Sam me encarou outra vez, assim que colocamos os pés em uma das fraternidades da universidade, dizendo claramente que odiava meu plano e que era uma furada.
Eu sabia o que estava fazendo - e também sabia que era arriscado, tanto para nós quanto para as pessoas à nossa volta. Mas, eu precisava achar o metamorfo, esse era o meu trabalho e é a única coisa que eu sei fazer direito.
Nos telhados tinha papel higiênico enfeitando a fachada, copos e latinhas de bebida espalhadas por todo o gramado. Tinha até algumas pessoas desmaiadas no jardim, jovens bêbados por todos os lados e se beijando até perderem o fôlego.
Olhei para Sam, que parecia estar fora de órbita, como se fosse a primeira vez que estivesse em uma festa e visse pessoas dançando e se divertindo. O que me deixava curiosa, porque lembro-me vagamente de seu irmão me contar que Sam estava em Stanford antes de voltar a caçar.
— Você parece nervoso. Está tudo bem? — toquei suavemente seu braço, e Sam forçou um sorriso para mim.
— Sim.
— Bem, acho que você não sabe o que é diversão.
— Minha ideia de diversão é bem... diferente.
Ele escondeu as mãos dentro do bolso da jaqueta marrom, ansioso enquanto contava os minutos para dar o fora daquele lugar.
Deixei um riso escapar. Sam era adorável à sua maneira.
Puxei suas mãos para entrarmos na fraternidade, e superando minhas expectativas, o interior da casa era tão deplorável quanto seu quintal. Álcool, suor e leite azedo; eu me sentia na escola outra vez.
Trabalho no bar desde os quinze anos, e nunca tinha visto tantas pessoas bêbadas como vi aqui hoje.
A batida sem graça da música, sem letra para cantar, sugava minhas energias. Era entediante. Os rapazes mais novos da universidade passavam por mim, mediam-me dos pés à cabeça e me elogiavam, enquanto me chamavam para ir para sua cama.
— Por que eles acham que esse é o tipo de coisa que uma mulher gostaria de ouvir? — Sam deu os ombros para me responder, ele parecia tão descontente quanto eu — É repulsivo.
— Em todo lugar tem um idiota.
Saber que Sam concordava comigo era, de fato, reconfortante. Isso me dizia que ele não era um grandíssissimo idiota como seu irmão aparentava ser.
— Ali — ele me chamou, próximo o suficiente para que só eu pudesse ouvi-lo —, encontramos nosso cara.
Me afastei apenas para olhar seu rosto e descobrir em qual direção ele apontava. Franzi as sobrancelhas ao me virar e ver meu irmão, vestindo couro e com o cabelo penteado para trás - claramente não era ele, Charles não penteia o cabelo.
Olhei para o Winchester, que não tirava os olhos daquela criatura, enquanto eu pensava no que fazer para atraí-lo.
Escondida em um canto, quis ter certeza que minha arma estava carregada, porque eu vou descarregar um pente naquele monstro. Notando minha frustração, Sam tocou meu ombro e sorriu - como se dissesse que tínhamos que agir.
Pegou seu telefone e quando o ouvi chamar por seu irmão, eu soube que era minha deixa.
Cada pedacinho do meu corpo me dizia para dar meia volta e atirar nele a distância. Era repugnante pensar que eu estaria cara a cara com a sósia maligna do meu irmão, sorrindo para mim de forma indecente.
E foi exatamente o que aconteceu quando eu me juntei a ele no balcão improvisado da fraternidade. Quando ele me olhou senti meu corpo se arrepiar com nojo e agonia, gostaria que o chão se abrisse e me devorasse.
— Hey, que tal eu te oferecer um drink? — ele perguntou.
Foi bom saber que ele sequer se deu ao trabalho de vasculhar as memórias de Charles, caso contrário eu estaria morta.
Eu forcei o mesmo sorriso interesseiro, e toquei seus braços.
— Podemos pular o drink.
Foi realmente fácil convencê-lo de ir, e eu o levei até os fundos da casa - onde Dean e meu irmão já estavam esperando.
Imaginava que Sam, aquela altura, já estivesse posicionado. Bastava que eu levasse "Charles" até eles e daríamos um fim naquela coisa, a minha arma já estava engatilhada pronta para disparar.
— Agora que estamos sozinhos, por que não me diz o seu nome? — a forma traiçoeira como falou comigo me causou calafrios terríveis.
— Que tal "Hasthings"? — me virei apontando a arma para seu peito.
Mesmo sabendo quem eu era, e o tipo de bala que tinha no pente da minha arma, ele não se preocupou em apontar aquela faca para mim.
Reconheceu meu sobrenome, e a expressão apavorada em seu rosto dizia claramente como isso lhe causava calafrios.
"Charles" avançou na minha direção, desferindo golpes com aquela faca afiada e suja. Tive que recuar, e quando fiz isso, errei o tiro.
Ar faltou no meu peito. Eu nunca tinha errado antes.
Os outros já estavam demorando, isso me distraiu, eles já deveriam estar aqui para nos livrarmos dele juntos. Mas, eu estava errada. Errada, sozinha e desarmada.
Independente do que eu achasse a seu respeito, eu tinha que admitir que ele era forte e rápido. Ele tirou a arma das minhas mãos quando me empurrou para trás, quase perdi o equilíbrio; havia uma escadaria de tijolos pronta para amortecer minha queda.
Quando me equilibrei outra vez, o metamorfo estava diante dos meus olhos e me agarrou pelo pescoço, batendo minha cabeça contra a parede atrás de mim.
— Essa doeu... — me deitei bruços, tentando me levantar outra vez. Olhei para os lados procurando minha arma.
— Já ouvi falar muito de você, Hasthings. — ele circulou ao meu redor, como um predador, e chutou a arma para longe do meu lance.
Quando voltou, também chutou minha costela repetidas vezes, até que se tornou insuportável até mesmo respirar. Quanto mais eu me mexia para ficar de pé, mais meu corpo implorava por socorro.
Ao encará-lo outra vez, ouvi o click e a arma carregada apontava para minha testa.
Balas de sal certamente não fariam minha pele queimar, mas fariam um estrago.
— O que está esperando? Atire. — tentei desafiá-lo, mas nada parecia abalá-lo. Esperava que os meninos também pudessem me ouvir. — Ande, seu filho mãe, atire em mim!
— Por que eu faria isso?
Seu sorriso cresceu, e ele voltou a travar a arma outra vez. Franzi as sobrancelhas quando ele ficou próximo o suficiente para que eu sentisse o cheiro repugnante de álcool e perfume barato.
— Eu quero os Winchester, e você vai me ajudar.
— Como ele sabe que... — murmurei para mim mesma, finalmente sentada no chão. Não demorou três segundos para ele me chutar outra vez.
Grunhi com a dor incessante no meu corpo e ergui o queixo para ele.
— Está perdendo seu tempo, seu imbecil, eles não virão atrás de mim.
— Está certa disso?
Fechei os olhos quando ouvi ruídos próximos. Eles estavam aqui, cada vez mais perto da mira daquele monstro. Ele parecia estar contando os passos, os segundos, e apontou a arma engatilhada para a minha testa outra vez.
Sam e Dean surgiram logo em seguida, com lâminas afiadas e armas carregadas apontadas para "Charles". Suspirei, aliviada - surpresa comigo mesma por estar feliz em ver um Winchester.
— Eu disse que não te salvaria de novo! — Dean ralhou sem tirar os olhos do metamorfo.
— Quer falar sobre isso agora? Sério?! — arregalei meus olhos pra ele.
Sam aproveitou pra tentar se aproximar, e o metamorfo percebeu, porque o cano frio da arma agora tocava minha testa.
— Não, não. Não se aproxime, ou eu atiro nela.
Como se eu não pesasse como uma pena, ele agarrou meu braço e me colocou de pé. Seu escudo.
O cano da arma sempre apontada para a minha cabeça, um disparo e eu estava morta.
Prendi a respiração e tentei alcançar a faca que tinha na calça, mas meus dedos não conseguiam sequer tocá-la.
Pensei que gritar o deixaria distraído o suficiente para que eu pudesse fugir e atirar nele. Mas, a música da festa estava alta demais e ninguém iria me ouvir. Éramos apenas nós.
— Bem, eu gostaria de ver você tentar.
Meu corpo relaxou quando eu ouvi a voz do meu irmão, meu verdadeiro irmão.
— Largue ela. Agora!
Mas, ele não obedeceu. Dean tentou se aproximar, e o metamorfo afundou ainda mais a arma na minha cabeça, puxando meu cabelo e me exibindo como um escudo perfeito de carne.
"Charles" atirou na minha perna e gritei quando aquela bala me atingiu, ele ainda não tinha me largado.
— Seu filho da mãe!! — Dean gritou e atirou em seu ombro duas vezes.
A bala era de prata e fez estragos em sua pele. Queria tanto que Dean tivesse acertado seu peito. A verdadeira dúvida era se eu devia xingá-los ou esperar para ver qual era o plano.
Ser a vítima e a donzela em perigo não faz o meu estilo. Minha perna estava latejando, eu queria me sentar e não levantar mais. Meu irmão - de verdade - ainda estava atrás mim apontando a arma para sua cópia.
Os Winchester estavam diante dos meus olhos, metros de distância, e não podiam fazer nada.
— Se foram fazer algo, façam logo! — consegui gritar e a criatura puxou ainda mais o cabelo.
— Não se preocupe, querida.
O metamorfo continuava sussurrando no meu ouvido, puxando meu cabelo enquanto minha perna sangrava.
Charles deu outro passo, finalmente encostando o cano da arma no topo de sua cabeça. Esperava que isso acabasse logo, porque parecia que eu estava aqui há uma eternidade.
Aquela criatura me atirou no chão, de repente, e se virou para Charles. E atirou.
Não soube como, mas eu consegui me levantar e correr até ele. Meus dedos tremeram quando tentei pressionar seu ferimento e percebi que tinha acertado seu peito. Ainda tinha pólvora nas suas roupas.
Não pude ver o metamorfo correndo, nem Sam e nem Dean conseguiram acertá-lo. Ele tinha se escondido entre as árvores, ainda estava aqui, dava para ouvir.
Agarrei a arma do meu irmão, as mãos sujas de sangue, tinha tantas lágrimas nos meus olhos que me deixavam confusa. Sam correu até mim, precisando as mãos na ferida de Charles.
Mas, o sangue não parava de surgir e Charles não parava de se mexer, tentando ver o que tinha acontecido com ele.
Enquanto seu irmão estava de pé ao nosso lado, de prontidão, a procura de sua presa. Eu queria tanto levantar, correr atrás daquele monstro que feriu o meu irmão.
Seu corpo estava enfraquecido, os lábios estavam brancos e Charles mal se mexia. Meu mundo estava ruindo diante dos meus olhos, e não tinha nada que eu pudesse fazer para salvá-lo.
— Ora, vamos...
Aquela voz estaria para sempre gravada na minha memória, por isso quando ela surgiu atrás de Sam, eu agarrei aquela arma e a destravei.
Sam arregalou os olhos quando apontei aquela arma, e ele pareceu aliviado quando eu puxei o gatilho e ele ainda estava respirando.
O metamorfo congelou, balbuciou, olhando o próprio estômago. Mas, eu sabia que não tinha sido a única a atirar, pois quando ele caiu no chão, Dean surgiu bem atrás dele.
A dor na minha perna - apesar da bala - não ardia tanto quanto meu coração ao ver Charles em uma situação tão deplorável. Sam não parou, por um segundo sequer, de tentar ajudá-lo.
Suas mãos estavam sujas de sangue, a minha roupa estava suja de sangue. Tinha sangue por todo lado.
— Charles, seu idiota — minhas lágrimas caíram em sua pele — Não pode me deixar aqui, você também, não...
Ele se engasgou com o próprio riso, pressionando os dedos no próprio peito.
— Ali, você tem que me prometer uma coisa. — ele disse, de repente, e me obriguei a olhá-lo. — Me promete que vai ficar bem.
Balancei a cabeça para ele. Eu jamais ficaria bem depois de ver meu irmão sangrar até a morte, mas queria que ele soubesse que sim.
— Bom. Agora... — Charles fez uma careta quando Sam tentou pressionar a ferida outra vez — Me prometa que não vai tentar me trazer de volta.
Arregalei meus olhos com seu pedido. Isso eu não poderia prometer, e como se soubesse exatamente o que se passava na minha mente, ele franziu as sobrancelhas e disse:
— Os mortos devem ficar mortos, Allison.
— Não vou prometer porra nenhuma — meu tom soou tão sério quanto o dele, Charles era igual ao nosso pai —, porque você vai viver!
Charles balançou a cabeça, ele sabia que isso era mentira e por isso me ignorou.
Franzi a festa quando ele olhou pra Dean e depois para Sam.
— Hey, Winchester — ele disse — Cuidem da minha irmã... — e tossiu com os pulmões frágeis — ou eu voltarei para assombrá-los.
— Vamos cuidar dela. Eu prometo.
Dean tocou meu ombro e tentou me afastar de Charles, como se estivesse ali para me consolar de um destino prometido. Olhei para ele, e fiquei surpresa com o que vi. Ele estava lamentando.
— Não, não...
Ao olhar para meu irmão outra vez, eu sabia que ele não estava mais lá. Afastei os cabelos de seu rosto, balançando seus ombros. Eu precisava dele, precisava que ele continuasse acordado.
— Sam, vamos, ainda podemos levá-lo para o hospital!
A expresso em seu rosto terminou de me destruir, ele nem precisava dizer mas insistiu:
— Sinto muito, Ali.
Havia culpa e raiva misturados dentro de mim, transformando isso em uma bomba de mágoa prestes a explodir diante do meu nariz.
— A bala acertou o coração dele.
Suas vozes estavam longe, difíceis de ouvir. Meu corpo vacilou para trás, e Dean me segurou antes que eu caísse.
Havia alguma coisa morta dentro de mim quando vi Charles daquela forma. Tudo que pude pensar era como eu fui uma péssima irmã, como pude errar um tiro... eu era tola. Podia me lembrar de cada momento.
E tudo estava ruindo diante dos meus olhos.
Sam caiu sentado no chão, olhou para as mãos sangrentas e suspirou. Ele repudiava aquilo.
— Allison, temos que ir embora. — Dean foi o primeiro a se lembrar que estávamos perto de uma fraternidade, e alguém poderia aparecer a qualquer momento, ele tocou meus ombros, como se estivesse me chamando.
Mal podia piscar, quem dirá me mexer. Estava petrificada e meu corpo não me obedecia, sequer me lembrava que eu também sangraria até a morte se não cuidasse da minha perna ferida.
Meu coração acelerou quando Sam pegou o corpo do meu irmão e o carregou até o carro, para longe de mim. Dean perdeu a paciência, e com medo de que fôssemos descobertos, ele agarrou meus ombros e me colocou de pé.
— Allison, vamos. Temos que ir! — ele me chamou outra vez.
Suas palavras eram tão confusas, minha mente estava nublada.
— Dean, ele se foi... — franzi as sobrancelhas ao perceber o gosto estranho que aquelas palavras tinham na minha boca — E-ele morreu.
— Eu sinto muito, tá legal?!
Sabia que Dean não estava brigando comigo, mas as palavras eram ásperas. Ele me puxou para perto, e me abraçou. Sua mão empurrou minha cabeça para seu ombro, para que eu não precisasse ver Sam levando meu irmão embora. Meu irmão morto.
Começamos a caminhar até o Impala, Dean me perguntou como minha perna estava. A bala tinha atravessado, eu estava bem. Mas, ele insistiu, e fez um torniquete com a manga da minha blusa velha.
Quando dei por mim, Sam tinha voltado e me abraçou fortemente. Fraca demais para sequer entender o que significava, meus braços ficaram mortos ao lado do meu corpo.
Não sei para onde estavam me levando, e sequer lembro de ter pensado nisso.
Só havia sangue. Sangue por toda a parte.
E Charles estava morto.
Me dei conta do que estávamos prestes a fazer quando vi Sam e Dean juntando madeira, galhos e folhas secas; qualquer coisa inflamável, porque estávamos prestes a queimar o corpo do meu irmão.
Ele estava enrolando em um lençol branco, eu não podia mais vê-lo. Implorava, baixinho, para que Charles me perdoasse.
Continuei estática até o momento de Sam atirar três fósforos acesos naquela pilha de lixo, e a madeira começar a estalar quando pegou fogo e passou a devorar tudo ao seu redor.
A chama crescia e dançava diante dos meus olhos. Diante delas, me peguei pensando quem teria sido o sujeito que inventou essa tradição. Charles não merecia acabar assim, ele deveria estar ao lado do meu pai.
Acabei descobrindo que estava presenciando algo que sequer passava pela minha cabeça, e eu odiava cada segundo. Se eu tivesse insistido um pouco mais, para que Charles ficasse em casa, nada disso teria acontecido.
Dean estava de um lado e Sam do outro, em silêncio. O mais velho tocou meu ombro, numa tentativa fracassada de me consolar.
Mais da metade da madeira - e de seu corpo - tinham sido devorados pelas chamas. Suspirei, incomodada com toda essa situação, me peguei pensando no que faria sem ele.
A verdadeira boa notícia era que o desgraçado, que mandou Charles para essa pilha de madeira e folha seca, já estava morto.
Quando o fogo cessou, eu fiquei para trás. Os Winchester esperavam por mim no carro para me deixar sozinha por breves instantes.
Embora eu quisesse ir, parte de mim ainda estava presa aqui. Cruzei os braços tentando me aquecer, na medida que esfriava ao cair da noite. Mas de repente, começou a chover e nem mesmo os calafrios da minha pele fria serviam de incentivo para me fazer sair dali.
— Allison! — Sam surgiu de repente, franzindo as sobrancelhas, procurando por mim — Allison, temos que ir!
Balbuciei algumas vezes como se minha língua estivesse presa.
— Ali, eu sinto muito, mas não podemos ficar aqui. — e quando chegou perto o suficiente, Sam jogou o casaco sobre os meus ombros e os apertou — Vamos embora.
— O que eu faço agora?
Falei tão baixinho que por um momento achei que não passasse de um pensamento meu. Talvez tenha sido a maior frase que falei nas últimas horas.
— Você vem com a gente.
Nem mesmo seu sorriso e suas covinhas adoráveis podiam me fazer sorrir. Ele apertou meu ombro outra vez quando notou.
— Você vai ficar bem, Ali. — balancei a cabeça, sem ter certeza se isso era a verdade ou apenas Sam tentando me confortar.
De longe, pude ver o Impala. Os faróis estavam acesos e Dean já ocupava o banco do motorista; pronto para partir. Entrei no carro, no banco de trás, e fiquei olhando para minhas mãos manchadas de sangue. O sangue de Charles.
Estávamos na estrada há algumas horas, e tudo que eu podia pensar era no meu pai. Céus, o que ele diria?
Ao ver a placa da saída da cidade, prometi a mim mesma que jamais colocaria os pés em Seattle outra vez.
A única pausa que fizemos durante a viagem foi para abastecer. Nem Sam, nem Dean abriam a boca. Claro, o que poderia dizer? Nada poderia acalmar meus nervos.
Lembrei de olhar dentro da minha bolsa, o diário do meu pai ainda estava ali e cheirava a fuligem. Era na aba de couro que ele guardava nossas fotos, meu pai tinha o costume de dizer que assim poderia nos ver se sentisse nossa falta durante o trabalho.
Era minha foto favorita.
Meu pai sorria grandemente pra a câmera. Tínhamos caçado um ninho de vampiros; a família de Jack, na verdade. Foi o dia da iniciação do meu irmão, ele se juntou a nós e ganhou a chance de dirigir o Dodge do nosso pai pela primeira vez.
Não me restara nada, senão lembranças e pesadelos. Minha família estava destruída, e eu estava sozinha.
Desde que minha mãe nos deixou, só tínhamos um ao outro. Ela nunca foi uma de nós, nunca foi uma Hasthings. E eu a odiava por isso.
Quando Charles nasceu, ela partiu para nunca mais voltar. Não olhou pra trás, sequer ligou para perguntar como estavámos. Com o passar dos anos, passei a acreditar que também estivesse morta.
Era melhor assim.
Eles me levaram para o que chamavam de "Bunker dos Homens de Letra". Lebanon, no Kansas.
Sempre pensei que isso não passasse de um boato, e Dean animadamente disse que era sua Batcaverna; o seu lar. Bobby também foi convidado a se juntar a nós.
Rodopiei pelo lugar, olhando os lustres até as fotografias manchadas. Tinha a sensação que tinha voltado no tempo e ficado presa em 1950. Até mesmo os móveis eram velhos e rangiam quando você os tocava.
Fiquei naquela imensa biblioteca, sentada, com os braços em cima da mesa, sem me mexer pelo que pareceu uma eternidade. Isso até Sam aparecer de repente, chamando por mim.
— Bobby está aqui.
Foi tudo o que eu precisei ouvir para me levantar e ir à sua procura. Sam veio logo atrás de mim.
Suspirei quando o vi. Pelo menos, Bobby ainda estava aqui e veio da Dakota do Sul por mim.
— Allison, o que houve com você? — foi tudo o que ele perguntou. Claramente, nenhum dos Winchester contou a ele. Imaginei que apenas por ver meu estado deplorável o Singer encontraria suas respostas.
— Eu perdi.
Havia um vazio dentro do meu peito ao pronunciar tais palavras, porque parecia que tornava tudo mais real e deprimente.
— Onde está o Charles? — Bobby perguntou, a voz rouca o entregou. — O que houve nessa maldita caçada?!
— Metamorfo. — envergonhada de pronunciar tais palavras, me obriguei a abaixar a cabeça e os olhos de Bobby se arregalaram, opacos e vazios — A culpa é minha.
Percebi Bobby se aproximando, ele tocou meus ombros e os balançou e só parou quando eu o encarei outra vez. Tinha lágrimas em seus olhos, Bobby estava aos pedaços.
Como se uma bomba tivesse explodido, e só restavam os estilhaços.
— Eu sinto muito por isso, garota. — Bobby respirou curto e me abraçou, como um pai faria, eu senti falta disso.
— Deveria ter sido eu, Bobby...
— Não se atreva a dizer isso outra vez. — ele se afastou, agarrando meu braço, e franzindo a testa — Nunca mais repita isso. Você me entendeu, Allison?
— É a verdade, e você sabe disso.
— Contou a ela?
Bobby não precisava dizer com todas as letras para que eu soubesse que ele se referia a minha mãe.
— Ela não merece ter nenhuma notícia do meu irmão.
Voltei para conhecer o quarto que Sam me deixou usar. Ele era confortável, apesar de parecer pequeno à primeira vista. Tinha uma cama e um guarda-roupa pequeno e bastava.
Minha mochila ficou no chão e me atirei na cama. Enquanto olhava para o teto, me dei conta de que aquela não era Allison Hasthings que meu pai criou, eu era sua versão fraca e patética, escondida dentro de um quarto.
Passei horas trancafiada dentro daquele quarto, revirando a única coisa que restou da nossa casa em Beaufort: minha mochila.
A arma do meu irmão estava sob a cama, ao lado do diário da família. Ser um caçador era um fardo, um peso - e estranhamente -, uma honra.
Ouvi uma batida na porta, e deixei os livros para trás, mesmo que contra minha vontade.
Sam estava parado ali, tão surpreso quanto eu - imagino que ele sequer esperava que eu fosse abrir a porta.
— Oi... — ele falou, baixinho, tentando sorrir para mim.
— Oi — cocei a garganta enquanto colocava o cabelo atrás das orelhas — O que está fazendo?
— Bem, já fazem horas que você está aí dentro. Não come, não bebe... Eu fiquei preocupado com você.
— Não fique.
Forcei um sorriso com indiferença.
— Eu estou bem, só preciso de um tempo.
E como se ele soubesse que eu estava mentindo descaradamente, ainda respondeu:
— Eu sei como se sente, Ali — suspirei para ele. A dor mútua não faria eu me sentir melhor, não é uma reunião do AA. — Ficar sozinha e se trancar dentro do quarto não vai te ajudar. Você sabe que pode conversar com a gente, não sabe?
— Por que, realmente, veio aqui?
Quando desconversei, fiquei aliviada por não vê-lo insistir nisso.
— Trouxe café. — ele balançou a xícara e a deixou na mesinha perto da porta — Nada vai mudar o que aconteceu com ele, Ali.
— Eu sei disso, Sam. — um nó se formou na minha garganta, aquilo estava me matando — Só... acho que deveria ter sido eu.
Imediatamente, Sam agarrou os meus ombros e me olhou, implorando para que eu o olhasse de volta.
— Sabe tão bem quanto eu que isso não é verdade. — o Winchester insistiu — Charles está orgulhoso de você, eu garanto.
Senti uma enorme necessidade de abraçá-lo. Sam era o tipo de pessoa que nos acolhia mesmo que essa não fosse essa sua intenção. Senti que poderia contar com ele, e que ele me ensinaria a carregar aquele fardo.
Quando ele me largou, notei que sua camisa estava molhada graças às minhas lágrimas de autopiedade. Eu realmente era o retrato do próprio fracasso, e esperava superar isso um dia.
— Obrigada, Sam — forcei um sorriso a ele, que acenou com a cabeça — Mas ainda não sei, se um dia, serei capaz de esquecer o que eu vi.
— Eu sei. Na verdade, não espero que esqueça, Charles era o seu irmão.
E aquilo bastou para que fizesse sentido. Quando Sam tocou meu ombro, senti uma onda invadir meu corpo; como se ele passasse sua força para mim através de um toque.
— Somos amigos, certo? — Sam estreitou os olhos para mim — Você pode confiar em mim.
— Amigos?
Pensei em nossos nomes, nossos legados. O que diriam se ouvissem isso de um Winchester para um Hasthings.
— Nossos avós estariam se revirando nos túmulos se não tivessem sido cremados.
Sam revirou os olhos para minhas palavras.
— Ótimo argumento. Sarcasmo, sério? — encolhi os ombros ao ouvir sua bronca — Às vezes, acho que você e Dean nasceram um para o outro.
Exagerei na gargalhada quando tirei sua mão do meu ombro, dando-lhe batidinhas amigáveis.
— Tudo bem, eu entendi, mas não precisa exagerar.
— Agora, saia desse quarto — ele pediu, enquanto ria de mim — Você parece um morto, Allison.
— Ha-ha, Sam.
Ele beijou minha testa de sair. Como meu irmão fazia.
Por uma fração de segundo, achei que Charles estivesse ali comigo.
Quase três meses haviam se passado.
Bobby vinha nos visitar sempre que podia, seu tom duro e paternal me colocava de volta nos eixos.
Sam e Dean não iam muito longe, nunca deixavam o Kansas. Diziam que não havia casos chamativos o bastante para levá-los para tão longe - embora eu tenha certeza de que tudo isso era por minha causa.
A preocupação excessiva deles chegava a ser engraçada, diziam que eram apenas negócios. Quando cuidavam de mim, cuidavam de um colega de trabalho - era isso que tornava tudo mais hilário.
Quando estava sozinha no Bunker, isso me dava tempo para explorar o lugar. Tinha muitos livros velhos, peças raras e preciosas - objetos amaldiçoados e abençoados -, tinha de tudo naquele lugar.
O sol não tinha nascido quando entrei na cozinha, e Dean estava lá de costas para a bancada, segurando uma xícara de café nas mãos. Ele estava tão quieto que me assustei quando o vi.
— Céus, o que está fazendo aqui?
Ele olhou para os lados, quieto, antes de levantar a xícara.
— Tomando café? — e franziu a testa — Por que você está acordada tão cedo?
— Eu não consegui dormir.
— Bem, somos dois. Pequena.
Revirei os olhos para ele. Dean sempre tinha cantadas e apelidos idiotas na ponta da língua, disparando um atrás do outro como uma cobra destila seu veneno.
Desde que ele soube que Sam passou a me chamar de "Pequena", Dean tem feito a mesma coisa. Não era por carinho, mas sim por ser um desocupado.
— Encontrou outro caso nas redondezas? — perguntei quando o silêncio passou a ser algo desconcertante.
— O de sempre. Você sabe.
— Salgar e queimar. — ele balançou a cabeça — Bem, boa sorte para vocês. Eu vou ficar aqui, treinar a pontaria. Tenho certeza que vi algumas garrafas de vidro velhas aqui, sabe como é.
— Bem, boa sorte. Você vai precisar.
Ele piscou para mim. Revirei os olhos ao me sentar na bancada da cozinha.
O fato de Dean e eu não termos assunto era desconfortável.
— Cretino.
— Idiota. — e sorriu para mim.
— Bom dia...
A voz sonolenta de Sam nos chamou atenção. Ele entrava na cozinha com os cabelos bagunçados, olhos sensíveis à luz e inchados pelo sono.
— Bom dia, Rapunzel. — murmurei com os lábios no copo.
— Não começa, Allison.
Sam franziu as sobrancelhas, apertando os cabelos na cabeça. Ele estreitou os olhos ao perceber que eu não estava sozinha.
— Vocês dois... estão sozinhos aqui, a mais de cinco minutos, e não tentaram se matar?
— Acho que somos amigos, certo? — dei os ombros quando o mais velho me encarou — É, acho que somos. Mas, chega de conversa. Quero tomar meu café.
— Desculpe, o café é uma hora sagrada.
Dean me olhou de relance, e sorriu.
— É, está começando a me conhecer.
Seu irmão abriu a boca, entusiasmado com o caso, mas Dean fechou a cara e apontou para a xícara de café que estava segurando nas mãos.
Quando olhei para aqueles dois caçadores, lembrei que de todas as casas da Carolina do Sul, em Beaufort, eles bateram na minha porta. Agora sou obrigada a viver com dois idiotas.
Olhei para o relógio na parede e ainda marcavam quatro e vinte da manhã, minha insônia comemorava mais um dia de vitória.
Dentro de trinta minutos, os rapazes juntaram seus pertences, carregaram o carro e estavam prontos para partir. Bobby também estava fora, saiu para ajudar um caçador em um caso em Idaho. Aquela não era a primeira vez que eu ficava sozinha no Bunker.
Quando o Impala arrancou da garagem, eu fechei os portões e subi novamente para a biblioteca, lendo todos os livros que deixei separado. Quando eu não estava atirando em alguma coisa, gostava de me encantar pelo folclore e pelas lendas.
Tinha cinco ou seis livros ao meu lado, a xícara de café nunca estava vazia e minha arma prontamente carregada. Cruzei as pernas em cima da cadeira enquanto folheava as páginas.
O livro, dentre todos aqueles das estantes, falava sobre cada criatura já registrada por caçadores. Dos gigantes até pequenas fadinhas - o que ficava a desejar. O nicho sobrenatural era tão extenso que qualquer caçador perito era leigo comparado aquelas escrituras.
Ao terminá-lo também, alisei a capa dura de couro. Bebi um pouco mais de café antes de partir para o próximo. Poderia passar a vida naquele lugar, e mesmo assim, sinto que nunca aprenderia o suficiente.
Olhei para o relógio dez horas depois, e minha quarta xícara de café tinha acabado e me levantei para buscar mais. Na beira do corredor foi onde ouvi a porta do Bunker bater. Tirei a arma do cós da calça e engatilhei, apontando para o sujeito no topo da escada.
Sam estava ali, e estava desesperado.
— Allison! — ele gritou — Allison, ajuda!
— Sam, o que houve?
Abaixei a arma e subi as escadas para encontrá-lo, ele saiu e voltou carregando o irmão, sangrando e machucado.
Meus olhos se arregalaram, eu larguei a arma para ajudá-lo a caminhar. Toquei seu rosto, queria saber se ele estava consciente. Dean estava horrível.
— Dean! O que houve, o que houve com ele?!
— Nós tivemos um problema...
O mais velho engoliu seco, a mão ensanguentado pressionando o próprio quadril.
— Por que não o levou para um hospital?!
Sam e eu nos orientamos até conseguirmos deitá-lo no sofá mais próximo.
— Dane-se o hospital! — ele grunhiu e tirou a mão, me deixando ver a ferida terrível que ele guardava — Tirem isso de mim, porra!
— Pode fazer alguma coisa, Ali?
Sam ignorou os gritos do irmão, que choramingava e se contorcia de dor. Minha garganta secou, parecia que tudo estava se repetindo.
— Sou uma caçadora, não uma enfermeira. — minha respiração ficou curta, e me obriguei a pensar — Droga, olha para isso... Sam, pega os primeiros socorros!
Ele se levantou na mesma hora. Tirei a jaqueta de Dean e o ajudei a tirar a camiseta manchada de vermelho. Foi quando pude ver o que realmente aconteceu, não era uma bala alojada nem uma facada mortal; ele tinha sido espetado com um galho afiado de árvore. O sangue começou a coagular em volta, vazando e pintando seu abdômen.
A primeira coisa que pensei era que aquilo ficaria uma cicatriz, uma que nunca esqueceria. Depois, percebi que seria trabalhoso dar pontos, e então lembrei que se perdesse mais sangue ele morreria.
— Aqui. — Sam quase atirou o kit no meu colo, e meus dedos tremeram quando peguei a primeira gase.
— Me conte o que aconteceu, Dean.
Pedi, na tentativa de distraí-lo. Ajudaria a diminuir a dor já que nada que tínhamos aqui poderia fazer isso por ele, só uma garrafa que uísque que estava a sua espera.
— Fomos atrás — ele pigarreou, irritado — daquele filho da mãe na floresta. Ele nos empurrou em um barrando na estrada, parecia mais um cemitério... — seus olhos lacrimejaram quando me encarou — Quando eu caí... foi encima de uma droga de graveto! É importante saber disso agora?!
— Pode me agradecer depois por ser sido tão gentil com você — forcei um sorriso para ele, e encarei seu irmão — Quando eu tirar a gase, você joga uísque.
— Certo.
— É, ótimo. Vamos lá.
Dean vacilou deitado naquele sofá, pálido como um morto, e assustado como uma criança.
— Pronto? — perguntei a ele, e antes mesmo que pudesse me responder, tirei as mãos de sua ferida e Sam virou aquela garrafa de uísque na ferida aberta.
O mais velho dos Winchester gritou e choramingou, arqueando as costas quando sentia o álcool queimar sua pele, como se fosse óleo quente.
Quando Sam o segurou pelos ombros, pude tirar o excesso para começar a tirar as farpas.
Dean começou a rir, de nervoso. Franzi minhas sobrancelhas para ele e pude tirar as gases quando parou de sangrar. Ele grunhiu e reclamou, mas eu não poderia mais esperar.
Dava para ver como Sam estava assustado, a beira de um colapso. Seu irmão podia estar morto. Quando me toquei desse fato, tomei a decisão de que nunca deixaria isso acontecer.
Caímos sentados no chão, esgotados.
— Você deve ter adorado me ver nesse estado — Dean balançou a cabeça, arregalando os olhos e rindo. Ele estava completamente louco. — Admita, garota.
— Se eu quisesse vê-lo morto, teria atirado em você quando entrou no meu bar — Dean engoliu seco quando me olhou, enquanto meu coração parecia ter parado por alguns instantes, eu precisava terminar o que comecei — Não se mexa tanto. Você pode tirar as mulheres para dançar depois, garanhão.
— Desde quando sabe fazer pontos?
— Desde os treze anos.
Sorri para ele, era algo que eu podia me orgulhar. Dean grunhiu outra vez quando toquei seu curativo.
— Desculpe — estreitei os olhos para ele —, mas eu preciso ver.
— Não estou com medo de levar pontos, tenho medo das suas mãos nada gentis.
O Winchester arqueou as sobrancelhas para mim, e eu arqueei as minhas para ele.
— Sam, tira o curativo dele, porque se eu tirar-
Ele tocou meus ombros no mesmo instante e assumiu meu lugar ao lado de Dean.
— Subestimei vocês, vocês não podem ficar juntos por muito tempo. — o caçula fez uma careta, nada satisfeito.
— Ah, mas a Allison vai ser carinhosa comigo, não é, querida? — Dean me deu uma piscadela quando cruzei os braços.
Sam já tinha tirado as gases e ficou a fita ali para arrancar. Eu me aproximei.
— Vou, sim — meu sorriso cresceu no canto dos lábios — Está pronto, querido?
Ele acenou com a cabeça, e puxei o que sobrou na sua ferida. Dean gritou enquanto mordia o próprio punho.
— Acho que é agora que você me agradece, Dean.
— Mas que filho da mãe!! — Sam riu baixo do irmão, que franziu as sobrancelhas para ele — Você acha isso engraçado?
— Eu acho hilário.
— Vadia!
— Imbecil. — Sam retrucou.
Levou uma eternidade até eu conseguir tirar cada farpa e limpá-lo, antes de dar pontos.
Depois de um banho de uísque barato, Dean ficou descansando em seu quarto. Olhei para ele uma última vez antes de fechar a porta, e o Winchester caiu no sono.
Quando voltei para a sala, Sam estava limpando o sangue e toda a bagunça que deixamos para trás. Havia gases sujas, embalagens vazias e uma garrafa vazia de uísque em seus pés.
Me aproximei para ajudá-lo, começando a passar panos úmidos no chão. Podia ver seus dedos tremendo e o medo acenando através de seus olhos, ele ficou com medo de perdê-lo.
Pelo menos, eu pude salvá-lo.
— Ali, você está bem? — o olhei, surpresa — Você parece... frustrada.
— Não, não... eu estou bem. Não se preocupe.
— Não parece.
Ele se sentou no chão em um canto da sala, e me sentei do outro lado.
— Me conte o que aconteceu. — ele pediu.
Forcei um sorriso enquanto encarava minhas próprias mãos. As manchas de sangue ainda estavam lá.
— Um pouco de tudo — olhei ao nosso redor, lembrando-me que eu estava segura no Bunker — Depois da morte do Charles... tudo desmoronou. Eu perdi minha casa, o meu irmão e acabei de perceber que o meu carro pode estar apodrecendo em um pátio em Seattle. — Sam sorriu para mim, por causa do carro — E agora eu moro com os melhores caçadores da América. Minha vida se transformou em uma montanha-russa de emoções.
— Ali, o seu irmão está em paz agora.
Balancei a cabeça. Eu sabia disso, mas não gostava de falar a respeito - ou sequer pensar nele.
— Quanto ao seu carro, nós podemos buscá-lo. — Sam disse outra vez — Basta dizer quando, e nós vamos com você.
— Eu sei. Obrigada, Sammy. — à distância, eu sorri para ele — Mas, não me trate como uma criança, eu ainda sou mais velha do que você.
— Então, não aja como uma.
Atirei uma das embalagens em sua testa, e o Winchester riu.
— Por falar nisso, tem certeza de que você não é o irmão mais velho? — ele balançou a cabeça ao rir — O que? É uma dúvida genuína!
Dean sempre parecia arrastá-lo para alguma encrenca, era divertido na maioria das vezes.
Mas, não hoje.
Decidi voltar para a biblioteca e continuar lendo os livros que tinha separado antes dos meninos chegarem. Sam estava lá dessa vez para me fazer companhia, apesar das mãos paralisadas em cima do notebook, eu sabia que ele ansiava por outro caso.
Esse lugar era o nosso pequeno refúgio. O Bunker inteirinho nos abrigava e nos presenteava com suas relíquias. Dentro deste lugar, encontrei e descobri coisas que jamais veria lá fora.
Cada informação nova a respeito de criaturas, monstros e lendas, eu anotava no diário da minha família, continuando a história de onde parou.
— Olhe isso — Sam disse de repente, me obrigando a largar a caneta — "Dois jovens foram mortos na última segunda-feira, 15. De acordo com as testemunhas, o casal entrou na floresta, e dias depois seus corpos foram encontrados. A polícia informou que foram registrados inúmeros ataques de urso naquela região nos últimos meses.".
Apesar do caso macabro, Sam abriu um sorrisinho.
— O que me diz? — e minha garganta secou.
— Eu... eu ainda não quero caçar, Sam. — suspirei ao ouvir minha própria resposta. — Você e Dean podem ir sozinhos, não precisam de mim.
— Ali, já fazem meses. Você precisa sair de casa.
Sua bronca se transformou em uma súplica, que quando me olhou, pensei ter cometido um crime terrível.
— Não, não me olhe com essa cara! — me levantei, e me afastei, querendo-o longe de mim como se estivesse contaminado com gripe — Dessa vez, não.
— Por favor, vem com a gente. — e Sam pediu outra vez, tentando me seguir — Pelo menos, pense a respeito.
— Não, eu não vou.
Circulei à mesa, agora Sam estava em uma ponta e eu em outra. Ele se inclinou.
— Ali, por favor.
Franzi as sobrancelhas. Era muito difícil olhar para ele e não querer apertar suas bochechas. Sam era um rapaz bonito, muito bonito - mas nem por isso deixava de me dar vontade de socar o seu nariz quando ele fazia essa carinha de cachorro abandonado.
Suspirei, não por ter aceitado sua proposta idiota, mas por me colocar nessa situação outra vez.
— Onde? — eu perguntei, e seus olhos brilharam — Não estou dizendo que vou, Sam.
— Portland, Oregon.
Esmaguei meu rosto entre as mãos, murmurando o quanto eu odiava aquela ideia - e o quanto eu me odiava por ter aceitado. Grunhi contra minhas próprias mãos e puxei os cabelos para trás, prestes a arrancá-los.
— Você sabe, podemos pegar o seu carro... — quando o Winchester cantarolou, eu tive certeza de que socaria o seu nariz.
— Tudo bem, eu vou.
— Mesmo? — ele estreitou os olhos, e sorriu quando eu fiz que sim com a cabeça — Bom. Isso é bom. Quando partimos?
— Amanhã?
— Vou avisar o Dean.
Tenho quase certeza de que ele não quis me pressionar ainda mais para sairmos, para que eu não desistisse. Embora eu estivesse tentada a fazer isso, falei que iria e agora eu tenho a obrigação de ir.
Pareciam crianças quando estavam animados com alguma coisa, a energia deles era contagiante.
Naquela noite, parti para uma sexta xícara de café. Cruzei os corredores para ir até meu quarto, o ruído atrás da porta me chamou atenção. Era o quarto de Dean.
— Ela topou em ir com a gente. — Sam pareceu animado, e eu sabia que era sobre mim — Acho que ela está superando... o que aconteceu.
— Bom para ela.
Dean grunhiu. Espiei pela fresta da porta e o vi tentando se levantar da cama para olhar o irmão.
— Para onde vamos?
— Portland. — o caçula sorriu — Allison disse que você estará melhor amanhã.
Dean fez uma careta.
— Eu espero que sim. Vocês não vão me deixar em paz, não é?
Quando seu irmão riu, ele resmungou outra vez.
— É, eu imaginei.
Bati na porta suavemente, e entrei sem esperar pela resposta deles. Eles olharam para mim e imediatamente olhei para o ferimento do mais velho.
Um sorriso apareceu nos meus lábios quando notei que ele estava se recuperando bem, e rápido. Sam acenou para eu me aproximar, e o fiz.
— Sam já te contou as novidades. — não era uma pergunta, mesmo assim ele assentiu. Forcei um sorriso e deixei uma garrafa de cerveja na sua escrivaninha, a outra entreguei a Sam — Tem certeza de que pode dirigir?
— É claro que sim — ele afundou a cabeça no seu travesseiro para me olhar —, parem de me tratar como uma criança.
— Ah, de nada por salvar a sua vida. — Sam retrucou quando mostrou as chaves do carro — Eu dirijo.
— Teorias?
Balancei a cabeça, olhei para Sam mas ele me deixou falar:
— Wendigo — Dean suspirou com os olhos fechados — De acordo com os relatos, foi um ataque de urso, mas as fotos não são muito convincentes.
Sam olhou para o relógio no pulso e me entregou o kit de primeiro socorros; significava que estava na hora de trocar os curativos do seu irmão. Nós sentamos na cama, um de cada lado.
Ao tirar a primeira fase, notei que um ponto tinha estourado e aquilo causou outro sangramento. Sam contou ao irmão detalhes que nem mesmo eu estava ciente, enquanto me passava tudo o que eu precisava para ajudá-lo.
Depois de refazer seus pontos, limpei as manchas vermelhas com algodão. Lavei as mãos quando terminei, e os deixei sozinhos para conversarem.
Depois de fazer as malas - com os poucos pertences que eu ainda tinha -, eu adormeci, ansiosa para cair na estrada outra vez.