Textão

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"Foi naquele domingo que desistimos de um modo irremediável

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"Foi naquele domingo que desistimos de um modo irremediável. Não aconteceu nada demais, não houve uma discussão, ninguém fez uma merda imperdoável. Foi só que... Nós simplesmente perdemos o interesse. É claro, até certo ponto, levamos isso do modo mais gentil possível. Deve ser só uma fase, eu pensava. Mas naquele domingo largamos mão desse esforço. Eu posso ao menos carregar esse orgulho de quem tentou. Foi você quem desmarcou em cima da hora como quem já nem contava mais com esse compromisso. E, de fato, cada vez mais fazíamos planos sem qualquer pretensão de torná-los reais, era apenas um modo de afirmar uma tentativa. Vamos marcar, vamos mesmo. Nossa vontade não ia além do discurso, a preguiça era recíproca e sintomática. Ainda assim, naquele domingo acreditei que seria possível. Ai, eu tô muito enrolada com o mestrado e sair de casa com essa chuvinha... Três horas depois respondi 'beleza, a gente marca outro dia'. Alguns minutos depois vi a foto. Sua cara com um sorriso idiota apoiada em um joelho peludo com aquela legenda preguicinha de domingo (emoji de coração). Tive nojo do quanto poderia te odiar."

Tomanocu.

Eu só pude pensar isso depois daquele textão. A Lucia sempre me mandava textões e áudios de quase dez minutos. E é por causa desse textão que eu estou aqui. Eu saí da terapia embaixo de uma chuva bíblica. O Whats, turu-turu. O Leo me esperando no estacionamento do shopping. Eu tinha tido a conversa séria com ele há três dias. Chegou o táxi.

Eu estava casada com o Leo há cinco anos e fazia terapia há quatro. Ou seja, eu passei pelo menos três anos louca, histérica e deprimida durante o processo inicial da análise. O Leo sempre foi um anjo comigo. Naquele domingo eu contei para ele que finalmente eu tive coragem de assumir para mim mesma que eu sempre fui bi. Ele meio que ficou em choque.

Desculpe. Tudo aconteceu tão rápido que eu nem me apresentei: Laura, 39 anos até hoje à tarde. Eu não sei bem como cheguei nesse ponto. Você deve sofrer com a mesma dúvida, talvez.

Eu estava onde? Ah, no táxi, depois da terapia. Eu reli o textão da Lucia dentro do táxi; ainda estava de cabeça cheia... Eu conheci a Lucia no Tinder três meses atrás. A Lucia foi minha primeira mulher. "Pode fumar aqui? Dá pra fumar aqui?", eu perguntei ao taxista. Ele deixou porque ele também fumava. E ficamos eu e ele imersos naquela névoa.

Eu achei que ia ser mais fácil com a Lucia que com o Leo, então eu contei para a Lucia primeiro. Sei lá, a Lucia já era gay. O Leo, não. Então o Leo pareceu entender. A Lucia, não. Naquele domingo que eu contei para o Leo chovia como hoje, biblicamente. Numa tarde preguiçosa de namoricos eu contei para ele que eu era bi e que eu estava saindo com uma mulher. Claro que eu disse para ele o quanto eu o amava. Ele ficou um pouco baratinado. A gente teve um pouco de discussão. Mas o Leo é o Leo, canceriano. E eu era eu, ariana. E a Lucia é a Lucia, escorpião. Não, eu não pensava em nós três juntos, nem tive tempo para isso. Eu contei isso para ele e ele me abraçou. Estávamos sentados no nosso sofá do amor. Eu me senti aliviada, deitei no colo dele e postei minha selfie de cara no joelho peludo. Porque eu estava feliz. Porque eu estava preguiçosamente deitada no joelho do meu homem.

Na noite anterior eu estava com a Lucia. A gente estava num bar e ela quebrou o copo no chão. Havia fúria em suas narinas dilatadas, mas doçura em seu olhar; eram informações conflitantes sobre seus sentimentos. Ela me beijou com a boca quente e pediu outro copo ao garçom.

Desde aquele sábado eu não falo com a Lucia. Desde aquele domingo eu não troco muitas palavras com o Leo. Eu estava apreensiva quando cheguei no shopping. E lá estava o Leo. E lá estava a Lucia. Lado a lado. Era para eu escolher um ou outro naquele estacionamento vazio?

"Li o textão da Lucia", ele falou primeiro.

"Curti a foto do joelho do Leo", ela completou.

E isso é tudo o que eu sei antes de vir para cá. Eu não consigo lembrar o que aconteceu entre segunda e quarta-feira, muito menos o que aconteceu ao longo desta tarde. Eu estava no táxi. Eu estava relendo o textão. Eu estava no estacionamento vazio do shopping. Agora, no purgatório com você.

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