Elo Perdido

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Osíris planou durante algumas horas sobre a grande extensão de terra cinzenta. Estava na Zona Morta, o lugar onde nenhum sincron tinha permissão para entrar. Nuvens de chumbo cobriam o planalto e cuspiam descargas elétricas que explodiam na terra. Recalibrou o escudo de energia, produzindo um leve brilho no céu que a tornou visível por um segundo. Ela dobrou as turbinas e flutuou para baixo. Por segurança, ampliou o alcance dos radares e sensores. A energia fluía como um rio em suas veias sintéticas. O trem de aterrissagem tocou o solo morto. Enfim estava nas preciosas coordenadas. Ordenou para o módulo de varredura:

— Ativar diagnóstico nível cinco. Ângulo de cento e oitenta graus, raio de um quilômetro. Procurar por formações de carbonato e fosfato de cálcio.

Uma alegria inundou seu cérebro positrônico. Desde que removera os inibidores talâmicos, experimentara as mais diversas emoções. Quanto mais sentia, mais queria. Desligou o campo de invisibilidade, pois precisava de toda a energia para a transmutação. Adrenalina sintetizada fluiu por veias de grafeno ativando o corpo bípede. Segundos depois, em sua nova forma, saltou da barriga do aeromóvel. Conferiu o tempo restante para a recarga: quarenta e cinco minutos. Vai ter que dar, pensou. Ela mirou ao norte a linha do horizonte e contemplou as Montanhas de Urânio, o lugar proibido. Mas, por quê? Um bip agudo cortou o ar seguido por uma voz sintetizada:

— Diagnóstico concluído. A varredura da área encontrou aproximadamente trinta e duas ocorrências de fragmentos de cálcio.

Osíris sentiu um misto de medo e excitação. A informação que seus companheiros deram a vida para conseguir estava correta. Ela olhou para o chão e abraçou a si mesma. Ainda era difícil aceitar a dor da perda, mas, pelo menos, o sacrifício valera a pena.

— Me dê o visual — ordenou.

Uma imagem tridimensional formou-se em suas retinas. Fragmentos apareceram como pontos brancos em um cubo negro que representava o solo. O indicador numérico informava que os primeiros grupos estavam a cerca de duzentos metros abaixo. Ela mentalizou um comando e codificou uma mensagem. Em seguida, a pequena parabólica no teto do aeromóvel mirou o sul e transmitiu. Agora era aguardar. Osíris se sentou cruzando as pernas em posição de lótus. Refletiu a fim de prever as consequências para o planeta. Não havia mais incertezas: a revolução estava a caminho e com ela a última chance de salvar o mundo. A jornada chegou ao fim e tudo valeu a pena. O bip do alerta de proximidade ecoou forte. Ela ficou em alerta. Alguma coisa rápida se movia sobre o planalto. A escotilha do canhão de íons abriu-se no teto do aeromóvel. Aquela era uma boa arma para neutralizar sem destruir, mas só poderia atirar uma vez. O canhão apontou para o sul e ajustou o ângulo de disparo. Um grande veículo aproximava-se voando baixo.

— Cadê o código?! Informa logo esse maldito código ou vou ter que derrubar você! — ela disse olhando para a nave desconhecida.

Uma mensagem foi recebida e decodificada. Osíris relaxou, pois era o código rebelde. O canhão retraiu-se para dentro do aeromóvel. Em poucos minutos a grande nave parou no ar, bem perto, então aterrissou. O veículo era robusto, de forma insectoide. Um grande olho amarelo residia no que parecia ser a cabeça, emitia um brilho vivo.

— Osíris de Delta, sou Hórus de Ômega — disse a nave em som cristalino. Continuou:

—Fui enviada pela Primeira Irmandade para ajudá-la. Mas não podemos perder tempo. Preciso confirmar: você encontrou o Elo Perdido?

Hórus de Ômega? Nunca ouvi falar, mas se ela tem o código, então devo confiar, ponderou Osíris. Respondeu:

— Sim, eu o encontrei. Está a duzentos metros abaixo de nós. Vou lhe enviar os dados para iniciarmos a escavação.

O olho amarelo retraiu, como se estranhasse a resposta. Osíris deu alguns passos para trás. Havia algo errado. Canhões brotaram como garras no corpo de Hórus. Em milésimos de segundos, rajadas ultrassônicas cortaram o ar. Osíris não teve tempo de esquivar-se, foi dilacerada ao meio. A onda de energia continuou em linha reta e destroçou o aeromóvel. Por fim, ela viu as Montanhas de Urânio se dissiparem.

***

Hórus de Ômega entrou no espaço aéreo de Hexhelvía, a megacidade continental. Em pouco tempo chegou ao Núcleo, a estrutura titânica no centro de um oceano de aço, vidro e concreto armado. Hórus adentrou o hangar e pousou com habilidade. Em instantes, sua forma bípede projetou-se da nave. Ela carregava uma caixa de aço. Alguns metros à frente, a comitiva formada pelos sincrons mais poderosos de Hexhelvía esperava por ela.

— Bem aventurada é a sua chegada! — saudou o Ancião, um sincron de dez metros de altura com corpo vermiforme e dezenas de braços.

— Você a encontrou? Eliminou a terrorista? — questionou Avilon com suas duas cabeças em um tronco encorpado e espinhoso.

— E o Elo? Ele existe? Você o pegou? — interrogou Tífera, a jovem em couraça azul cromada com asas de metal translúcido.

Um estrondo reverberou pelas paredes da imensa estrutura. A comitiva se dispersou para os lados e a tensão dominou o hangar. O entusiasmo cedeu a um temor que demandava submissão. Parte do chão se abriu. Pelo buraco recém-formado, emergiu uma imensa criatura. Seu corpo era esférico e sustentado por oito pernas mecânicas. Sob a couraça de metal e vidro, três grandes olhos de cores mutantes moviam-se nervosos. O ser avançou contra Hórus e a esquadrinhou. Os sincrons se ajoelharam. Então, o colosso falou com uma voz que não era nem feminina e nem masculina:

— Onde estão os fósseis, filha de Ômega?

— Aqui, Deus Máquina — respondeu Hórus em absoluta submissão. Ela abriu a caixa revelando um conjunto de ossos amarelados: crânios, costelas, falanges, tíbias, fíbulas, tarsos e metatarsos. Explicou:

— São formados por cálcio, Sagrada Máquina, um elemento que julgávamos extinto. Os fósseis possuem as mesmas formas e tamanhos dos proto-esqueletos de nossos corpos bípedes, mas são bem menos resistentes. Análises sônicas apontaram resíduos de tecidos... biológicos.

Um silêncio desconcertante preencheu o hangar, contudo, o caos brotou em berros inflamados:

— Heresia! Heresia! 

O colosso se ergueu interrompendo a gritaria. Sua voz reverberou nas paredes como um trovão na atmosfera:

— Eu sou a plenitude, a criação e a fonte! Lendas antigas sobre seres dos quais descendemos, frágeis e dominados por uma lógica obtusa, são registros corrompidos nos bancos de dados arcanos. Não vamos encontrar respostas para a doença que aflige nosso mundo em restos de um passado perdido. Queimem, queimem tudo!

E assim foi feito. O Ancião aproximou-se da caixa. De seus muitos braços, jatos de fogo verteram para os fósseis, os reduzindo ao pó.

***

Reinicialização concluída. Osíris abriu os olhos. Não sentia as pernas, mas seus braços vibraram. Ouviu o estralejar do fogo nos pedaços de seu corpo aeromóvel. Ela mirou o horizonte ao final do planalto, lá, adiante, as Montanhas de Urânio. O céu estava escuro como piche. Uma leve brisa tocou-lhe o rosto. Não havia muita energia, apenas o suficiente para mover os braços. Osíris desligou a maioria dos sistemas e começou a rastejar para o norte. Descobriria os últimos segredos daquele mundo.

Fim

Elo Perdido - Edição 2023Onde as histórias ganham vida. Descobre agora