Caput Primum (Cortese)

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Cortese

Eu não sei por que as pessoas não acreditam nas coisas que não veem, quando era mais nova, achava esse tipo de descrença uma ofensa à própria fé, várias coisas maravilhosas estão espalhadas por toda parte e ninguém se dá o trabalho de prestar atenção. Tudo sempre está tão óbvio, que quando você percebe que deixou passar, fica furioso. Vampiros, lobisomens, sereias, demônios, anjos... Eles sempre estão e estarão por aí, basta um pouco de atenção para notar sua verdadeira essência.

Sempre fui curiosa, sempre fui do tipo que enfiava o nariz onde não era chamada e continuava lá até o fim. Alguma pessoa do meu passado odiava que eu fizesse isso, mas, mesmo com muito esforço, não consigo lembrar dela. Perdi as contas das vezes que eu estava com um livro proibido, escondida em algum canto, saboreando cada página. Era mágico. Todas as criaturas espalhadas por todos os lugares, cada uma delas tinha algo que mudava tudo. Mas, modéstia parte, os anjos sempre foram os mais fascinantes. Desde a forma como eram criados até as partes mais assustadoras.

Muitos acreditam que os humanos foram criados pelo sopro divino de Deus, isso é verdade. Com os anjos não foi tão diferente, a melodia do canto de Deus os criou, algo tão poderoso, tão forte, não poderia ser dado a uma criatura livre, então eles foram criados. Desde sempre existiram anjos da guarda, anjos da morte, cupidos e todas as outras definições, mas os mais poderosos eram os arcanjos, estes eram criados por melodias longas e cheias de poder. Mais poderosos que estes, eram os irmãos. O poder era demais para ficar em apenas um anjo, e assim, os irmãos eram criados. Comuns são os gêmeos, quer dizer, não tão comuns assim, mas os mais simples desta raça. Os mais conhecidos são Gabriel, Uziel, Miguel, Rafael e Lúcifer, também os mais poderosos.

Anjos não tem livre arbítrio como os humanos, eles são monitorados praticamente a cada segundo, um simples deslize e são punidos de maneiras que variam pela gravidade do ato. Para casos mais simples, eles são proibidos de irem à Terra. Algumas vezes são rebaixados de cargo, mesmo que eu nunca tenha visto um arcanjo virar um anjo da guarda. Em casos mais graves, o anjo é preso em algum lugar e só pode ser solto com alguma condição quase impossível. O pior de todos os castigos é ter as asas arrancadas e se transformar, automaticamente, num anjo caído.

Bem, esse foi o meu caso.

Abri os olhos e varri ao redor de mim, tudo estava normal. Grande diferença. Movi minhas mãos só para sentir meus dedos, as correntes já não incomodavam há algumas décadas.

É, eu acho.

Levantei a cabeça e fitei o teto da tumba, não estava muito diferente do que ontem, antes de ontem, semana passada, mês passado... Céus, há quanto tempo eu estava aqui?

O que estava acontecendo? Nada.

Um rato passava por alguma parte da tumba, eu conseguia ouvir o barulho das pequenas patas se movendo, não sabia qual era, alguns dias atrás havia apelidado carinhosamente de Valerie, uma ratinha qualquer – nunca soube se era, de fato, fêmea –, mas na mesma rapidez, minha adorável companhia virou o jantar de uma cobra – não tão simpática quanto Valerie.

Eu não sabia que horas eram, é dificil tentar se guiar pela luz quando se está presa numa tumba. Aqui sempre era escuro e eu tinha a impressão de ser gélido tambem, mesmo sabendo que nenhuma corrente de ar atravessava o local, além de tudo, era solitário. Nada diferente de como sempre era. Eu não sei se foi por pena dos outros ou se realmente é assim, mas a partir do momento que me prenderam aqui, eu fui obrigada a parar de sentir coisas, como fome ou calor, dor de cabeça ou vontade de fazer algo – tirando, claro, minha vontade eterna de sair dali.

Nos primeiros anos, eu ainda esperava que alguém aparecesse, que algum ser me tirasse daqui... Não é fácil assim, desde a queda, eu não tenho onde depositar algum pingo de esperança.

Mortiferum ParadisoWhere stories live. Discover now