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"A pele dele foi se enrugando, gradualmente, como se o tempo estivesse acelerado. Rugas e rugas. Velho, cada vez mais velho. Era mais de meia noite. Havia uma neblina espessa. Realmente era difícil de enxergar, mas eu vi, não resta dúvida. Era o meu melhor amigo. Mais que isso. Conheço seu físico há tempos, seu jeito de se mover, o reconheceria até pela sombra e a incríveis distâncias. E ali, cerca de vinte metros nos separavam. Era o mais próximo que podia ficar naquela situação. Quando a pele não tinha mais como enrugar, ela começou a se soltar em placas, caindo ao chão, gelatinosa. Tenho certeza que ele não me viu. Fiquei bem escondida. Quando não havia mais pele pude ver seus ossos e órgãos. Ele continuava em pé e garanto, respirava. Soltava gemidos, discretos, diria que talvez de prazer. Quis chorar, mas não podia... "

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Era isso. Esse bilhete. Um mísero textinho. A única pista. Uma anotação de viés literário, típico dela. Difícil de acreditar. Por que ela sumiu assim? Além desses dizeres havia sangue, respingado por toda a folha. As últimas palavras estavam rabiscadas, indecifráveis, a última palavra identifiquei: tentáculos. Mas o que me intrigava e acelerava meu pulso era a simplória oitava frase: mais que isso. Tinha que encontrá-la, finalmente tinha esperança de felicidade.

Melhor contar como achei essa anotação bizarra. Não sei, é penoso. Esse relato será inútil, serei taxado de maluco, como de costume. Tudo bem, tudo bem. Preciso registrar, organizar a mente. Entender os acontecimentos. Lembrar os detalhes. Foco! Isso é a coisa mais importante da minha vida.

Acho que posso começar falando de um dia específico. Foi assim. Preocupado com minha vizinha e amiga fui visitá-la, estava sem notícia dela há dias. Era um dia ensolarado. Ninguém na pequena propriedade rural. Bati palmas, gritei seu nome.

— Amanda, Amanda.

Nem o cachorro veio me recepcionar, o inseparável e querido Cérbero. Suas lavandas que ladeavam a entrada estavam murchas o que estranhei. Ela amava suas plantas, dedicava-se muito aos cuidados delas, jamais murchariam tão rápido. Empurrei o portão e entrei. Na horta não havia mais verdura ou hortaliça, tudo colhido, ou talvez consumido ali mesmo. O cavalo vagava, arisco. Vi um amontoado de cabeças de galinha e sangue no chão. Sabia que ela odiava matar galinhas, quando necessário me chamava. Por que mataria todas? Ela mesmo fez aquilo? O casebre me pareceu mais antigo, desbotado. Só ouvia o vento uivando, passando entre portas e janelas, inspecionando tudo com rapidez. Os pássaros que de costume cantavam por ali, onde estariam? A porta de entrada entreaberta.

— Olá, Amanda! Posso chegar? Tudo bem por aqui?

A louça na pia, cheiro de sardinha azeda. Teias de aranha nos cantos dos móveis. Poeira. Na mesa de jantar uma vela acessa, quase no fim. O vento encanado não conseguia apagá-la. Ela não era religiosa e tinha um gerador, velas não lhe eram necessárias. Armários abertos e vazios. Fui para o quarto. A cama desarrumada, manchas amareladas nos lençóis. Cheiro de corpos em putrefação. Nesse ponto eu já estava ofegante. Pensei que fosse morrer. Meu peito pesava toneladas e uma tristeza me queimava. O uivo do vento parecia agora um cão chorando. Ajoelhei no chão, oprimido por medo e dor. Foi assim que achei a folha. Vi um pedaço dela embaixo da cômoda. Li o bilhete com as mãos trêmulas, com uma azia me torturando. Qualquer outra pessoa que lesse aquilo chamaria de delírio. Para mim era uma peça de um quebra-cabeças.

Após ler veio a escuridão. De início pensei ser nuvens de tempestade encobrindo o céu, mas ao sair do casebre vi que era noite. O sítio de Amanda, a horta, o galinheiro, o estábulo, não existiam mais. Um manguezal denso ocupava o lugar. O chão borbulhava. Algo subia pelos troncos das árvores, deslizando, se envolvendo nos galhos. Eu pensei em rir. Mas não ri. Talvez tudo se desmanchasse e eu acordasse. Tinha que ser um pesadelo. Supliquei que fosse. Paralisado observei o cenário absurdo e ouvi os sons de rastejo, madeira trincando e um provável canto de coruja. Estaria enlouquecido?

Tentáculos Assassinos também Sangram por AmorWhere stories live. Discover now