II

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Era isso. Uma carta de um louco apaixonado. Pelo menos foi o que confirmei aos investigadores e todos aqueles homens de terno. Eles não me pareceram convencidos. Não acharam que todos aqueles corpos estraçalhados fossem coisa de alguém apaixonado. Disseram ser algo intrínseco dele. Algo que veio no cérebro, provavelmente. Um psicopata. Incurável. Talvez um sociopata, mas também sem salvação. Um monstro puramente humano. Disseram já ter visto coisa pior.

O texto foi deixado em minha casa, embaixo da mesma cômoda em que ele encontrou meu bilhete inacabado. O escrito que rabisquei freneticamente antes de entrar no porão, que desesperada deixei para prosperidade. Ou seja, de alguma forma ele tinha esperança de um dia eu ler. Naquela cabeça louca dele ainda existe lampejos de esperança.

Fiquei por semanas no meu porão escuro e úmido. Antes, coletei todos os ovos e matei todas as galinhas, cortei cada pescoço seguindo os passos frios que ele me ensinou, que vira ele fazer tantas vezes. Um ato de amor travestido de maldade. Adoro minhas galinhas, quero uma vida boa para todas, mas é delas também meu alimento. Uma troca equilibrada, vida boa por comida. Colhi minhas verduras. Chorei abraçada no pescoço largo de Tonico, meu querido cavalo. "Você não cabe no porão. Fique livre, fuja ou se esconda. Tenho que ir. Lamento, meu nobre guerreiro, meu forte alazão." Juntei o máximo de mantimentos possíveis. Ficamos eu e meu meigo Cérbero. Um pequeno fogão, um freezer, uma cama e um banheiro. Livros, vários livros, meus amores. O esconderijo que meu pai judeu, obcecado por segurança fez abaixo da casa. Ele sempre dizia. "Os nazistas não se foram, eles sabem se esconder, sabem se reconstruir. Mesmo aqui no paraíso tropical, nesse país de miscigenados, eles se criam. Sempre tenha onde se esconder."

Quando acabaram meus mantimentos, resolvi sair. Não havia mais flor viva. Tonico estava morto. Só restaram os ossos. Minha pequena fazenda parecia um campo de concentração abandonado. A cidade estava em polvorosa, assassinatos, corpos mutilados, derretidos. Meu querido Josué havia sumido. O principal suspeito.

Dias de luto. Dias de depressão. Quando consegui ânimo, catado em migalhas das coisas boas de minha infância, fui limpar a casa. Começar a refazer a vida. Foi quando a vassoura trouxe o pedaço de papel, a carta. Sempre fui apaixonada por Josué. Chorei outros tantos dias, o relato é pungente, principalmente para quem sabe dos detalhes da vida dele. O diagnóstico de esquizofrenia veio na juventude. Ele foi menosprezado de inúmeras maneiras e isso se somou à sua paranoia de ser perseguido, inclusive por monstros, por seres extraterrestres ou de outras dimensões. Agora sei que se ele tinha a doença. Acho que de alguma maneira eu também tenho, pois não foi à toa que me escondi. Eu vi o que ele se tornou. Eu li sua confissão. Eu vi o monstro na sua plenitude. Aquilo não foi irreal.

Pelo menos quando a turvação surgir, vinda desse mundo de maldade pura, eu vou saber, que lá no fundo, escondido naquele ser, existirá algum tentáculo que terá algo de bom, algo fulgurante, da parte benevolente do querido Josué. Tenho certeza que posso acordar isso, como fizemos no passado, lendo os livros, competindo por devorar palavras. Bastará uma centelha do nosso amor, de como enxergo ele e tudo que poderia ter sido, para todo o mundo de assombração desabar. Para existir noite e dia, para nem luz nem escuridão permanecerem.

Garanto que quando ele voltar, quando observar o que fiz com o sítio dele, quando ver toda vida e beleza que vou fazer crescer, cultivando plantas com toda poesia do meu corpo, vai se desmanchar, perder os tentáculos, voltar a ter a pele preta linda, os lábios carnudos, os olhos delicados, o cabelo emaranhado, vai rejeitar o trono cósmico do egoísmo só para ficar ao meu lado.

Eu não conto isso para as pessoas. Eu sei que aloucura dele tem poder. Ele deve estar nesse momento consumindo muitos. Devotentar salvar o mundo? Salvar as mentes inocentes? Como fazer isso? Penseimuito. Não acho que conseguiria convencer que esse perigo existe. Esse perigosempre existiu. Vou parecer louca. A polícia, os militares, os cientistas, amídia, a igreja, o governo, vão rir de mim. Vão dizer: "Monstros não existem."Não vão se preparar. Uma guerra intergaláctica não vai acontecer. Um grandeherói não vai entrar em uma nave e com seus talentos extraordinários salvar atodos. Não é assim. Vão cair na armadilha de se acharem melhores, acima detudo. Não vão refletir, não vão investigar. É com pesar que percebo: o planoDeles é ardiloso, cru e doloroso, é mais cinema brasileiro que americano. Elessabem como a humanidade funciona. O que vou fazer? Vou fazer o que sei fazer.Fazer brotar da terra coisas boas. Fazer jardins. Cuidar dos animais. Permitirque as coisas perdurem, alimento, paz, amor. Vou com isso me fortalecendo,esperando o monstro do meu amor voltar. Não existe golpe mais fatal que o bemcuidar.

Tentáculos Assassinos também Sangram por AmorWhere stories live. Discover now