Prólogo

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O Último Oráculo de Melkat saltou do barco e enterrou os dedosna areia fina da praia. Colocou uma mão sobre os seios e, de olhosfechados, suspirou uma prece de agradecimento. Não ouviu resposta.Os espíritos estavam tão maravilhados quanto os próprios filhosde Melkat. 

Com um sorriso no rosto, o oráculo respirou fundo. Sabia que aliseria seu lar por muitos anos. Pelo menos até o momento de retornarpara casa. 

À sua volta centenas de pessoas desembarcavam para a água e aareia, gritando agradecimentos aos Azanzi e ao oráculo que os guiara.Cantavam e dançavam provocações ao demônio do Império deDiamante que ficou para trás e os expulsou de seu lar. 

Quantos morreram lutando contra a invasão de Melkat? Quantosmorreram durante a travessia para o sul, fugindo de Myambe? 

Mas, enquanto os filhos da Dinastia Melkat abandonaram paratrás suas cidades e seus líderes, a Dinastia não os abandonou. O orá-culo podia sentir que havia naquela terra algo poderoso, talvez aindamais poderoso que o próprio deus-vivo ou os Azanzi que falavamem seu ouvido. Sentia algo sob o mar, onde seus irmãos e irmãsjuravam ter visto peixes com braços e pernas, e no céu, onde umadas três estranhas torres que emolduravam a baía alcançavam muitomais alto do que qualquer construção de Myambe. Sentia, também,algo se aproximando. O que era essa vibração sob seus pés, comose alguém tocasse o maior e mais poderoso tambor jamais criado,como se montanhas caminhassem sobre a terra? 

– Pelo jeito vocês estavam certos. 

– Está falando com quem, mamãe? 

O oráculo sorriu, colocando a mão na cabeça do filho. Ele abraçavasua perna, incerto se deveria ou não comemorar, enroscando-seà saia colorida. Estava comendo uma fruta laranja e amarela quealguém tirou de uma das árvores que margeavam a praia. 

– Ninguém importante – ela disse, sabendo que era mentira.Todos sabiam e isso era visível nos olhos de cada um deles, passandoao seu lado, curvando a cabeça, evitando olhá-la nos olhos comuma mistura de agradecimento e medo. 

Assim como no barco, ouviu os sussurros em seu ouvido.Enquanto antes haviam guiado os navios até esta terra, desta vezalertavam que alguém estava vindo encontrá-la. 

Sentiu uma mão tocar seu rosto, guiá-la a virar-se na direção datorre mais ao sul, sobre a encosta rochosa de uma colina. Viu a comitivadescendo até a praia. 

Os guerreiros de Melkat gritaram momentos depois. Pegavamseus escudos, espadas e lanças e tentavam se agrupar enquanto unspoucos recuavam para proteger as crianças. Sem ninguém precisarcomandá-los, formaram uma barreira entre a comitiva e o oráculoescolhido durante a travessia. Ao seu lado seu filho agarrou-se maisforte à sua perna. Tinha deixado a fruta cair na areia. Ainda tãojovem, ele tinha visto o que o Império de Diamante era capaz defazer. 

Em seu ouvido havia sussurros irritados, nervosos. Matem-os, diziamalgumas vozes. Fujam, diziam outras. O último oráculo balançou a cabeça. 

– Deixem-nos passar. 

Uns poucos soldados olharam para trás, mas ninguém questionou.Abriram a formação, criando um corredor de armas e escudospara que a comitiva se aproximasse. 

Ao seu lado, seu filho chorou e escondeu o rosto na saia da mãe.O oráculo não podia discordar da reação do filho. A comitiva nãoera formada por pessoas, mas por... algo diferente.

Seis criaturas se aproximaram, vestidas com túnicas e saias coloridas,as cabeças alongadas cobertas por capuzes e elmos. Eram altasdemais, muito mais altas do que qualquer um dos filhos de Melkat,mas, mesmo assim, muito magras. Sua pele era cinza como os restosde uma fogueira e seus rostos como os de um demônio.Em seu ouvido os sussurros se tornaram mais intensos, mais desesperados,mais furiosos.

 – Os Azanzi não gostam de você. 

O líder entre as criaturas, aquele diante do grupo, olhou à suavolta, curioso. 

– Esse é o nome de seu povo? Azanzi?

Os filhos de Melkat chiaram e cuspiram no chão, furiosos com aafirmação. O oráculo sorriu. 

– Dizer o nome dos Azanzi traz má sorte. 

– Mas você pode fazê-lo. 

– Fui escolhida para ouvi-los. 

– Foram eles que a ensinaram a falar a língua panjek? 

Panjek. Era esse o nome deste povo? O oráculo olhou à sua volta. A sensação de que algo grande e poderoso se aproximava era aindamais forte agora. Os Azanzi sussurravam em seu ouvido, todos juntos.Era difícil concentrar-se em ouvir apenas um. 

– Isso e muitas outras coisas, como o fato de que você também éum estrangeiro nesta terra. 

Os olhos púrpura do líder panjek arregalaram-se de surpresa. Osoutros não reagiram da mesma forma. Pareciam tão apreensivosquanto os próprios Melkat. 

– Quem é você? – ele perguntou. 

– Meu nome pertence somente a mim. Sou o último oráculo daDinastia Melkat. 

Então, contra tudo o que diziam os Azanzi ao pé de seu ouvido,contra tudo que vira em seus anos em Melkat, o último oráculoaproximou-se do líder panjek e curvou-se diante dele, caindo dejoelhos. 

– Em nome de meu povo peço asilo em sua cidade. 

Por um longo momento havia apenas o som das ondas batendoda praia. Então o panjek falou. 

– E o que nós ganhamos com isso? 

O oráculo sorriu. Levantou a cabeça, olhando diretamente nosolhos do panjek. 

– Nós somos capazes de fazer algo que vocês não podem. Algoque você deseja muito. 

– O quê? 

– Sonhar. 

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