiu.
Qual era o problema daquela garota? E por que eu sentia que Daniel não gostava nem um pouco dela e vice-versa? Briseis a odiava, eu já tinha certeza, mas eu só conseguia sentir pena. Talvez Karen fosse tão difícil por toda a carga que carregou na vida. Sobre cargas pesadas demais eu entendia bem.