UM

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– Eu nem acredito que consegui te enfiar dentro de uma saia! – Emma dava pulinhos de felicidade dentro do carro, colocando o cinto de segurança para que o painel parasse de apitar. – Aliás, eu nem acredito que você tem essas pernas bonitas! Tanto tempo morando juntas e eu nunca nem te vi pelada... que tipo de amizade é essa?

– Uma amizade heterossexual? – eu perguntei, fechando a porta do carro e ajustando o banco.

– Por um instante eu pensei que você tiraria a calça e uma aranha sairia correndo do meio dos seus pelos.

– Fico feliz em saber que eu passo esse tipo de impressão para as pessoas – eu comentei com ironia, também afivelando o cinto. – Pernas peludas e viveiro de aranhas. Minha mãe ficaria tão orgulhosa!

– Você vai adorar o Rodrigo – Emma mudou de assunto subitamente, colocando o câmbio na ré e saindo da vaga apertada em que estava estacionada. – Ele tem ombros largos e cheira a primavera.

– Emma, como eu sei que você não tem limites, eu vou precisar impor alguns – a minha melhor amiga colocou o câmbio no automático e saiu da vaga sem maiores dificuldades. – Primeiro: eu não vou cheirar o seu novo namorado. Segundo: eu não vou tomar nada daqueles funis nojentos. Terceiro: se você me apresentar a qualquer homem, eu repito, qualquer homem, a nossa amizade acaba essa noite.

Emma pareceu murchar um pouco no banco do motorista, mas não tirou o sorriso animado do rosto.

– Ai, Hannah... você vai passar pela vida sem ter vivido nada...

– Eu prefiro não viver nada em segurança, sentada na frente do meu computador e sem marcas de abuso pelo corpo, obrigada – eu respondi, observando o meu reflexo pelo retrovisor do I30 de Emma.

Por alguma artimanha do destino – ou talvez a culpa fosse de algum dos cremes caros e cheirosos de Emma – o meu cabelo estava no lugar, ondulado nas partes certas e sem os trilhões de fios arrepiados na raiz. Além disso, os meus olhos, geralmente com olheiras profundas e de um verde pantanoso, estavam iluminados e um pouco mais claros do que o normal.

– Você realmente está por fora do que rolam nessas festas – a minha única e melhor amiga revirou os olhos castanhos lotados de corretivo, base, pó, sombra, delineador e rímel. – Há quanto tempo você não sai da frente daquele computador, aliás?

– Ele me entende e me aquece no inverno. Nós estamos apaixonados e você não tem nada que se meter no nosso relacionamento – eu coloquei os dois pés em cima do porta–luvas. – Vamos nos casar no verão.

Emma gargalhou e ligou o rádio.

Ela era muito pequena para o carrão que dirigia; sumia dentro do esportivo. Eu vivia dizendo a ela que fôssemos de metrô para os lugares, mas ela teimava em dizer que tinha medo do assédio. Eu sabia que não era esse o motivo... Emma simplesmente não poderia ser vista andando de transporte público.

Eu não a julgava. Todo mundo tinha os seus defeitos. Não seria diferente com a minha melhor amiga, por mais que todos a achassem perfeita.

Lembrava–me perfeitamente bem do nosso primeiro contato. Nós estávamos sentadas lado a lado na fila de espera da matrícula. Ela estava de mãos dadas com um senhor de idade que se parecia muito com ela e conversava animada com ele. Mais tarde, eu descobri que aquele era o seu avô, o milionário e dono da rede de farmácias Mills. Descobri também que ele cuidava de Emma desde que ela era pequena, já que os seus pais estavam mais interessados em gastar toda a herança em drogas e festas caras.

A minha mãe estava ao meu lado naquele dia, encantada com tudo na Universidade de São Paulo; as cadeiras, as luzes, a arquitetura, a boa educação das pessoas. Eu estava sentindo o mesmo. Todos os anos de esforço e dedicação finalmente me levaram até aquele momento. Ciências da Computação na USP.

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