Uma rosa para Emilse
E foi assim. Todos os dias Leonhard se dirigia à biblioteca todo contente e saltitante dando a desculpa de emprestar livros. Chegou a selecionar livros dos quais jamais leria, sem interesse para ele. Mas, o interesse estava ali, no balcão. A garota dos cabelos cor de mel.
Ele a olhava impressionado com sua beleza. Cada gesto dela o deixava encantado. Por vezes, se pegava imaginando como seria abaraçá-la, beijá-la, senti-la.
Um dia foi bastante ousado. Durante sua caminhada matinal até o colégio, colheu uma rosa linda bem vermelha. "Entregarei nas mãos de Emilse após a aula", pensou. Como de costume, deixou uma pedra no túmulo de seu avô, Benjamin, no cemitério judaico que ficava no caminho para a escola. Sentia-se triste ao lembrar do avô. E, também, ao lembrar de sua mãe do coração Hanna. Onde ela estaria? Por quê o coração de seu pai foi tão frio ao expulsá-la de casa sabendo que ela não tinha para onde ir? Será que estava se alimentando? Será que tinha um teto sobre sua cabeça? "Mãe, eu te amo, que Deus esteja sempre com a senhora", ele suplicava. E mais: devia falar sobre aquilo que viu no banheiro? Aquela cena aterrorizante? Deveria mesmo tentar falar com o pai que estava mais preso ao passado do que tudo, mesmo depois de 16 anos? Para um adolescente, tais perguntas incomodam demais. É muito difícil ser decidido na adolescência. Leonhard mantinha todas essas indecisões, a não ser uma, a qual tinha mais certeza do que tudo: Emilse.
— Guten morgen Emilse! - ele disse todo sorridente, aquele sorriso lindo igual ao de Lisie, ao entrar na biblioteca do colégio após o término das aulas.
— Guten morgen Herr Lipschutz, o que vai ler hoje? - respondeu-lhe a garota dos cabelos cor de mel num tom sereno e agradável, que fez seu coração pulsar mais rápido.
— Por favor me chame de Leonhard e não, hoje não vim ler nada!
— Ora, ora! Será que você já leu todos os exemplares daqui? - ela fez uma cara de surpresa.
— Acho que não. Porém, hoje vim lhe fazer um convite.
— Convite? - Emilse arqueou uma das sobrancelhas expressando dúvida.
— Ya! Vamos à cafeteria? - e Leonhard esticou sua mão direita que segurava a rosa vermelha reluzente.
Emilse arregalou os olhos verdes e sua boca fez um formato idêntico ao de um O. Ela expressava espanto. Segurou a flor com a mão esquerda, espetando-se em alguns dos espinhos presentes em seu cabo.
Ao perceber o leve descuido da moça, Leonhard tocou-lhe suavemente a mão, deslizando seus dedos calejados de tanto escrever durante as aulas, sob as minúsculas feridas que os espinhos causaram. Ele olhou fixamente para a garota dos cabelos cor de mel e sorriu. Ela retribuiu o sorriso. Em seguida, guardou a flor em sua bolsa.
— Então? Vamos a cafeteria? - Leonhard reafirmou o convite.
Emilse gaguejou um pouco. Respirava fundo diversas vezes. Parecia pensar. Leonhard aguardava ansiosamente sua resposta.
— Estou com pouco dinheiro Herr Lipschutz. Sinto muito.
— Não seja por isso. Eu pago nosso lanche.
Emilse pareceu insegura. Mas, por fim, aceitou ir à cafeteria com o aluno.
Leonhard quis tanto, mais tanto, segurar a mão da moça durante a curta caminhada até a cafeteria. Ele teve que colocar suas mãos para trás e segurá-las firmemente em suas costas contendo a si mesmo para não avançar mais do lhe era permitido. Fitava a garota mas ela só olhava pro chão. Percebeu leves sorrisos em seu rosto. Sorriu também. Ele a admirava e sentia algo diferente ao olhar para ela. Algo reconfortante. Algo bom.
Ao chegarem, Leonhard com seu cavalheirismo inquestionável, puxou uma das cadeiras da mesa em frente ao jardim para que Emilse se sentasse. Ela o fez. Sorriu de um jeito bobo para o rapaz e ele retribuiu o sorriso logo em seguida chamando o garçom. O garçom veio entregando dois pequenos cardápios e saindo em cima de dois patins numa velocidade surpreendente.
— Como eles não caem, não é? - questionou Emilse quebrando o breve silêncio.
— Verdade. - disse Leonhard sem jeito. — Já escolheu o que vai querer?
— Ainda não. - e olhou novamente para o pequeno cardápio.
Um breve silêncio de novo. Aquilo parecia incomodar Leonhard por dentro. Queria poder falar de tudo para a garota dos cabelos cor de mel. Até do que sentia. Mas, sabia que aquele não era o momento. Emilse quebrou o gelo mais uma vez:
— Você entregou minha carta ao seu pai? Ele disse algo?
Leonhard ficou extremamente desconfortável naquela hora. Não havia entregado nada ao pai. O retrato de Emilse estava em sua gaveta junto com a carta que jamais lera. O quão estúpido ele foi.
— An... é que... meu pai anda um pouco ocupado. Minha avó está doente e meu avô desaparecido. Ela anda tentando achar um jeito de encontrá-lo.
— O que aconteceu com o seu avô? - Emilse parecia curiosa.
— Ela está preso do lado oriental. Os soviéticos não o deixaram voltar. Ele foi com seu tio em uma mudança para Berlim bem no dia que os soviéticos construíram o bendito muro. Agora ele está do outro lado e ninguém sabe como atravessar até lá.
— Nossa que coisa terrível! - Emilse exclamou. — Sabe que ouvi alguns dos meus vizinhos dizendo que os americanos ainda estão procurando por nazistas para julgá-los. Saiu nos jornais que Adolf Eichmann está sendo julgado em Israel.* E alguns advogados têm permissão para atravessar o muro em busca dos nazistas.
Leonhard ficou surpreso com aquela informação. Advogados? Seu avô Benjamin era um advogado. Se ele ainda estivesse vivo... talvez aquela informação ajudasse seu pai, sua avó e Samuel. Ele agradeceu Emilse pela informação e foram logo fazendo os pedidos: chocolate quente para Emilse e café com leite para si.
— Então, você vive com seus pais? Sempre quis saber se C.L. Joseph é casado ou não. - Emilse foi curiosa mais uma vez.
Leonhard não gostava muito de falar sobre suas questões familiares. Ele mesmo considerava Hanna como sua mãe, mas não seria nenhum pouco agradável dizer que seu pai a havia expulsado de casa por um motivo não muito aceitável.
— Pois é, meu pai é viúvo. Minha mãe morreu quando eu era um bebê. Não me lembro dela.
— E eu não me lembro do meu pai. Ele morreu na guerra. Moro com meu irmão aqui em Stuttgart. Minha mãe e minha irmã moram em Munique.
Leonhard se sensibilizou com aquilo. Ele não tinha sua mãe biológica e Emilse não tinha o pai. Pareciam histórias que se completavam.
Os dois permaneceram calados até terminarem suas bebidas. Ao se despedirem, Leonhard novamente puxou a cadeira para Emilse e estendeu sua mão para que ela se levantasse. Ela agradeceu o gesto do rapaz.
Ao saírem da porta da cafeteria, Leonhard não conseguiu segurar, ao ponto que queria, suas emoções. Passou seu braço direito pela cintura da garota de cabelos cor de mel e encostou suavemente seus lábios no dela. Emilse empurrou de leve o rapaz para trás. Ela estava espantada. Ele se desculpou. Ela saiu andando em sua frente sem olhar para trás o deixando completamente intrigado. "Será que fui longe demais?"
Demorou cerca de duas semanas para que ele tivesse coragem de voltar à biblioteca e falar com Emilse novamente. Será que ela ainda estava chateada com o incidente da cafeteria? Será que falaria com ele?
Ao chegar na biblioteca, surpreendeu-se, não havia nenhuma Emilse no balcão. "Será que ela se demitiu? Por culpa minha?" os pensamentos ruins o incomodavam. Mas não, ela só havia ido ao toalete.
— Pensei que havia esquecido de mim. - ela disse sorrindo e segurando um copo com água.
Seus cabelos transados atrás, bem penteados e brilhantes chamaram mais ainda a atenção de Leonhard que quis tanto reviver aquele beijo rápido de duas semanas.
— Andei ocupado. - Leonhard mentiu.
— Entendo. Esse é seu último ano no colégio, certo? - ela mudou de assunto.
— Sim. - ele foi breve.
Emilse pareceu perceber a inquietação de Leonhard, ela comentou:
— Não se preocupe Herr Lipschutz, eu não me chateie com o beijo. Apenas me assustei.
Leonhard sorriu aliviado. Parecia que uma pedra de 200 quilos havia sido retirada de suas costas naquele momento. Era tudo que ele precisava ouvir, mas não sabia como perguntar. Sua expressão facial mudou na hora e a alegria tomou conta de seu coração.
— A propósito — continuou Emilse — hoje à tarde estarei sozinha na minha casa. Meu irmão vai fazer as compras do mês. Não quer tomar um café comigo?
Aquele convite encheu seu coração de mais alegria ainda, que começou a pulsar num ritmo mais acelerado.
— Claro! Irei com você.
Os dois caminhavam distraídos pelas ruelas próximas da casa de Emilse e Derek. Era um lugar mais pobre da cidade. Dessa vez, não havia timidez, mas sim boas risadas e assuntos diversos. Eles passaram no mercado para comprar frutas e ingredientes para fazer um bolo, que serviria para acompanhar o café. Leonhard insistiu em arcar com todas as compras, não deixando Emilse pagar nada.
Era uma casa bem simples e bem menor que a de Leonhard, mas ele se sentiu confortável ali. Emilse lavou as mãos e já foi logo preparando a massa do bolo. Leonhard olhava admirado para a delicadeza da moça. Ela era belíssima.
Enquanto o bolo assava no forno, as conversas e risadas deram espaços a pequenos beijos de vez em quando. E esses beijos foram se tornando cada vez mais intensos. A vontade de ambos era tamanha que quase não podia mais ser contida. Emilse se viu sob o balcão da cozinha deixando que Leonhard percorresse todo seu corpo com suas mãos calejadas de tanto escrever durante as aulas. Leonhard estava bem animado com aquela situação toda. Um vento quente subia em seu corpo a cada momento que tocava Emilse e ela permitia.
Ele apenas ouviu a porta se abrir. Olhou para uma figura magra, baixa e de cabelos loiros um pouco grisalhos. Era o irmão de Emilse.
— Que pouca vergonha é essa? - o irmão gritou.
Os dois ficaram imóveis, descabelados, encarando o homem com espanto. Ele caminhava devagar pela pequena cozinha sem tirar os olhos dos dois. O olhar daquele homem congelou Leonhard por dentro e o fez temer muito. Parecia um olhar familiar para ele. Sentiu que, de certa forma, conhecia aquele irmão de Emilse. Era uma sensação estranha misturada ao medo. Ele estava ofegante e suas mãos começaram a suar. O calor daquele momento prazeroso ia dando lugar ao frio na espinha e ao suor congelante. Leonhard não conseguiu disfarçar seu medo ao encarar aquela figura. O homem parou em sua frente e pareceu farejá-lo feitou um cachorro cheirando um saco de lixo na rua. Foi assustador.
De repente, o irmão de Emilse agarrou o colarinho de sua blusa e pronunciou uma palavra que ninguém naquele mundo o havia chamado antes: judeu!
E continuo a gritar cada vez mais alto "judeu, judeu, judeu!"
— Saia da minha casa judeu! Saia daqui seu imundo, seu sujo, seu rato!
O irmão de Emilse o arrastou pela blusa até a porta e o atirou na rua sem dó. Batendo à porta logo em seguida. Leonhard se impressionou com tal ato deveras mal educado. Ele só conseguia olhar para a porta fechada e sentir-se triste. Uma lágrima insistiu em sair de um de seus olhos, mas ele a conteve com sua mão. Ele ainda pôde ouvir Emilse gritar lá de dentro. Queria impedir. Mas nada fez. Caminhou cabisbaixo até sua casa se sentindo humilhado e envergonhado.
*Adolf Eichmann foi julgado em abril de 1961, porém, essa é uma informação relevante para o andamento da história e preferi colocá-la, mesmo que contrariando os reais fatos históricos.