Brincando na chuva

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Eu tenho 15 anos, gosto de ficar com as crianças da rua porque dentro de casa é um inferno. Desde que minha mãe morreu, quando eu tinha 11 anos, meu pai bebe todo dia e muitas vezes tenho que buscá- lo no bar do Zé. Quando começa a anoitecer e papai não aparece em casa, já sei que devo ir ao seu encontro. Mas adio isto o máximo que posso, pois sei que quando eu for até o bar, as crianças terão que entrar pra suas casas e não poderão sair a noite. Então aproveito ao máximo cada minuto para conversar e brincar. Muitas vezes penso que já sou velho demais para brincar, deveria estar estudando ou andando com pessoas da minha idade. Mas na minha rua só tem gente mais nova, depois de mim só tem a Shaen de 14 anos. Na escola tenho alguns amigos mais velhos, mas só falo com eles pelo Whats ou face e faz uns meses que meu pai não paga a internet, não sei como ainda tem luz em casa. Os programas da TV são escrotos. Algumas vezes a vó da Shaen me convida pra jantar e depois que ela assiste à novela a gente vê um filme. Na rua gostamos não só de brincar, mas também de conversar, falar mal de algumas pessoas do bairro, e também do nosso grupo de leitura, que também ficou um saco depois que o irmão pirralho da Emily entrou, pois ele lê muito devagar e a cada frase para a leitura pra perguntar: - Que palavra é essa?
Eu gosto quando a irmã do Iker participa, ela está sempre lendo algo diferente, não só as merdas que tem na biblioteca da escola. E também algumas vezes ela mesma escreve, então a leitura fica realmente diferente. A Emily lê sempre uma poesia ou algo assim, daí sempre sabemos o que esperar quando ela começa a ler.
A minha casa não tem sido um ambiente legal para convidar alguém a entrar, não tenho internet, nem TV a cabo, nem DVD, para olhar filmes ou séries. Mas sei que o pessoal da minha rua encontraria algo para se divertir lá em casa. A questão é que a casa está sempre suja, meu pai não faz nada. Eu limpo a casa, mas também não sou bom nisso. Minha mãe é que limpava a casa, e nos últimos anos a casa virou um lixo. Até a vó da Shaen que é a mais liberal não deixa mais ela ir lá em casa, por que teve um dia que meu pai bebeu tanto e não quis vir embora. Daí o Zé teve que me ajudar a trazer ele pra casa, e eu fiquei com raiva e vergonha disso. Então na frente do portão eu larguei meu pai com o Zé e entrei chorando. A vó da Shaen viu tudo e não deixou mais ela entrar, disse que meu pai pode ficar agressivo qualquer dia. Ainda bem que ela sabe que é ele quem bebe, e eu não tenho culpa disso. É difícil ter que aguentar o olhar dela pra mim sempre como se tivesse pena, como se eu fosse um órfão. Aliás, sou um órfão de mãe, e logo serei também órfão de pai se ele continuar a beber desse jeito.
O que me consola é que não sou o único que tem esses problemas em casa. Aqui o pessoal adulto bebe muito. Tenho nojo até do cheiro do álcool que fica impregnado no meu pai.
Por algum motivo ele também tem nojo de mim, ou raiva, ou remorso. Simplesmente diz que sou igual a minha mãe, tanto nas qualidades quanto nos defeitos. Não costumo questionar isto, já que quase sempre ele está bêbado e uma discussão seria insuportável.
Outro dia gritou na frente da casa: - Não pense que sua mãe era uma santa! Eu sei que ela não era santa, mas também sei que odeio que falem dela! Fiquei furioso com isto, estava chovendo mas saí mesmo assim. Os gêmeos não são legais pra conversar nesse caso, pois seus pais questionam demais. Então chamei a Chaen e a vó dela deixou a gente ficar conversando na área. Não falamos sobre meu pai, nem minha mãe, simplesmente conversamos sobre qualquer coisa e isto já me ajudou a esquecer um pouco a discussão com meu pai. Ficamos alguns minutos com os cotovelos apoiados nos joelhos, vendo a chuva cair na terra, e tudo virando um lodo avermelhado.

O Jardim Da Srta KinWhere stories live. Discover now