Tesouro do Mar

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As ondas iam e voltavam em um ritmo harmônico e quase musical naquele fim de tarde em Recife. A água salgada umedecia a areia de Boa Viagem, levando e trazendo os grãos minúsculos, desenterrando conchas vazias e outros tesouros do mar — apagando, absorvendo e entregando as frases que a garota escrevia no solo com seu dedo indicador, mensagens para um amigo das profundezas.

A primeira vez em que os dois se encontraram, no Reveillon de dois mil e quinze, a Diana Fonseca de quinze anos havia decidido se afastar da grande aglomeração de pessoas que comemoravam o Ano Novo ao som de sabe-se lá quais grupos musicais foram contratados para animar o feriado na época.

Dii, como Kairos a apelidara, sempre preferiu "comemorar" essas coisas no conforto de casa, na frente do computador, assistindo a um bom filme ou jogando uma partidinha de League of Legends. E ganhando, de preferência; ela não conquistara "maestria" máxima com seus personagens favoritos (Jinx, Nami, Azir, Darius, Fizz e Quinn) à toa.

Em dezembro de dois mil e quinze, a garota estava passando as férias de fim de ano com uma das duas irmãs de seu pai: Roberta, uma mulher meio doida que tinha um apartamento bem perto da praia.

Roberta era professora de História e Filosofia em duas das escolas particulares do bairro em que morava. Tinha o sonho de ser arqueóloga, mas não pôde realizá-lo por causa da falta de mercado e de condições financeiras para tentar se formar em outro país. Ela também era uma amante de tudo o que envolvia o sobrenatural, desde as lendas urbanas do Recife, até os contos das mitologias indígena e estrangeiras.

Obviamente, ela enchia as cabeças dos sobrinhos Diana e Daniel — irmão mais novo da garota — com as histórias fantásticas que tanto a fascinavam, tentando alimentar a curiosidade de descobrissem mais sozinhos e estimular o imaginário dos dois.

Daniel era o caçula e sempre foi aquele que facilmente acreditava em cada palavra da tia. Já Diana simplesmente se divertia, mas não dava muita atenção para tanta coisa bizarra, como, por exemplo, uma mulher de vestido azul que, supostamente, seria a rainha do mar e teria um monte de filhos meio-peixes. Ou, pelo menos, era isso o que o nome dela significava: Iemanjá. Sim, ela mesma. O orixá feminino das religiões Candomblé e Umbanda. A Mãe-D'Água, Dandalunda, Inaé, Ísis, Janaína, Marabô, Mucunã, Princesa de Aiocá etc. Diana só conseguia se lembrar de tudo isso porque Kairos tinha a importunado com todos os nomes que as pessoas terrestres associavam à sua mãe, e ele fazia isso com o único intuito de confundir a cabeça da garota. Coincidência ou não, foi naquela sua escapada em dois mil e quinze em que Diana descobriu que, para todo mito, sempre há um fundo de verdade. E, por consequência, além da dor de cabeça que lhe acometeu depois do sermão que ouviu da família por ter desaparecido no meio da multidão (também por causa do choque de encontrar o garoto mais esquisito que já havia visto em toda a sua vida até aquele momento), ela conheceu o seu melhor amigo; o único cuja amizade perdurava intacta, independe da distância que os separava na maioria das vezes.

Kairos — que Diana apelidou de "sargaço podre" — era um dos muitos filhos da tal Iemanjá: um rapaz de pele bronzeada e olhos dourados que tinha uma longa cauda de peixe no lugar das pernas, toda coberta por escamas branco-azuladas. Entre cada dedo das mãos, membranas natatórias, e ao invés de cabelos, muitas barbatanas.

Os dois se encontraram por acidente. Quando Diana foi se isolar na beira do mar, bem longe da barulheira e do calor humano, Kairos subiu para assistir ao espetáculo dos fogos de artifício, o que resultou em dois jovenzinhos gritando de medo assim que seus olhares se cruzaram a meia-noite.

Porém, não se deixaram levar pelo medo por muito tempo — aproximaram-se devagarzinho e, pouco a pouco, foram conversando até onde deu. Tanto os parentes dela, quanto os dele, atrapalharam o momento em que terra e mar convergiam.

Tesouro do MarWhere stories live. Discover now