Capítulo Único

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A maré alta batia com destreza sobre os pés da pequena cabana feita de madeira. O vento soprava à janela do lugar onde o casal se escondia, impossibilitados de fugir da tempestade. Os gemidos repletos de dor da mulher padecida à cama mal podiam ser ouvidos do lado de fora. O marido, similarmente exasperado, abraçava a mulher na tentativa de acalmá-la. Toda a expectativa reunida para o momento se esvaiu quando no meio da tormenta, a mulher resolvera dar a luz. Já não aguentava mais tanto sofrimento, desejava que toda a dor fosse embora e pudesse ver o rostinho de seu primogênito. Seu tão aguardado filho. É claro, as condições em que se encontravam não ajudariam o parto difícil.


Com as Graças de Deus, após os oitenta minutos mais longos e doloridos de ambas as vidas ali presentes, a tempestade cessou. O recém-nascido havia chegado ao mundo. A calmaria reinava do lado de fora, a felicidade estava estampada nos rostos do casal, que agora eram pai e mãe. Contemplavam seu pequeno menino em seus braços. A perseverança do casal havia valido a pena.


"Seu nome será Kai", disse a mãe. "Serás bravo e destemido como o oceano".




O garoto subia apressadamente os degraus de concreto mal feitos, indo em direção à sua casa, no alto do morro. O caminho era estreito e mal iluminado, o que dificultava sua visão quando anoitecia. As corridas e saltos entre os degraus faziam com que a pesada mochila escorregasse por seu ombro, o garoto tornava a ajeitá-la desastrosamente enquanto chegava ao fim de seu trajeto. Kai completava dezessete anos naquele mesmo dia, e não era comum um garoto da sua idade se dedicar aos estudos como ele mesmo fazia. As condições de vida não eram as melhores para qualquer morador da Rocinha, mas Kai era determinado. No semestre passado havia ganho uma bolsa de estudos numa escola em São Conrado, teria de mostrar seu merecimento.


Passara as tardes trabalhando na padaria de Seu Manoel para ganhar uma renda extra e ajudar a família. O mais velho ─ dono do estabelecimento ─ incentivava os estudos de Kai, dizia que se acreditasse, o garoto realizaria o sonho de se tornar médico. No período noturno, Kai se aproximava de concluir o último ano do ensino médio. Ansioso para ver os pais e seus três irmãos menores, Kai entrou pela porta de madeira da casa e se dirigiu até a cozinha. A família costumava se alegrar nas datas comemorativas, no entanto, a sexta-feira que findava naquele momento era totalmente incomum.


A casa pequena e velha estava movimentada, diferente de todos os outros dias. Kai viu os três irmãos sentados à mesa aos prantos, seus primos os consolavam e logo Clara levantou-se para abraçá-lo apertado. O garoto se perguntara o que estaria acontecendo. Soltou-se dos braços da prima e foi até a sala-de-estar em busca de sua figura maternal. Chegando ao local, pôde fitar sua mãe, abraçada à sua tia. Lágrimas gordas caiam de seus olhos com uma rapidez indescritível. Não soubera descrever a dor que sentira ao presenciar o estado de sua mãe, e tampouco, a dor de minutos à frente quando recebeu a notícia da morte de seu querido pai.


Passara a noite em claro, com a mente à milhão, não conseguira pregar os olhos por um minuto sequer. Três tiros na nuca. Três. O número que tirou a vida de seu progenitor pelas mãos de um policial que o confundira com um traficante. O que seria da vida de Kai? Como seguiriam dali em diante? Quão injusta e lastimável se tornara a vida de um jovem rapaz que sempre tivera tão pouco e sonhava em dar tanto para quem mais lhe importava, sua família.


Sete meses passaram a datar do falecimento do patriarca da família Oliveira. Carlota se afogara num abismo infindável, toda a alegria que antes a integrava dissipou-se pelo vento. Parou de trabalhar, de se alimentar, de trocar suas vestes... Com o tempo mal se levantava da cama. As crianças perderam toda sua energia, murcharam tal como um girassol no gélido inverno. Kai tentava ser forte e se manter firme e onipresente como o oceano, porém, se entristecia ao acordar todas as manhãs e lembrar-se de que havia largado os estudos para que pudessem ter o que comer em casa.


Lamentoso, Kai descontava toda sua amargura e tristeza no fumo. A erva viçosa tornara-se sua companheira preferida quando necessitava de conforto. Sentia-se leve, como se pudesse fluir livre numa rajada de ar. Sua vida tornara-se uma ilusão fantasiosa, a liberdade lhe estendia os braços para um abraço apertado. Toda a mágoa em seu coração zarpava para longe.


Por vezes se deixara levar ao que era atraente aos olhos. Chegou ao ponto de assaltar pessoas inocentes para ter um tostão extra. Andava armado sempre que saia de casa. Parou instantaneamente no lugar onde estava e perguntou-se onde estaria o Kai de antigamente. A respiração congelada, os batimentos cardíacos desacelerados, as pupilas dilatando-se. Kai finalmente percebera o que fizera de tão errado. Usara tudo o que sucedera como escapatória para seus problemas, em vez de usá-los como alavanca para ultrapassar os limites que lhe foram impostos.


Ele mudaria, estava determinado. Com bravura e destemor encararia sua realidade e bateria de frente com ela. Que criança covarde havia sido. Não deixaria seu medo dominá-lo novamente! Apertou o passo, saltava os degraus e vez por outra pulava dois. O caminho corriqueiro pelo morro da Rocinha lhe rendera condicionamento físico, não demoraria um instante para chegar à sua humilde morada.


Mas, assim como em seu aniversário anterior, teve uma surpresa logo que abriu a porta da frente. O mais velho de seus irmãos menores expressava um rosto de completo desespero, arrastou-o para dentro pela mão e levou-o até sua mãe, Carlota, desacordada no chão. Não pensou duas vezes, saltou porta a fora em busca de ajuda. Gritava, esperneava, sentia suas cordas vocais vibrando garganta abaixo como se pudessem romper a qualquer momento. Tomou impulso e moveu suas pernas o mais rápido que podia, corria na velocidade da luz. Sentia seus pulmões ardendo ao inflarem, os músculos da panturrilha e da coxa se contraíam pela força exercida sobre eles.


Sua mente mal conseguia raciocinar. Olhava ao seu redor e não via ninguém, apenas a luz da lua o iluminava àquela hora. Passavam das três da matina, as pouquíssimas pessoas se locomovendo próximo à Estrada da Gávea não estavam dispostas a ajudar. Estava preocupado, revoltado. Os moradores daquela região do morro não possuíam carro. Seguiu à frente dando tudo de si, esforçando-se ao máximo, seu corpo já estava chegando ao limite. Avistou um posto de gasolina ao longe. "Eu não posso fazer isso, não mais" lembrou-se da promessa que havia feito a si mesmo. Também não poderia deixar sua mãe morrer, não perderia mais ninguém injustamente. Aquela seria a última vez.  Que cometesse então, um último erro em sua vida, mas este com a melhor intenção de todas. Viraria tudo de cabeça para baixo, ajeitaria as coisas a partir daquele momento.


Vestiu o capuz de seu moletom grosso e posicionou a arma que carregava consigo. Aproximou-se cautelosamente do posto de gasolina, viu um carro estacionar e um homem saltar para fora com um sorriso no rosto. Aquela seria sua vítima... Infelizmente. Apressou-se, que terminasse com aquilo logo. Estendeu a mão armada em direção ao peito do moço, anunciou o assalto. Pedia grosseiramente que entregasse a chave, olhava para os lados, tão como a arma que seguia sua visão. Queria agilidade, estava com pressa. Precisava do carro para levar sua mãe ao hospital. Estava nervoso, não queria precisar fazer aquilo. Pensava a todo o momento em sua mãe.


Então, de repente, seus ouvidos tamparam-se num ruído agudo que percorria seu corpo. Não teve tempo de reagir. Escutou três estrondos ao longe dançando entre as ondas sonoras. Sua visão ficara turva. Três tiros disparados. Três.


Cambaleou, sentiu um liquido quente escorrer por seu rosto, o gosto metálico de sangue surgindo em sua boca.


Três.


A fraqueza tomava conta de seu corpo por inteiro. Uma dor violenta revelou-se em suas costas, peito e cabeça. Estava caído no chão.


Três.


Ouviu o som das ondas do mar, estava ficando inconsciente. Memórias lhe invadiram. Bons momentos de sua infância, o rosto de seus pais, o nascimento de seus irmãozinhos.


Três.


Risos, vozes, cenas felizes. Todas as boas pessoas que passaram por sua vida. O primeiro cachorro, o primeiro amigo, a primeira namorada. O barulho constante do mar aos seus ouvidos. Uma visão esbranquiçada e cada vez inferior.


Três.


Já não respirava mais. Já não sentia mais. Seu coração cessava os batimentos. Seu cérebro entrava em colapso. Sonhava, era o mais bonito sonho de sua vida ─ ou o que restava dela. Seus sete minutos finais. Repentinamente, tudo havia acabado.

TrêsWhere stories live. Discover now