[🌻] • 02 - Mancha de Tinta Amarela.

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Eu adorava ficar sozinho. Para mim, era a melhor coisa do mundo, depois da invenção dos celulares e fones, que era outra forma de ficar recluso. Em todo caso, meu comportamento misantropo era extremamente desagradável, e sempre tive ciência de que assim eu seria para sempre um solitário numa multidão. Certo, mas quem disse que me importo?

Era a família da parte do meu pai visitando a casa onde eu morava com minha mãe, e minha tia por parte de pai. Citei este homem várias vezes, mas ele mesmo não existe mais, morreu próximo da data do meu aniversário de nove anos, mas nem sequer era um pai agradável, sempre ausente em todos os quesitos, nunca senti falta de acolhimento paternal, e não seria hipócrita de chorar em seu túmulo. Joguem areia logo, pelo amor de Deus.

ㅡ Onde vai? ㅡ Minha tia perguntou ao me ver apanhando meu casaco.

ㅡ Não estou a fim de ficar aqui tia Yeji, ouvir toda a merda que eles fofocam ㅡ Passei meus braços pelo tecido gelado pela falta de temperatura humana ajudando a manter e agravar o calor ㅡ Quem se importa se eles acham que fulana não cuida bem do marido?

ㅡ Está chovendo, por favor Yoongi ㅡ Tentou se aproximar vestida em seu avental gasto azul, que a protegia das manchas de molho da comida que preparava para os parasitas.

Não respondi ao seu chamado, a sai sem um rumo concreto pela rua de pingos gelados vindos do céu. Uma cúpula cobria o céu em tons azuis quase preto, num cenário perfeito para um admirador de fotografias ou até mesmo filmes de terror, depende do seu ponto de vista sobre as coisas. Meus passos se tornavam lentos pelas calçadas com lixeiras transbordando com a água que ocupava seu interior, fazendo-as parecer um vulcão em erupção, com este fato pode-se tirar a conclusão de um bairro extremamente simples.

Mesmo que tivesse uma escola de dança pública, alguns mercados e até mesmo um cinema extremamente pequeno abrigando uma seção somente, crianças brincando de amarelinha pela tarde sem muitos gritos, era um lugar consideravelmente agradável e simples, mas eu garanto que se você tiver dinheiro iria gostar de morar em algum lugar que não tenha tantos homens jovens trabalhando de forma ilegal. E quando digo tantos, é tantos, é assim que mantenho minha mãe e minha tia bem.

Prossegui meu caminho percebendo a chuva tomar proporções maiores, e o primeiro pensamento que me ocorreu foi me abrigar em algum lugar vinte e quatro horas, e ficar por lá escutando música até me sentir confortável para voltar para casa. Eu podia muito bem ficar trancado no meu quarto e mandar qualquer um que viesse me encher o saco à merda, mas isso iria piorar a moral das duas mulheres da minha vida. Um homem não pode mais ficar em seu próprio quarto escutando música, precisa sair pra isso, ótimo.

Pensei em passar numa das mercearias, mas só de pensar em ver a cara do chinês rabugento que havia por lá, me causou azia. Não sou a pessoa mais sociável do mundo, mas nem se compara com o Jack. Vou para algum de meus lugares perfeitos, a lavanderia retrô. Estranhamente, mesmo em pleno século XXI, as pessoas gostam disso.

Atravessando a rua instantes depois de ter um rumo, consegui ter certeza de que todo mundo tinha medo da dona da lavanderia, pois mesmo correndo risco de vandalismo, nunca apareceu um botão fora do lugar, trazendo paz para o lugar e deixando seu letreiro ligado por toda a noite. Suspeito que seja ponto de encontro de alguma sociedade secreta, mas como várias vezes, delíro muito.

As máquinas quadradas de inox gigantes, empilhadas uma acima da outra estavam todas vagas, entregando total vazio no estabelecimento. Ótimo. E desta vez sem ironia. As luzes eram de azul escuro e um rosa estranho, que trazia uma leve imagem de boate. Cabides presos em carrinhos de apoio a roupas, o chão de lajotas metade branco e preto deixava o ambiente mais aconchegante. As secadoras a base de moedas, assim como todas as outras máquinas, incluindo duas de café passado ficavam perto da saída dos fundos que ligava a rua do comércio.

Entrei sentindo um pouco de calor, me aproximei dos bancos que haviam a passos de frente as máquinas e me sentei para me aquietar. Sentindo o tecido da roupa molhada grudar em meu corpo, inclusive a calça que grudava igual carrapato em mim, tentei ignorar essa sensação extremamente desconfortável e peguei meu celular. Em minha playlist haviam diversas músicas, poderia-se considerar uma variedade de países e ritmos, num momento pode estar tocando Gavin James e no outro AC/DC.

Inquieto e agoniado, me levantei do acento deixando meu celular sobre a superfície junto com meu casaco. As roupas estavam me incomodando muito, e foi somente uma das secadoras aparecer no canto de olho, que não pensei duas vezes em caminhar até ela, arrancando minha camiseta branca. Eu não me importava caso alguém chegasse, porque eu duvidava muito que isso acontecesse, mas mesmo assim só vai olhar quem tiver interesse. Ah, olha lá um peladão.

Com dificuldade tirei meus tênis e aliviado joguei a calça também na secadora junto com as demais peças exceto minha íntima preta, tirando minha carteira dos bolsos, fechei a porta da máquina e deixei moedas em seu contador. Desde sempre tive agonia a tudo que gruda em mim, que fica preso em mim dessa maneira. Fora dos fones, uma das melodias calmas de Cage The Elephant deixava o auto-falante do celular, enquanto me encaminhava para perto dos apoios de roupas para ir aos achados e perdidos atrás de alguma roupa, mesmo que eu estivesse bem desta maneira. Frustrado, não havia nada.

Minha visão se fechou, e senti todos os pelos do meu corpo se arrepiarem quando uma tontura fez meu corpo cambalear para frente. Como uma mancha de tinta, os tons voltaram para minha visão, me senti dentro de um girassol, mesmo que isso não fizesse muito sentido. Contornos diferentes apareceram em meu campo de visão, me deixando confuso. Não era a parte interna da lavanderia, se parecia com um corredor, que dava acesso a uma porta fechada bem familiar.

Havia alguém encolhido, mas eu não via seu rosto, porque eu estava usando-o. Seu choro era muito presente, como se estivesse ao meu lado naquele exato instante, e considerei ser um homem pelos soluços ásperos e roucos, olhando para baixo, percebi que suas mãos estavam com manchas marrons, senti sua angústia e o som de uma porta ao longe bater com força, e aquilo me fez acordar.

Pisquei várias vezes assustado, me perguntando o que diabos estava acontecendo comigo novamente. Na minha infância isso se repetiu duas vezes, até pensei ter criado esse delírio, mas voltar agora? Será algo com choque térmico de quente e frio? Nem ao menos faz sentido!

Ao ter minha visão de volta ao normal, percebi que ao fundo havia a porta da saída dos fundos, e o pensamento louco de tudo ser real me ocorreu. Descrente, comecei a caminhar até a porta, nem ao menos me ligando no fato do meu visual. Não confiando exatamente nos meus instintos que me mandavam pra lá, abri a porta sentindo um choque por meu corpo.

Havia a silhueta de um rapaz encolhido nas sombras de uma das paredes. Deve ser algum drogado, só pode. Tentei recuar e voltar para a lavanderia, mas mesmo sentindo a friagem por todo meu corpo, tornei a me aproximar daquela figura de forma sigilosa. Isso se não fosse a porta dos fundos sendo empurrada com agressividade pelo vento, tremendo no batente.

O som provocou um susto em mim, e percebi que também no rapaz que deu um salto se pondo de pé, e desta vez deixando seu rosto à minha deriva. Percebi naquele instante que mesmo sem saber, ele havia me chamado, porque ver o seu rosto, provocou uma sensação de calor em meus pulmões.

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Cage The Elephant é uma banda ótima, assim como o YouTube me recomendou, recomendo também ~♡

Sunflower Eyesீ͜ৡৢ͜͡​🌻 YoonseokWhere stories live. Discover now