Biattra não podia acreditar no que estava acontecendo.
Como que a situação fugira do controle tão rapidamente? Lothar passara dias treinando para aquilo. Não podia acabar daquela forma. Não podia.
A força dos braços de Solar ainda seguravam seu corpo, que tentava correr na direção da nuvem negra que a tudo consumia. O amigo gritava em seu ouvido que deveriam ir embora, que Lothar se fora, que nada podia ser feito para salvá-lo agora.
Ela se negava a acreditar. Talvez, pensou, o companheiro não percebesse o que estava acontecendo. Seus disparos, afinal, eram direcionados aos elfos. Mas a tempestade se expandia aos poucos, devorando até mesmo bruxas e árvores. Os ataques conscientes de Lothar eram contra os elfos, mas a magia que o alimentava não fazia distinção entre amigo e inimigo.
— Alguém tem que fazê-lo ver o que está fazendo. — Gritou no ouvido de Solar. — Ele não está no controle.
Mas Solar era muito mais forte. E o amigo não parecia interessado em lutar por Lothar. Talvez por medo, talvez por não acreditar nas palavras de Biattra, mas o loiro era irredutível. Aos poucos, ele começou a arrastá-la na direção do núcleo da Floresta, para longe do campo de batalha.
— Vamos deixar isso para os magos, Biattra. — Ele falou quando já estavam em segurança. — Sem magia, não há nada que possamos fazer.
— Eles vão matá-lo! — Ela gritou, incrédula. — Você realmente acha que alguém irá poupar sua vida depois disso?
— Não há nada que você possa fazer. — Resoluto, ele começou a arrastá-la para longe, em busca de algum lugar seguro.
Sem conseguir se desvencilhar do abraço de Solar, ela apenas deixou que ele a levasse para longe, para algum lugar dentre as árvores onde outros de sua companhia tentavam reagrupar.
Tão poucos pareciam ter sobrevivido, pensou ela. Num momento de claridade em sua mente, pôde ver que apenas uns duzentos se reuniam naquela tentativa patética de reconstituir a linha de defesa. Ela rezava para que houvessem mais vivos, que eles simplesmente fossem incapazes de chegar até Miger.
O novo Chefe gritava ordens para todos que ainda tinham condições de lutar. Sua voz, rouca e cansada, mal se fazia ouvir em meio a todos os sons estrondosos que sacudiam a floresta. Os sons de explosões vinham de onde os magos tentavam derrotar a magia de Lothar, gritos de dor e terror eram tão comuns quanto as árvores ao redor. Também, por baixo destes, podia-se escutar o som de armaduras e pássaros que fugiam da desolação, além das chamas que crepitavam enquanto devoravam árvores na fronteira da Floresta.
Biattra não se sentia em condições de lutar. Estava cansada e devastada, sentia que mais uma escaramuça a faria se render à morte e simplesmente deixar que os elfos lhe cortassem a cabeça, como tinham feito com muitos de seus amigos. Ainda assim, ela se postou ao lado de Solar naquele arremedo de formação e aguardou por ordens, a mente perdida em suas especulações a respeito do que estaria acontecendo com Lothar.
— Homens e mulheres do Distante Norte, neste momento de descrença e desesperança, eu peço que se lembrem do motivo de estarmos aqui. — Miger começou um discurso, gastando o pouco que restava de sua voz enquanto caminhava em frente aos frangalhos de seu exército. — Além dessas colinas nas quais lutamos, milhares de nossos irmãos são escravizados...
Ele falava, mas Biattra não prestava atenção. As palavras, ela imaginava, soavam vazias até mesmo aos mais otimistas. E ela não se sentia nada otimista.
Foi somente quando Miger passou à sua frente, quando ela viu as gemas que ele carregava em seu cinto, que uma ideia começou a surgir em sua mente.
— Solar. — Ela chamou, após reunir forças para falar. O amigo olhou para o lado, para a fonte do chamado. — A magia negra se comporta da mesma forma que a magia normal, não?
— Pelo que eu sei, sim. — Ele deu de ombros. — Mas não sou especialista.
— Seria seguro presumir que nossas gemas também são imunes a ela? — Biattra precisava daquele resquício de esperança. Ao menos algo tinha que dar certo naquela jornada.
— Como eu disse, não sou especialista. Talvez um sacerdote soubesse te responder. — Ele pareceu pensar um pouco. — Pensando bem, acho que só a Dama do lago.
Biattra suspirou. Definitivamente não tinha tempo de se consultar com sacerdotes.
— Acho que só existe um jeito de descobrir, então. — Disse, mais para si mesma do que para Solar. — Preciso das suas gemas.
— O quê? — Ele a encarava, confuso. Demorou alguns segundos para entender. — Não. Não vou deixar que você faça isso.
— Consegue pensar num plano melhor? — Rapidamente, ela estendeu a mão e conseguiu pegar uma das gemas que estava presa no peitoral do amigo. — Quanto mais demorarmos, mais aquela tempestade vai crescer. — Ela prendeu a pedra ao próprio peito. — E você sabe que eu vou conseguir as gemas de uma forma ou outra.
Solar revirou os olhos, então suspirou e entregou as gemas à amiga. Sabia que ela não desistiria daquela ideia, então era melhor acabar com aquilo logo de uma vez.
— Tente não morrer. — Solar pediu, como se aquilo ajudasse em algo.
— Reze por mim. — Biattra retribuiu o pedido, dando uma piscadela para o amigo e, então, dando um passo para trás e sumindo na mata.
Ela podia apenas torcer para que ter em si o dobro de gemas que normalmente usaria numa batalha fosse suficiente para protegê-la da magia.
***
À beira da Floresta, a tempestade já consumia as árvores da fronteira sem sequer hesitar. Aquela coisa crescia vagarosamente, mas crescia. Biattra não conseguia imaginar como que Lothar podia deixar aquilo acontecer, mas tinha que fazê-lo ver. Tinha que trazê-lo de volta ao próprio senso.
Sentindo medo verdadeiro pela primeira vez desde o dia em que ela e o exército humano tinha partido de sua casa rumo a semanas em mar aberto sem certeza de para onde estavam indo, ela deu o primeiro passo tempestade adentro, sendo atingida imediatamente por um vento maligno que quase a carregou pelo ar.
O fogo a açoitava, mas as gemas pareciam repelir aqueles ataques. Biattra deixou um pouco de otimismo surgir em seu peito quando viu que ainda estava viva.
Mais alguns passos e a tempestade pareceu perceber que ela estava ali, tentando se aproximar do centro. Um raio de pura energia veio em sua direção, atingindo-a em cheio e fazendo com que recuasse alguns passos. Um som de algo se quebrando chamou sua atenção em meio ao caos e, com um olhar rápido para o próprio peito, Biattra percebeu que uma das gemas tinha se partido.
Outra onda de energia veio em sua direção após alguns segundos e desta vez ela sentiu o calor irradiar por seu corpo. As pedras estavam ficando mais fracas. Talvez não fossem tão imunes à magia negra quanto ela originalmente pensara. Ou, talvez, a magia tradicional também pudesse causar aquele tipo de dano quando em quantidades absurdamente grandes.
Qualquer que fosse a resposta, agora era tarde demais para voltar. Ela tinha que chegar ao centro, tinha que chegar até Lothar. Mais alguns passos forma dados antes que mais uma onda de energia a atingisse. Desta vez, o calor começava a incomodar. Talvez a próxima já fosse suficiente para causar queimaduras em seu corpo, pensou ela.
Pelo flanco, uma rajada de vento mais forte do que o normal a atingiu, fazendo com que caísse no chão de joelhos. A dor que se irradiou imediatamente a fez pensar num osso quebrado. Meio que se arrastando, no entanto, ela continuou em frente. Não desistiria assim tão fácil.
Mas não era fácil. Suas energias estavam acabando. Talvez fosse a própria tempestade sugando suas forças, talvez fossem as pedras, tudo que Biattra sabia era que seus músculos já não se moviam com a mesma velocidade e o próximo ataque a jogou vários metros para trás, fazendo com que mais uma onda de dor tomasse conta de seu corpo.
O fogo agora queimava e, ainda que ela pudesse ver uma indistinta silhueta à frente — que ela imaginou ser Lothar —, aquilo parecia distante demais para que conseguisse alcançar.
"Só mais um pouco" ela disse a si mesma, arrastando seu corpo pela tempestade. "Só mais..." sua consciência começava a se esvair. "Talvez devesse aceitar a morte, talvez não haja forma melhor de ir embora para mim".
Quando sua mente parecia já vagar por um mundo próprio, deixando seu corpo para trás e entrando no reino dos sonhos, uma mão surgiu do fogo escuro e agarrou seus ombros, erguendo-a do chão.
— Lothar? — Biattra perguntou, inutilmente. Naquele barulho, ninguém poderia ouví-la.
Não, pensou ela. A pessoa que a carregava era grande demais para ser seu companheiro. "Solar, talvez", foi a única conclusão a que ela conseguiu chegar antes de desmaiar nos braços do homem.