Capítulo 1

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    Pedro

Coiote, para alguns indígenas, a invenção de tudo que há de mal no mundo, senhor do inverno, sábio, solitário, sobrevivente, ganhei o apelido quando tinha pouco mais de nove anos, no meio do deserto, numa tarde quente, quando me perdi de Dom e Pepe.

O sol escaldante ardia em todo meu corpo, minha garganta queimava e eu arrastava meu corpo em direção a garrafa de água que havia rolado para longe, prestes a sucumbir, delirante.

Ele surgiu sorrateiro, orelhas erguidas e atentas, passos lentos, pronto para o ataque, não senti medo, parecia melhor do que a morte lenta que me esperava sozinho no deserto, seco, quente, desesperado.

Olhei fundo em seus olhos, por um breve instante, me esqueci que estava morrendo e me encantei pelo par de olhos âmbar, ele não desviou o olhar, fixou os olhos em mim, depois se curvou, empurrou com o focinho a garrafa em minha direção, eu levei um instante para entender, ele não tinha planos de me dilacerar, ele estava a salvar minha vida. Dei uns goles na água morna, senti uma força nova a me dominar, ergui a mão e o toquei, os pelos espessos e acinzentados, o focinho esbranquiçado, os olhos firmes a me fitarem.

O som da espingarda explodiu no meio de lugar nenhum, o coiote correu para longe, assustado enquanto desejei ser como ele e apenas poder correr pela terra árida e morta que me cercava, mas fiquei, imóvel, esgotado, semimorto, Pepe chegou primeiro, tocou meu rosto para ter certeza que eu estava vivo, logo depois Dom.

— Mais um segundo e ele estraçalharia você. – Dom disse me erguendo para sentar e atirando um pouco de água fresca sobre meu rosto.

— Não! Ele... ele estava me salvando. – Eles riram. – Ele me deu água, ele estava me salvando.

— Moleque, deixa de contar história, o coiote ia te engolir, vimos de longe. – Pepe rio mais alto. – Está delirando por causa do calor.

Ele me colocou em seu ombro e me carregou de volta a caminhonete, acho que andou comigo um quilometro, no meio do deserto, e isso, em toda a minha vida, foi o mais perto que tive de afeto ou carinho.

Esse também foi o dia em que provei tequila pela primeira e última vez, eu tinha sobrevivido ao deserto, merecia, aqueles homens secos, vazios, e duros demais para qualquer ato de sensibilidade com uma criança me entregaram uma garrafa de tequila, sentados em sofás velhos no galpão onde cresci feito o cão de guarda do Dom, treinado para atacar sob suas ordens, bebi quatro doses, depois de quase morrer no deserto, com o corpo ainda queimando como se estivesse no inferno, apaguei logo depois, amanheci doente, vomitei minha alma, a cabeça doeu por três dias inteiros, não comi direito por quase uma semana, e nunca mais tomei um gole de tequila.

Foi uns anos depois, quando completei quinze anos que fiz a primeira tatuagem, o velho coiote que me salvou a vida e seu par de olhos âmbar, eles ainda me obrigam a contar a mesma história, riem em seguida, mas eu sei o que vi, sei o que aconteceu, aquele coiote me salvou.

As ruas estão cheias, nunca gostei de celebrar o Dia dos Mortos, eu não tenho mortos para celebrar, eu sempre fui apenas eu, sem passado, sem futuro, sem lugar para voltar.

Esbarro em uma mulher fantasiada de La Catrina, foi minha segunda tatuagem, La Catrina e todo seu significado, não importa se é rico ou pobre, bonito ou feio, honesto ou desonesto, no fim, somos nada, vamos para o mesmo lugar, caveira e apenas isso.

Duas crianças passam correndo com suas caveiras de açúcar, no quintal de uma das casas, um altar de sete andares, com doces, flores e fotos, pratos da comida preferida dos seus mortos, prontos para recebê-los, desvio de uma dupla de esqueletos que anda cambaleando no meio de uma bebedeira. Mexicali está em festa como todo ano.

Série Azteca - Pedro (DEGUSTAÇÂO)Where stories live. Discover now