Engolindo um cenário

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A muito tempo atrás, escutei a história de um menino que aos onze anos tinha de passar pelo inferno para chegar na porta da escola.

Sua jornada começava ao engolir o primeiro ar do dia, consciente de que, seria a única coisa que ele iria engolir, se ele não tivesse onde recorrer. Sua barriga implorava que ele fosse para a escola, ela não pedia por conhecimento, e sim pela única refeição que poderia ingerir durante o dia. Ele então a escutava.

Valia a pena percorrer a Vila Cruzeiro sobre os nus pés. Vale ressaltar que, seus pés também tinham pedidos, mas o menino já nem os escutava mais. Não importava quem comprasse a briga. A campeã era e sempre seria, sua barriga, não tinha conversa.

Um dos destaques dele era, exatamente, como de destaque não tinha nenhum. Era de certa forma invisível. Ele conhecia um monte de crianças com o mesmo poder, com o mesmo tom de pele, um garoto negro, tinham até o mesmo corpo desnutrido dele.

Sentindo-se preparado e satisfeito, após devorar todo seu medo e acalmar os soluços de seus pés, ele abaixa sua cabeça e sai da cabana. Tentando esquecer o fato do solo estar quase se encontrando com o que ele gostava de imaginar ser o inferno, ficava a maior parte do tempo resolvendo mentalmente, problemas matemáticos. Chega a ser irônico o menino se interessar por contas, sendo que sua família não tinha como pagar as suas.

Poucas vezes o rapaz despertava-se dos desvaneios, mas quando acontecia, não esperava um segundo para encontrar com o diabo. O escolhia enfrentar, como uma resposta automática deitava-se passivamente ao chão, o abraçava.

Nesse ponto de partida já considerava-se amigo íntimo de Lúcifer. Os tiros não seguiam o cronograma dele. Quando finalmente acabavam, ele se despedia do que chamavam de o mal no mundo.

Nos melhores dias, eram só esses desafios que ele enfrentava. Chegava na escola agradecendo o sacrifício que todo o seu corpo fez, para o levar até ali, o lugar mais perto de conhecer o que significava segurança.

Engolia agora, o mais puro ar que chegaria a inspirar. E com o maior sorriso, segurando para não sair pulando, me procurava. Aguardava ansiosamente pelo seu alimento e nossa conversa rotineira. Ele não poupava esforços em me contar suas contas mentais e longas conversas com o diabo. 

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⏰ Last updated: Apr 26, 2021 ⏰

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