Apertava minhas mãos enquanto não tirava os olhos da janela. A paisagem que eu vira me confortava, mas já tinha frequentado aquele lugar desde que voltara ao Havaí para ter uma vida mais confortável e esquecer todas as lembranças de São Francisco. Não tive êxito nessa parte, mas esse era exatamente o motivo de estar ali naquele Djavan com um profissional me olhando sem expressão em seu rosto, apenas esperando que eu passasse uma hora falando sobre algo que eu queria manter comigo mesma.
Mas esse era o acordo do juiz, deixaria a Sunny por seis anos em tratamento do seu surto psicológico em um sanatório de boa qualidade, enquanto eu poderia ficar livre, mas com acompanhamento médico. O enxame de sangue que eu fizera todo mês já tinha acusado que eu não tinha nenhuma substância correndo no meu organismo, e era esse o motivo de eu não ter mais surtos, visões e ilusões durante anos.
Doutor Harry me observava enquanto eu tinha dado uma pausa no que estava falando. Ele ficara com um bloco na mão só anotando, e às vezes me interrompia com algumas perguntas nas quais eu mesma não sabia o que responder.
- Por que quando falamos nele você sempre dá esse tempo para responder? - Ele perguntou parando de escrever.
- Ainda não me acostumei. Sei que estou aqui para me acostumar com as lembranças dos últimos quatro anos, mas... - Respirei. - é difícil saber que quem matou minha mãe ficou tão perto e não pude fazer nada. Mais difícil é saber que ele é meu pai.
- Como seu pai se sente com isso?
- Nós nos falamos por telefone. Ele sabia desde o meu nascimento. Procurou o meu pai biológico, mas ele tinha viajado... Na verdade, fugido. E então me criou para não me deixar ir ao orfanato.
Tirei a minha visão da janela e a pus dentro do escritório. O motivo pelo qual aquilo ainda me arranhava por dentro é que mesmo o Jack morrendo, ele levara alguém que tinha uma parte de mim consigo. A morte da Alia nunca saiu da minha cabeça, quando fechava os olhos enquanto dormia eu sentia meu rosto queimando igual ao dia do incêndio no casebre, sentia o cheiro de fumaça e as cinzas caindo sobre meu rosto.
- E você, Harry... Por que veio ao Havaí?
- A Gradley fechou. Eu não tinha para onde ir, então resolvi abri meu próprio consultório particular. Fiquei em dias com a justiça provando que não usava medicamentos ilegais em meus pacientes e que não sabia do que a maioria daquele sanatório fazia.
- Ainda não explicou porque o Havaí... - Eu disse rindo.
- Sabia que vocês precisariam de mim.
O sino tocou, revelando que uma hora já tinha passado. Eu me levantei e peguei minha bolsa. Harry continuava sentado e imóvel. Eu lembrei rapidamente do nosso primeiro encontro na Gradley enquanto eu fugia e entrara em sua sala sem querer. E que ele veio até o Havaí só para cuidar do nosso caso. Eu abri a porta quando ele chamou minha atenção.
- Boa sorte. - Ele disse ainda naquela posição.
- Boa sorte com o que? - Eu perguntei virando.
- Você irá precisar.
Eu esperei alguns segundos e ele não falou mais nada. Passei pela recepção e fui ao meu carro para seguir até minha casa. Emmy estaria com a babá essa hora, ela era uma pessoa inteligente, mas ainda não tivera idade o suficiente para fazer algumas coisas sozinha. Acelerei pela cidade pensando na Sunny, quantos meses ainda faltara para que pudéssemos se ver e rir de tudo o que passara todo esse tempo.
Cheguei a casa e estava olhando para o teto observando o ventilador dar voltas no ar. Minha cabeça ainda doía e eu tinha que fazer alguns relatórios para o hotel naquele dia. A noite passada foi muito cansativa, e eu não consegui dormir depois do susto que levei.
- Mamãe? – Disse a Emmy na porta com seu uniforme.
- Oi.
- Nós vamos nos atrasar para as minhas aulas. Você não irá ao trabalho?
- Meu trabalho só volta das férias amanhã.
Levantei-me e me pus a pegar a minha roupa que estava em cima da cômoda. Andei até o guarda roupas e peguei um casaco. Só iria levar a Emmy na escola e não iria demorar muito fora de casa.
Há quatro anos eu adotara uma criança cujo pai e a mãe abandonou no hospital. O nome dela era Emmy, o mesmo que o da minha mãe e escolhido por eles. Mantive por gostar das lembranças que ele me causava. Mas para adotar aquela criança pela qual eu já tinha afeição, era necessário ter um casal, eu sozinha não iria ter êxito. Então pedi para que Kate, a diretora do orfanato, como amiga e não profissional, tentasse achar alguém para casar comigo só até eu adotar a criança.
Entramos no quarto e coloquei o cinto. Mandei a Emmy fazer o mesmo e acelerei.
- Falta pouco para a tia Sunny sair do sanatório. – A Emmy disse.
- Se eu perguntar dessa vez como você sabe disso, você irá me responder? – Questionei.
- Não. – Ela disse. – Por que eu também não sei como eu sei disso.
Eu olhava para ela e dirigia ao mesmo tempo. Ficava pensando como ela sabia de tudo o que eu e a Sunny tinha passado se ela nem era nascida. "Alguma pessoa" Eu pensei, pode ter contado para a Emmy e eu não vira. Mas era algo impossível quando eu a privava de todos que não conhecia. Então continuei acelerando o carro, e dei a curva para entrar na escola da Emmy. Quando tive uma pequena recordação.
Cheguei de carro com minha melhor amiga, Sunny Mitchel, no Havaí. Nós estávamos arrasadas, depois de ter fugido de São Francisco e quase morrido como nossa amiga em um incêndio. Nós estávamos sem rumo, então fomos para um acampamento até que a poeira abaixasse.
- Ainda não acredito que a Alia se foi. - Disse Sunny.
- Eu não acredito que minha vida se tornou um inferno depois de ter saído daquele sanatório.
- Vamos ficar aqui até quando?
- Eu não estou com cabeça para pensar nisso agora. – Eu disse.
Estávamos no pátio quando escutamos um estrondo do lado de fora e um barulho de sirene. Nós levantamos e uma ambulância parou em nossa frente. As portas se abriram e um homem de jaleco saiu ao mesmo tempo.
- Sunny Mitchel?
- Sou eu... – Ela disse.
- Você irá ser conduzida para um sanatório daqui do Havaí.
- O juiz já decidiu o dia?
- Sim. Podem levá-la.
A Sunny tinha matado várias pessoas devido a esses seus surtos. Mas eu não tinha medo, eu sempre vivi com ela e ela nunca me atingira. Ela entrava em transe e só voltava quando matava alguém.
- Fique bem. - Nos abraçamos. - Eu irei te esperar. – Falei.
Mas era tarde. Eles me tiraram da frente e a colocaram na ambulância. A última coisa que eu vi, foram as luzes da ambulância e ela sumindo no escuro da estrada.
A Emmy me deu um beijo e correu para a escola. Uma coisa me deixou encabulada... Enquanto a Emmy passara, todos da escola ficaram distantes, com medo de algo. Eu dei a ré, e voltei para casa rapidamente.
Ao chegar a casa, fui direto para o quarto. Peguei meu notebook, e fui fazer algo que eu tinha feito em toda minha vida: Pesquisar sobre os pais biológicos da Emmy. Eu fazia aquilo há anos e não tinha nenhuma noticia pessoal deles, apenas a causa da morte estampada nas manchetes de jornais: uma gangue invadiu a casa do casal e os mataram por dever dinheiro, deixando apenas a criança no berço.
Eu tinha pegado um café para a senhorita Kate, a diretora do orfanato. E tinha dado a xícara para ela, me sentando no sofá.
- Alguma novidade? – Eu perguntei.
- Sim! Encontramos um pai para a Emmy. Você não tinha conseguido encontrar alguém, então uma pessoa se ofereceu, eu tive a liberdade de colocar o sobrenome no nome da Emmy, já que ela só tem sete meses e não tem um registro de nascimento.
- E ele quer ser um pai presente?
- Não. Ele só disse que iria fazer um favor para uma pessoa querida.
- Mas, então ele me conhece?
- Ele deixou parecer que sim.
Peguei a certidão da Emmy que estava numa pasta que ela me dera, e me pus a ler quando deixei escapar um pequeno desconforto em ler aquele nome. Nele continha o sobrenome William. Emmy William Hones era o atual nome da minha filha.
- Senhora Kate, qual o primeiro nome do homem que se ofereceu?
- Jack.
Lembranças ruins vieram em minha mente ao lembrar-me daquele nome. Eu não queria que o meu pai, fosse o pai da minha filha também. Não comentei isso com a Senhora Kate, pois saberia que isso seria um problema enorme. Meu pai verdadeiro matara minha mãe sem maior pena depois do meu nascimento. Passaram-se dezesseis anos até eu conseguir desmascará-lo, e então morrera em um incêndio.
Algumas dúvidas permaneceram em mim, depois de me perguntar como ele poderia está morto se ele dera o seu sobrenome a minha filha. Tinha ligado para o hospital onde ele foi atendido, e eles confirmaram sua morte. Alguma brincadeira de mau gosto foi feita, alguém deu o nome do Jack, e me deixou aflita naquele dia.
Estava olhando a foto minha e da Emmy deitada na cama. A janela começou a bater com o vento forte invadindo o quarto. Iria chover, e eu poderia sentir.
Levantei-me e fui até o quarto da Emmy. Fui com o intuito de limpar a tinta preta que estava derramada, e eu não achei nada. O quarto estava arrumado e os desenhos que eu vira estavam em cima da mesa de desenho.
Sem querer bati em um quadro na parede com uma pintura que ela fez na escola e ele caiu. Revelando um desenho que ela tinha feito na parede, e tinha escondido para que não pudesse ver.
No desenho tinha um grande pássaro preto, com uma criança na boca e uma mulher correndo atrás do mesmo. Eu coloquei o quadro de volta e tirei o outro, me surpreendi quando vi várias palavras no latim pintadas na parede com tinta preta.
Coloquei o quadro novamente e me sentei na cama da Emmy. Ela não sabia escrever, e tinha acabado de entrar no colégio este ano. Alguém escreveu aquela frase, já que ela só sabia escrever o seu próprio nome.
Já tinha dado a hora de buscar a Emmy, quando percebi que tinha dormido por cima das fotos. Peguei o carro e acelerei pelas ruas do Havaí.
Chegando á escola, a Emmy já estava me esperando na calçada. Ela entrou no carro e me deu um beijo na testa. Percebi que em suas costas havia um papel grudado com fita, o arranquei e me coloquei a abri-lo. Naquele pequeno e doloroso papel que fez meu coração bater mais rápido, existia quatro palavras: "ESTOU DE VOLTA!".
Já fazia quatro anos que eu estava ali. Meu tempo estava morbidamente parado durante minha estadia naquele novo sanatório, quando ouvi um plano das outras meninas para fugir. Esse sanatório não era igual onde eu estava quando eu tinha dezesseis anos. Tratavam-nos bem, mas eu precisava sair para ver a Kyle o mais rápido possível.
- Sunny? – Disse uma voz masculina por trás de mim.
Era o Cauã, ele me ajudara muito no tratamento dos meus surtos. Além de dar em cima de mim sempre quando pode, mas não deixo de citar para ele que sou lésbica e apaixonada por minha melhor amiga.
- Olá. – Eu disse.
- Houve mudanças no dia da fuga.
- Para quando?
- Amanhã as meia noite. Você vem conosco?
- Sim, preciso fazer uma coisa lá fora. – Eu disse.
- Sunny, você pode me contar, confie em mim.
- Eu descobri algumas coisas... Você não iria entender se eu contar, pois não sabe da antiga história, mas essa é uma nova história e com um novo objetivo. Minha amiga corre perigo, ou talvez alguém que minha amiga ame muito corra perigo também. Eu não sei. Mas eu só sei que tenho que está com ela para ajudar. Estou segura, mas eu estou menos segura ainda se ela estiver correndo perigo.
- E como você sabe disso?
- Visões, elas estão voltando de novo.
- Sunny, você precisa de cuidados, isso não é normal...
Ela ficou calada em meio ao enorme vazio de onde estavam. Ele olhou para o horizonte e viu o sol indo embora, e com aquela enorme visão ele pareceu confuso.
- Meu avô me visitava quando eu era mais novo. E me contava histórias sobre minha família que eles nunca me contaram, e nunca queriam que eu soubesse. E quando descobriram que eu sabia me internaram aqui desde então.
- E o que você fará agora?
- Justiça. Pelo meu avô.
- Eu também. – Eu disse. – Pela minha amiga.
- Te desejo sorte, Sunny. E que você consiga sair vitoriosa. Lembre-se de uma coisa que eu descobri pelo meu avô. A verdadeira história é aquela contada pelos mortos.
Ele deu as costas e entrou no sanatório outra vez. Eu fiquei ali vendo o sol partir e pensando o quanto nossos pensamentos são poderosos, o quanto ele nos engana, mas também nos protege de várias coisas.