I

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Os faróis acendiam a noite na grande Porto Alegre. O frio do início de Agosto não o fizera retornar pela avenida Ipiranga para seu quieto apartamento no bairro Azenha. Era a primeira vez que tomava tal rumo após o expediente. E não voltaria para casa tão cedo.

As luzes dos veículos rasgavam a cortina negra da noite às nove horas da noite. E a cidade emanava o cheiro de gasolina e pneu queimado. Eram os vestígios impiedosos dos rachas às escondidas, comum dentre os jovens da metrópole.

O caminho era curto, porém, o trânsito caótico não folgava. Demoraria a chegar. E demoraria a voltar. A básica diferença entre os dois caminhos é que um ele iria fazer por vontade própria, e o outro, por força do hábito.

Podia dizer que quaisquer que fossem os motivos que o fizeram tomar tal rumo para dentro da cidade, sua crise matrimonial era o principal deles. Havia noites que não queria ver sua esposa. Se a visse, tinha a certeza de que iria agredi-la. Pelo simples fato de ela estar ali. Pois acumulava tais impulsos desde que seu filho nascera, há onze anos atrás, fruto da imprudência de dois universitários.

Sempre quisera ver o sangue dela derramar, vermelho e denso, por entre as mechas de seu cabelo louro-claro. Queria ser a causa de sua dor, apenas para puni-la. E puni-la por aqueles crimes ditos invisíveis, crimes lentos, que ela cometia dia após dia. O tal crime era decorrente do matrimônio.

Não sabia por quanto tempo ainda a suportaria. Só sabia que não seria por muito. Odiava sua esposa com todas as suas forças. Mas sentia depender dela. Simplesmente não imaginava sua vida sem ela. Ela era como parte do cenário. Como um objeto, ele queria que ela fosse assim, parada, como se fosse inanimada.

Ele sabia que a hora que voltasse para o seu quieto apartamento, ela estaria acordada. Ela sempre estava. Ela queria ser parte ativa de sua rotina. E ele queria que ela fosse não mais que um mero objeto, para decorar seu falecido matrimônio.

Quase não se deu por conta de onde estava, quando adentrou um bairro que para ele era quase desconhecido. Aproximava-se da área que beirava a zona periférica. Era um território que ignorava.

Embrenhava-se pela mesma avenida, por entre inúmeras casas de beleza europeia. Talvez estivesse indo pelo endereço errado. Até desejava estar. Sentia-se um criminoso, como se violasse algum código de honra.

Entrou em uma das ruas que partiam da avenida, em sentido a distanciar-se do ponto onde estava.

O asfalto era íngreme, em declive. Os inúmeros buracos da via tornavam o percurso lento. Mas ele acelerou, rumo ao seu erro. Rumo ao seu crime. Não via a hora de desafiar a sua esposa, mesmo sem a ciência dela. Queria sentir-se independente. Como sempre quis ser.

Naquele momento de adrenalina não era um criminoso. E se fosse, passaria a viver à margem, pois o melhor daqueles seus atos era o fato de eles serem rebeldes, genuínos, como se fruto de uma anarquia interna.

Não, ele não estava cometendo crime, ao seu ver, pois estava seguindo seus princípios, sua mais íntima vontade. O fato era que sua esposa não lhe satisfazia mais. Não saciava sua sede. Ele precisava buscar diversão. Alienado a ela, no auge de seus 32 anos. Sequer pensara que estava pecando.

O tráfego na rua era quase nulo. Apenas seu Sedan preto banhava-se em brilho da lua para aqueles lados.

Ao chegar ao que julgou ser o fim da rua, percebeu a presença de alguns carros de aparência elegante, largados em um amplo pátio de terra. Mais à frente, erguia-se, abaixo do céu estrelado, uma edificação de cor púrpura, com fachada de vidro que refletia a fase minguante da lua. A boate Lux era imponente, o que aumentava a sensação de erro daquele seu ato.

Estacionou o carro e encostou-se no volante, com aquela palavra, doendo em sua consciência, como se fosse uma luz que encarara por tempo antes de fechar os olhos.

E a cada piscada, ela retornava, como se tatuada em suas pálpebras.

Erro.

Erro.

Erro.

"Erro mesmo é eu estar casado." Pensou Fernando. E saiu do carro. 


PerjúrioWhere stories live. Discover now