Apodrecendo

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Acordei naquele dia do mesmo jeito que acordava todas as terças-feiras. Às 6:15 da manhã com o grito infernal do rádio despertador posto sobre o criado mudo do quarto. Merrin não estava a meu lado da cama, mas podia sentir o cheiro de ovos com bacon e algo ainda mais suculento vindo da cozinha.

Me levantei com os ossos dos joelhos e braços estralando como galhos secos no outono e caminhei pelo aposento à procura dos meus chinelos de dedo. Dali há duas semanas completaria meus temidos 41 anos. Sem filhos, com um emprego estável, uma volvo azul na garagem e um câncer pulmonar se formando dentro de mim que eu ainda nem podia adivinhar, a vida era quase perfeita. Quase.

Sai do quarto e entrei no corredor do segundo andar, antes mesmo de chegar ao banheiro para tirar a famosa água do joelho, mesmo que naquela manhã não estivesse com vontade alguma, ouvi o rosnado de um animal enfurecido e dois olhinhos vermelhos surgiram embaixo do aparador perto da escadaria do hall.

-O que é dessa vez, Barney? - indaguei ao Bulldog inglês da minha mulher. Normalmente ele costumava ser apenas uma bola gorda de pelo preguiçosa que passava as manhãs deitado na cozinha esperando que Merrin lhe jogasse um pedaço de bacon ou outra coisa ainda mais calórica.

Era quase impossível acreditar que com todo o peso que tinha havia subido as escadas e parado ali a poucos passos do nosso quarto e mais ainda que estivesse rosnando para mim e não tentando comer o tapete ou os sapatos de alguém.

-Tudo bem, seu saco de banhas. - disse eu, já me arrastando em sua direção. - Temos um combinado bem claro. O andar de cima é meu e só meu. Criaturas peludas e com o QI menor de 90 ficam lá embaixo.

Ele mostrou os dentes ao me aproximar e latiu ainda mais enfurecido. O pelo de suas costas estava erriçado e suas patas dianteiras esticadas como se fosse me atacar, mas não hesitei e me curvei para agarrá-lo, porém fui lento demais, como se meus movimentos tivessem sido feitos em câmera lenta o bulldog conseguiu saltar entre o vão formado entre meu braço e uma das minhas pernas e aterrissou deslizando sobre o piso de linóleo.

Não sei o quanto um cavalo de corrida poderia correr em uma situação como aquela, mas tenho certeza que Barney o teria ultrapassado mesmo com todos seus quilinhos extras. Após cair no linóleo ele disparou como um foguete para o fundo da casa e se escondeu em algum lugar onde com toda certeza eu não teria animo nenhum para procurá-lo aquele dia.

-Cachorro idiota. - murmurei quando finalmente me ergui do chão, alguma coisa mais se estralou em mim sem ser o joelho ou os braços, mas resolvi não ligar muito. Estava ficando velho, não estava?

Os tufos de cabelo que havia encontrado no meu travesseiro aquela manhã comprovava que já estava ficando careca e as calças do pijama que usava pareciam estar mais largas. Logo estaria reclamando de perda de memoria e talvez de uma piora drástica de visão. A única coisa que permaneceria seria o apetite.

A fome que sentia era ilimitada, a única coisa que me impedia de ser um saco de banhas como Barney era a boa e velha genética que havia presenteado todos os Wesley com uma tendência a ser horrivelmente magros. Naquele momento já podia sentir meu estomago roncar e sabia que podia comer o gigantesco hamburguer da lanchonete Quincy Burguer à quatro quarteirões dali ou um bife de certo bulldog irritante se estivesse bem passado.

Chegando a conclusão de que era isso que precisava para começar um bom dia, uma quantidade monstruosa de comida, segui para o banheiro a fim de fazer minhas necessidades básicas e descer o mais rápido possível para cozinha. Entretanto, quando abri a porta do banheiro e entrei no local um grito aterrorizadente saiu da minha garganta e em pânico me joguei no chão frio entre o vaso sanitário e a pia.

Há três coisas que você jamais quer encontrar no banheiro da sua casa. Muitos podem dizer que se pensarmos direito a lista sobe para mais de 500 itens, todavia, essas 497 coisas mais o resto podem ser facilmente contornadas, fato que não pode ser dito o mesmo desses outros três. 1° O amante da sua esposa tentando se esconder atrás da cortina de plástico do seu chuveiro. 2° Uma privada entupida quando você tragicamente está com uma dor de barriga dos diabos e 3° e não menos importante, um monstro descarnado de pele acinzentada andando pelo seu banheiro como se o halloween não fosse dia 31 de outubro, mas 23 de maio. E era exatamente o que tinha encontrado.

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