O Salgueiro Cego

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 Sayuri olhava para o seu relógio de cor prateada e ponteiros roxos, com pequenos pontos brilhantes nos minutos.

À primeira vista pareceria um relógio de marca, daquelas "fancy" ou "x-pto" mas, na realidade tratava-se de um relógio comprado em uma daquelas lojas pequenas que se encontram espremidas em becos escuros, entre malas e t-shirts de todas as cores, com o logo de bandas famosas, personagens manga, e sátiras a um ou outro político americano, espalhadas entre sombrinhas azuis e vermelhas de papel.

Sayuri pensou que estava na hora de regressar ao seu quarto. De vez em quando, olhava para a folha amarrotada dentro da sua mala gasta de pele castanha e não conseguia evitar um franzir um tanto preocupado.

Olhava para os seus ténis cor-de-rosa, e pensou que se não tivesse cuidado ainda os sujaria nas poças de água suja e enlameada proveniente das lavagens do chão das peixarias alí perto.

Quem olhasse para Sayuri não pensaria que ela tinha quase 27 anos. De tez pálida, cabelo preto e meio cortado à pajem, vestia uma camisola cinzenta com o desenho da boneca Minnie posta em grande e diagonalmente, umas calças de ganga azuis, meio gastas, que terminavam pelo tornozelo, e um casaco de malha largo preto.

De ancas ligeiramente largas e seios pequenos, Sayuri de nacionalidade japonesa, era bastante atrativa, chamando a atenção de dos olhares alheios e indiscretos dos que passavam sempre por ela.

Sayuri percebeu que o seu encontro não viria, assim que olhando mais uma vez para a folha amarrotada apressou o passo, e regressou à "lǚguăn", onde tinha alugado um quarto na cave. Chovia e quando pediu a chave do seu quarto à "lǚguăn lăobăn", tinha o seu cabelo em desalinho, quase não se vendo vestígios do batom rosa carmim ou do rímel umas horas antes preto.

Chegada ao quarto, atirou com a roupa molhada para o aquecimento, ficando vestida apenas com umas cuequinhas ligeiras e soutienzinho branco, atirando-se de seguida para cima da cama, sofrendo de vez em quando de arrepios de frio que a deixava com pele de galinha.

Abriu a mala e tirou a folha amarrotada, e com pesar releu a frase que o seu pai havia deixado com o hanko do salgueiro cego.

Como um sonho fechou os olhos e deixou que a fantasia a levasse até ao primeiro momento em que falou com ele.

Lembrava-se com nitidez da luz das paredes brancas do edifício que a havia acolhido pela primeira vez uns seis anos antes.

A diretora, uma senhora rude e de pele rugosa, fã de uma disciplina quase militar, cortejava as meninas ferozmente com o olhar, admirando, com minúcia, as saias escuras e os puloveres azuis, e as camisas e meias claramente brancas.

Das tarefas diárias de Sayuri, aos seis anos, consistia em lavar o chão, as janelas e fazer as camas. Às mais velhas resumia-se lavar a roupa nos grandes tanques, e só quando tinham doze anos, e já se podia dizer que estavam mais disciplinadas, é que poderiam dedicar-se a outras atividades como costura e bordados. 

É claro que as mais velhas supervisionavam as imediatamente mais abaixo, e assim por adiante, até que fosse hora de sair para o mundo, ou se por magia, o talão vermelho da lotaria rodasse e alguns pais adotivos aparecessem em busca de uma boneca ou de uma empregada de limpeza mais barata. Caso contrário o comando de autoridade só acabava quando a mais novas das mais novas ficava a supervisionar e a beliscar a bochecha esquálida da órfã, "nezumi", mais nova acabada de chegar.

Claro que o orfanato contava com o apoio de alguns doadores ricos que ajudavam por razões desconhecidas aquelas cento e noventas crianças.

Sayuri havia acabado de lavar o chão de um dos dormitórios quando a "nee san" a chamou para ir ao escritório da diretora. Depois de um tabefe na cabeça e de um comentário desdenhoso por parte da irmã mais velha, Sayuri calçou os seus chinelos cinzentos e correu, parando de vendo em quando para verificar se seu aspeto não estaria demasiado desalinhado.

De repente, Sayuri sobressaltou-se com o bater da porta e o riso de um grupo de amigos que se encontravam alojados no quarto em cima.

Voltou a ver o hanko (柳の木em vermelho).

O seu pai costumava chamá-la Yanagi, como a lenda do salgueiro e da cerejeira. Dizia a lenda que os galhos de uma Sakura apesar de aguentarem muito peso quebravam como um fósforo sob o peso da neve, mas que os galhos de Yanagi eram flexíveis e cediam fazendo a neve escorregar. Assim se o vento da vida soprasse melhor seria ser flexível como um salgueiro e não tão rígido como uma cerejeira. Sayuri, porém, gostava mais da história de Hido, o espírito guardião do salgueiro que se havia apaixonado pelo camponês que a havia salvo de ser decepada.

Quando viu o seu pai pela primeira vez por entre a porta quase fechada do escritório da diretora, Sayuri viu um senhor de fato e gravata azul escuro, com um chapéu-panamá azul também ele escuro à moda dos usados por Humphrey Bogart e Clark Gable. Entre ele e a sua esposa Akemi que viria mais a tarde tornar-se na sua mãe estava uma menina, dois anos mais nova que Sayuri, que vendo-a espreitar, abriu a porta e lançou-se a Sayuri abraçando-a com força.

–"Ohayougozaimasu Sayuri! Entra, por favor."– disse a diretora olhando para Sayuri com um sorriso que dissimulava a austeridade habitual comum ao seu jeito de ser.

Aiko, filha de Akemi e de Goku, largou imediatamente Sayuri, e dirigiu-se à mesa onde estava um pequeno embrulho envolto em tecido vermelho pintado com uma magnólia branca gigante. Nesse momento, o pai Goku e a mãe Akemi levantaram-se das suas cadeiras e esperando que a diretora falasse, deram o embrulho a Aiko para que esta entregasse a Sayuri.

–"Sayuri, já estás connosco há quase sete anos. Este senhor e a sua família querem-te levar para que faças parte da sua família. Por favor, abraça-os e agradece-lhes prometendo-lhe sempre honrá-los como o otousan e okaasan desta vida, e não te esqueças de retribuir a sua generosidade com um coração puro."



Quando chegou à porta, viu entre a abertura, o cabelo preto liso da sua mãe, e de perfil, um nariz ligeiramente mais oblíquo do que seria de esperar de uma oriental, nascida de um casamento entre seu pai e uma jovem berlinense que havia conhecido na Nachtigalplatz na altura em que o Japão se se aproximava da agressora Alemanha nazi.

Na realidade anos mais tarde, Sayuri viria a saber que a depressão da sua mãe tinha um gene muito próximo a do seu avô que viria a suicidar-se perante a vergonha de ter falhado o seu imperador e vê-lo perder a II Guerra Mundial com a infame derrota em Nagasaki. Isso e o facto de se vir a saber que ele estaria envolvido em crimes de guerra e de ter sido o responsável pela execução de uma centena de prisioneiros de guerra koreanos e chineses, levou a que o avô de Sayuri assumisse o seu sentido de dever e honra e deixasse assim uma jovem esposa viúva e uma menina de oito anos órfã.

Quando Sayuri abriu a caixa, o som da das cordas do biwa gravado tocou pela sala da diretora, e todos sorriram como se tivessem sido todos tocados pelo vento de uma folha e o destino selado.


Biwa- n.m. instrumento de cordas japonês

–"Sayuri, por favor sê nossa filha."–disse Akemi baixando a cabeça– "e uma irmã para Aiko. Temos muito gosto em te ter em nossa casa."

Sayuri sentou-se na cadeira perto da secretária da diretora, enquanto olhava enaltecida para o embrulho que lhe havia sido acabado de dar. Espantada com as palavras da diretora, observava a delicadeza com que o embrulho havia sido feito para si enquanto pensava para si mesma como haveria de abrir um embrulho perfeito. Tocava no tecido suave com as suas mãos pequeninas, e olhava uma e outra vez para o laço e nó sem vincos perfeitamente executado, com as abas delicadamente caindo sobre a magnólia branca e as dobras sem esforço delineadas mais perfeitas do que se de papel se tratasse.

O pai Goku abaixou-se então nesse momento e ajudou Sayuri a abrir o embrulho. Desfeito o nó, o tecido vermelho abriu como se de uma toalha de piquenique se tratasse, revelando o presente–uma caixa azul escura com uma pintura em branco de um salgueiro.



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⏰ Last updated: Jun 09, 2021 ⏰

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