UM

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Não quero ser injusto com outros parentes, mas o tio Otávio foi especial para mim. Era o único que parava para assistir aos desenhos comigo nas manhãs de sábado e gostava tanto quanto eu. Também era ele quem me dava chocolate escondido antes do almoço e comprava os bonecos do Pokémon e das Tartarugas Ninja que eu sempre queria.

Os outros membros da família também pareciam sentir algo especial por ele. Fazia piadas que arrancavam risadas de todos, mesmo quando não eram engraçadas. Eram tantas gracinhas que, quando chegava em algum lugar, as pessoas apenas começavam a rir. Sua presença já era o suficiente.

No meu aniversário de dez anos, ele me deu um livro do Fernando Pessoa e disse que não era possível confiar em um homem que não lia poesia. Fui apresentado a todos os seus filmes favoritos: Cantando na Chuva, Central do Brasil, Taxi Driver, Abril Despedaçado, Clube dos Cinco, The Rocky Horror Picture Show... nada era antigo demais, maduro demais ou estranho demais que não pudesse ser mostrado para mim.

Tio Otávio era um amigo, alguém que eu admirava. Nunca o vi triste, cabisbaixo ou bravo.

Um dia, o telefone de casa tocou e a minha mãe atendeu. Era a época em que ainda tínhamos aquele telefone fixo branco, que se confundia com os eletrodomésticos da sala.

Quando a ligação acabou, minha mãe estava com o olhar vago. Sentou-se no sofá e ficou quieta por um tempão, com os braços e pernas cruzados. Fiquei preocupado, mas quando perguntei o que havia acontecido, ela só começou a chorar. Meu pai me mandou para o meu quarto.

Deitei na cama e peguei meu boneco do Ikki de Fênix, dos Cavaleiros do Zodíaco (não conhecia o desenho, mas ganhei o brinquedo por causa do meu apelido). Estava com doze anos e não brincava mais com aquele boneco, mas gostava de olhar para ele.

Vi a porta se abrindo e meu pai entrou. Sentou-se na ponta da cama e falou comigo como se eu já fosse um adulto. Sempre me tratou assim.

— Seu tio Otávio foi diagnosticado com câncer no pulmão — disse, sem rodeios. — Isso é bem sério — completou, sem necessidade.

***

Um mês depois da notícia, Tio Otávio e sua esposa apareceram em casa para uma macarronada de domingo. Esperei que ele estivesse diferente de alguma forma, mas parecia o mesmo. A tia Antonieta, por outro lado, estava com olheiras enormes e o cansaço era visível. Reclamou de como o marido demorou para largar o cigarro, mesmo depois do diagnóstico.

— Fiquei tão preocupado em saber que tenho câncer no pulmão, que tive que acender um cigarro para me acalmar — defendeu-se.

As visitas se tornaram cada vez menos frequentes, até o dia em que deixaram de acontecer. Dizia para a minha mãe que gostaria de vê-los, mas ela sempre respondia que não havia tempo para isso. Demorei a entender que meus pais iam à casa de meu tio escondidos de mim.

***

No terceiro dia de maio, minha mãe me acordou cedo.

— Ícaro, toma banho rápido e se veste, você vai com a gente visitar o tio Otávio.

Não questionei, porque daquela vez ela decidiu que eu poderia ir também.

No carro, estranhei o trajeto. Não reconhecia nenhuma daquelas ruas. Deduzi que estávamos a caminho da casa dele, mas, na verdade, íamos para o hospital, sua nova casa.

Se da outra vez ele parecia o mesmo, dessa aparentava lutar para permanecer o mesmo. Estava muito mais fraco, careca e respirava com a ajuda de aparelhos.

Ainda assim, sorriu ao me ver.

Fez uma saudação animada em contraste com a voz fraca. Ele lutou para falar e conseguiu. Se eu fechasse os olhos e ignorasse as tosses, poderia confundir aquele encontro com qualquer outro que tivemos anteriormente. Talvez a memória esteja me traindo, mas tenho a certeza de que ele parecia mais forte a cada segundo. Quase como se esquecesse a doença.

SEGREDOS ESCONDIDOS EM CAIXAS DE SAPATOS (DEGUSTAÇÃO)Onde as histórias ganham vida. Descobre agora