7 - DE NOVO AS MINAS DE DIAMANTES

51 2 0
                                    

Quando Sara entrou na engalanada sala de aulas, fê-lo à cabeça de uma espécie de procissão. Miss Minchin, no seu melhor vestido de seda, conduzia-a pela mão. Um criado seguia-as, carregando a caixa contendo a Última Boneca, uma criada transportava uma segunda caixa e Becky fechava o cortejo, levando uma terceira caixa e vestindo um avental limpo e uma touca nova. Sara teria preferido entrar na sala da forma habitual, mas Miss Minchin mandara-a chamar e, depois de uma conversa na sua sala de estar privada, expressara os seus desejos.
– Não é uma ocasião normal, por isso não pretendo que seja tratada como tal – referiu MissMinchin.
Assim, Sara foi conduzida até à sala de um modo grandioso e sentiu-se embaraçada quando, à sua entrada, as raparigas mais velhas a fitaram e se acotovelaram umas às outras, com as mais pequenas a começarem a agitar-se alegremente nos seus lugares.
– Silêncio, meninas! – ordenou Miss Minchin perante o burburinho que se gerou. – James,pouse a caixa em cima da mesa e tire-lhe a tampa. Emma, coloque a sua numa cadeira. Becky! – chamou de repente, num tom severo.
Contagiada pela agitação, Becky esquecera o que devia fazer e estava a sorrir para Lottie, que se remexia, de tanta expectativa. A reprovadora voz sobressaltou-a de tal modo, que quase deixou cair a caixa que segurava, e a vénia assustada que fez, em jeito de desculpa, saiu-lhe tão desajeitada que Lavinia e Jessie se riram à socapa.
– Não estás aqui para olhar para as meninas! Que disparate! Pousa a caixa! – ralhou MissMinchin.
Becky obedeceu com uma diligência alarmada e recuou às pressas para a porta.
– Podem retirar-se – anunciou Miss Minchin para os criados, com um aceno de mão.
Becky desviou-se respeitosamente para deixar passar primeiro os criados seus superiores. Não pôde deixar de lançar um olhar anelante à caixa que estava em cima da mesa. Por entre as pregas de papel de seda espreitava qualquer coisa de cetim azul.
– Eu gostaria que a Becky ficasse, se faz favor, Miss Minchin – disse Sara, de repente.
Foi um ato ousado da sua parte. Miss Minchin foi traída por um pequeno estremecimento.
Empurrou os óculos pela cana do nariz e contemplou a sua aluna- -modelo com perplexidade. – A Becky? Minha querida Sara! – exclamou Miss Minchin.
Sara deu um passo na direção dela.
– Gostaria que ela ficasse porque sei que gostará de ver os presentes. Tal como nós, é umacriança.
Miss Minchin estava escandalizada. Olhava ora para uma, ora para outra.
– Minha querida Sara, a Becky é a criada da copa. As criadas da copa não são... crianças.
Nunca lhe ocorrera, de facto, semelhante ideia. Para ela, as criadas da copa eram máquinas que carregavam baldes de carvão e acendiam o lume.
– Mas a Becky é, e tenho a certeza de que se divertirá. Por favor, deixe-a ficar, por ser omeu aniversário.
Miss Minchin respondeu com grande dignidade:
– Uma vez que é o seu aniversário, concedo-lhe esse desejo. Rebecca, agradeça a Miss Sarapela sua imensa amabilidade.
Encostada a um canto, Becky torcia a bainha do seu avental numa grande ansiedade. Avançou então, fazendo vénias, e, enquanto agradecia, com as palavras a atropelarem-se umas às outras, trocou com Sara um olhar de cumplicidade.
– Oh, miss! Muito obrigada, miss! Do fundo do coração! Eu queria mesmo muito ver a boneca, miss. Obrigada, miss. E obrigada também, minha senhora, por me permitir tomar esta liberdade – acrescentou, virando-se para Miss Minchin e fazendo uma vénia.
Miss Minchin acenou de novo com a mão, desta vez na direção do canto perto da porta.
– Vai para ali. Não te quero demasiado perto das meninas – comandou.
Becky regressou ao seu canto, com um sorriso nos lábios. Pouco lhe importava para onde a mandavam, desde que pudesse ter a sorte de ficar ali, ao invés de na copa, enquanto aquelas maravilhas decorriam. Nem sequer se importou quando Miss Minchin clareou a garganta ominosamente e voltou a pronunciar-se.
– Ora bem, meninas, tenho umas palavras para vos dirigir – anunciou ela.
– Oh, vai fazer um discurso! Quem dera que já tivesse terminado – sussurrou uma das raparigas.
Sara ficou bastante constrangida. Uma vez que era a sua festa, o mais certo era que o discurso fosse acerca dela. Não era agradável ser assim o centro das atenções.
– Como decerto as meninas sabem – começou o discurso, pois tratava-se de facto de umdiscurso –, a nossa querida Sara faz hoje onze anos.
– Querida Sara! – murmurou Lavinia.
– Várias das meninas aqui presentes também já fizeram onze anos, mas os aniversários daSara são bem diferentes dos das outras meninas. Quando ela for mais velha, será a herdeira de uma grande fortuna, que terá o dever de gastar de uma forma meritória.
– As minas de diamantes – gracejou Jessie, em voz baixa.
Sara não a escutou. Com os seus olhos cinza-esverdeados cravados em Miss Minchin, começou a sentir-se afogueada. Sempre que esta falava de dinheiro, Sara sentia que a detestava e, claro, era desrespeitoso detestar os adultos.
– Quando o seu caro papá, o capitão Crewe, a trouxe da Índia e a entregou ao meu cuidado– prosseguiu o discurso –, disse-me, num tom brincalhão: «Creio bem que ela virá a ser muito rica, Miss Minchin.» A minha resposta foi: «A educação que ela receberá no meu colégio, capitão Crewe, será digna da maior fortuna.» A Sara tornou-se a minha aluna mais notável. A forma como fala francês e dança são uma honra para o colégio. As suas maneiras, que vos levaram a apelidá-la de «princesa Sara», são perfeitas. A amabilidade que demonstra ao oferecer-vos esta festa não conhece limites. Espero que saibam apreciar a sua generosidade.
Quero que exprimam o vosso apreço dizendo todas juntas: «Obrigada, Sara!»
A sala em peso pôs-se de pé, como acontecera na manhã que Sara tão bem recordava.
«Obrigada, Sara!», disseram todas as meninas a uma só voz. Lottie, diga-se, pôs-se inclusive aos pulinhos. Sara ficou muito embaraçada por um momento. Em agradecimento, fez uma vénia muito bem executada.
– Obrigada por terem vindo à minha festa – disse ela.
– Que vénia tão bonita, Sara – elogiou Miss Minchin. – É o que uma princesa verdadeira fazquando a populaça a aplaude. Lavinia, o som que acabou de fazer não me pareceu nada bem – disse, com um olhar fulminante na direção dela. – Se tem ciúmes da sua colega, sugiro que exprima os seus sentimentos de uma forma mais graciosa e própria de uma senhora. E agora deixo-vos, para desfrutarem da festa.
Assim que Miss Minchin abandonou a sala, o feitiço que a sua presença tinha sobre as alunas quebrou-se. Ainda a porta não se tinha fechado por completo e já todas haviam abandonado os seus lugares. As mais pequenas pulavam ou precipitavam-se dos seus assentos e as mais velhas também não perderam tempo a desertar dos delas. Seguiu-se uma corrida às caixas. Sara curvara-se sobre uma delas com uma expressão de felicidade.
– São livros, tenho a certeza – declarou.
Entre as crianças mais pequenas elevou-se um murmúrio de desapontamento, e Ermengarde fez um ar chocado.
– O teu papá também te envia livros como presente de aniversário? Nesse caso, é tão horrível como o meu. Não abras, Sara.
– Eu gosto de livros – alegou ela, com uma gargalhada, mas virou-se para a maior de todasas caixas. Quando daí tirou a Última Boneca, esta era tão magnífica que as crianças sustiveram a respiração, de tão maravilhadas, e chegaram a recuar para melhor a observarem.
– É quase do tamanho da Lottie – fez notar uma delas.
Lottie bateu palmas e pôs-se a dançar e a dar risadinhas.
– Está vestida para ir ao teatro. O manto dela é debruado a arminho – comentou Lavinia.
– Oh, e tem um binóculo de teatro na mão! Azul e dourado – exclamou Ermengarde, precipitando-se para a frente.
– Aqui está a arca do enxoval. Vamos abri-la para ver as coisas dela – sugeriu Sara.
Sentou-se no chão e rodou a chave. As crianças aglomeraram-se em redor dela, em grande agitação e clamor, ao mesmo tempo que Sara ia abrindo os compartimentos e revelando o seu conteúdo. Nunca a sala de aulas testemunhara semelhante rebuliço. Havia golas de renda, meias de seda e lenços de assoar; havia um guarda-joias com um colar e uma tiara que pareciam mesmo feitos de diamantes verdadeiros; havia uma comprida pele de foca e um abafo, vestidos de baile e vestidos de passeio; havia chapéus e luvas e leques. Até Lavinia e Jessie se esqueceram de que já não tinham idade para gostar de bonecas e teceram exclamações de entusiasmo, pegando em coisas para as admirar.
– Imaginemos que ela compreende o que dizemos e se sente orgulhosa por ser admirada –aventou Sara, levantando-se e colocando um imponente chapéu de veludo preto na sorridente e impassível dona de todos aqueles esplendores.
– Estás sempre a imaginar coisas – respondeu Lavinia, com um dos seus ares de superioridade.
– Bem sei. Gosto de o fazer. Não há nada melhor do que fazer de conta. É quase como sefôssemos uma fada madrinha. Se imaginarmos uma coisa com todas as nossas forças, é como se fosse verdadeira – respondeu Sara, sem se deixar perturbar.
– É muito fácil imaginar coisas quando se tem tudo – fez notar Lavinia. – Serias capaz deimaginar e fazer de conta que eras uma pedinte e vivias numas águas-furtadas?
Sara parou de compor as penas de avestruz do chapéu da Última Boneca e fez um ar pensativo.
– Sim, creio que seria capaz. Se fosse uma mendiga, penso que teria de imaginar e fazer deconta a toda a hora, mas talvez não fosse fácil.
Mais tarde, Sara pensou muitas vezes em como fora estranho que, nesse preciso momento, Miss Amelia tivesse entrado na sala.
– Sara, o advogado do seu papá, o senhor Barrow, veio falar com Miss Minchin e ela temde conversar com ele a sós. Uma vez que o lanche será servido na saleta dela, é melhor virem lanchar agora, para que a minha irmã possa receber o senhor Barrow aqui na sala de aulas.
Um lanche era coisa que não se desdenhava em altura alguma, portanto, muitos pares de olhos cintilaram perante aquela sugestão. Miss Amelia mandou que se colocassem em fila, duas a duas, e liderou o desfile, com Sara a seu lado, deixando a Última Boneca sentada numa cadeira com as glórias do seu guarda-roupa espalhadas em seu redor: vestidos e casacos pendurados nas costas de cadeiras, saiotes e combinações debruados a renda estendidos nos assentos das mesmas.
Becky, que não participaria no lanche, cometeu a indiscrição de se deter por um momento para contemplar aquelas maravilhas; era de facto uma leviandade da sua parte.
– Volta para o teu trabalho, Becky! – ordenara-lhe Miss Amelia, mas Becky deixara-se ficarpara trás, para observar reverentemente primeiro um abafo e depois um casaco; e, enquanto os admirava, escutou Miss Minchin do outro lado da porta e, morrendo de medo de ser descoberta e acusada de tomar liberdades, correu para debaixo da mesa, onde ficou escondida pela comprida toalha.
Miss Minchin entrou na sala acompanhada por um senhor baixo, de feições severas e secas e com um ar perturbado. A própria Miss Minchin parecia incomodada e olhava para o cavalheiro com uma expressão irritada e curiosa.
Sentou-se com uma dignidade formal e acenou para uma cadeira.
– Faça favor de se sentar, senhor Barrow – disse.
O Sr. Barrow não se sentou de imediato. A sua atenção parecia ter sido atraída pela Última Boneca e pelo guarda-roupa que a rodeava. Colocou os óculos e contemplou tudo com evidente reprovação. A Última Boneca, contudo, parecia não se incomodar nem um pouco com isso. Sentada muito direita, limitava-se a devolver-lhe o olhar, com indiferença.
– Umas boas centenas de libras. Tecidos dos mais caros e tudo feito numa modista parisiense. Gastava dinheiro com liberalidade, não haja dúvidas – comentou o Sr. Barrow sem preâmbulo.
Miss Minchin sentiu-se ofendida. Tratava-se de um descrédito ao seu melhor mecenas, e de um abuso.
Nem mesmo os advogados tinham o direito de tomar liberdades.
– Lamento, mas não estou a entender, senhor Barrow – reclamou ela, num tom inflexível.
– Semelhantes presentes de aniversário para uma criança de onze anos! Uma extravagânciadesregrada, na minha opinião – explicou o Sr. Barrow, sem mudar de atitude.
Na sua indignação, Miss Minchin endireitou-se ainda mais na cadeira.
– O capitão Crewe é dono de uma grande fortuna – correu ela em defesa dele. – Só as minasde diamantes...
O Sr. Barrow deu então meia volta e virou-se para ela.
– Minas de diamantes! Pois sim... Não existem, nem nunca existiram!
Sobressaltada, Miss Minchin pôs-se de pé.
– Como? Que quer dizer com isso? – exigiu saber.
– Seja como for, seria bem melhor que nunca tivessem mesmo existido – respondeu o Sr.Barrow, com impertinência.
– Nunca tivessem existido? – papagueou Miss Minchin, agarrando-se às costas de uma cadeira com a sensação de que um magnífico sonho lhe escapava das mãos.
– Esta história das minas de diamantes é mais vezes motivo de ruína do que de riqueza –continuou o Sr. Barrow. – Quando um homem se vê nas mãos de um amigo chegado e não é ele mesmo um homem de negócios, o melhor que tem a fazer é manter-se longe das minas de diamantes, ou minas de ouro, ou de qualquer outro tipo de minas em que o seu dito amigo chegado pretenda que ele invista o seu dinheiro. O falecido capitão Crewe...
Desta feita, Miss Minchin interrompeu-o com uma exclamação:
– O falecido capitão Crewe! – gritou ela. – O falecido! Não veio com certeza dizer-me que o capitão Crewe...
– Faleceu, minha senhora – completou o Sr. Barrow, com uma brusquidão descortês. – Morreu de um misto de febre dos matos e preocupações financeiras. Talvez a febre não o tivesse matado, se as dificuldades financeiras não o tivessem conduzido ao desespero, e as dificuldades financeiras talvez não lhe tivessem ditado o final, se a febre dos matos não tivesse ajudado. O capitão Crewe está morto!
Miss Minchin tombou na sua cadeira, tomada de pânico pelas palavras do advogado.
– E quais eram as dificuldades financeiras do capitão? – inquiriu ela.
– Minas de diamantes e amigos chegados... e a ruína – respondeu o Sr. Barrow.
Miss Minchin ficou sem fôlego.
– Ruína! – balbuciou ela, num sussurro.
– Perdeu tudo, até ao último cêntimo. O capitão tinha demasiado dinheiro. O tal amigochegado falou-lhe entusiasticamente da mina de diamantes, garantindo que seria um êxito. Disse-lhe que investira todo o seu dinheiro no negócio e convenceu o capitão Crewe a fazer o mesmo. Um dia, o amigo chegado desapareceu... O capitão Crewe estava já atacado pela febre quando recebeu a notícia. O choque foi demasiado para ele. Morreu delirante, a chamar pela filha, à qual não deixou um tostão.
Miss Minchin compreendeu então o que acontecera, e nunca na vida recebera um golpe assim. A sua aluna-modelo e o seu melhor cliente, arrebatados assim de uma só penada.
Sentia-se como se tivesse sido ultrajada e roubada, e os culpados eram o capitão Crewe, Sara e o Sr. Barrow, em igual medida.
– Está a dizer-me que ele não deixou nada? Que Sara não herdará qualquer fortuna? Que a criança é uma pedinte? Que, em vez de uma herdeira, tenho aos meus cuidados uma mendiga?
O Sr. Barrow era um advogado astuto e achou melhor aproveitar o ensejo para deixar bem claro que não lhe podiam ser assacadas quaisquer responsabilidades.
– É sem dúvida uma pedinte e fica seguramente aos seus cuidados, uma vez que não se lheconhecem quaisquer parentes.
Miss Minchin deu uns passos em frente. Dir-se-ia que a sua intenção era sair porta fora e ir colocar um ponto final nas festividades que decorriam alegre e ruidosamente na sua sala de estar privada.
– É monstruoso! Ela está na minha sala de estar neste momento, vestida de seda e rendas dacabeça aos pés, a dar uma festa às minhas custas!
– Às suas custas, sem dúvida, minha senhora – reiterou o Sr. Barrow, com toda a calma. – A Barrow & Skipworth não se responsabiliza por nada. Nunca vi um homem perder toda a sua fortuna de uma forma tão rápida. O capitão Crewe faleceu sem liquidar a nossa última conta, e olhe que era choruda.
Miss Minchin virou as costas à porta, cada vez mais indignada. A situação era ainda pior do que qualquer um podia ter imaginado.
– Foi o que me aconteceu também! – gritou ela. – Sempre tão confiante nos pagamentos dele,dei-me a todo o tipo de despesas ridículas com a sua filha. Fui eu quem pagou aquela ridícula boneca e o seu excêntrico guarda-roupa. A menina deveria ter tudo o que desejasse. Tem uma carruagem e um pónei e uma criada, e desde o último cheque que ele me enviou, fui eu quem pagou tudo.
O Sr. Barrow, evidentemente, não fazia tenções de ficar ali a escutar as queixas de Miss Minchin, depois de ter tornado clara a posição da sua firma e relatado os factos de que estava encarregado. Não sentia nenhuma compaixão em particular por diretoras de colégios internos iradas.
– Será melhor não pagar mais nada, minha senhora, a não ser que queira oferecer presentesà jovem menina – aconselhou ele. – Ninguém se lembrará de si. Ela não tem um chavo a que possa chamar seu.
– Mas que hei de eu fazer? – perguntou Miss Minchin, como se achasse que era dever do Sr.Barrow remediar a situação.
– Não há nada a fazer. O capitão Crewe morreu. A criança não tem herança. Mais ninguém éresponsável por ela a não ser a senhora – respondeu o Sr. Barrow, dobrando as hastes dos óculos e guardando-os no bolso.
– Não sou responsável por ela e recuso-me a ser responsabilizada!
Miss Minchin ficou lívida de raiva.
O Sr. Barrow virou-se para partir.
– Nada tenho que ver com isso, minha senhora. A Barrow & Skipworth é totalmente alheia atudo isto. Lamentamos muito o sucedido, é claro – disse ele, com grande indiferença.
– Se acha que ela me será impingida a mim, está muito enganado. Fui enganada e roubada.
Pô-la-ei no olho da rua! – barafustou Miss Minchin.
Se não estivesse tão furiosa, a circunspeção não a teria deixado dizer semelhante coisa. Porém, via-se sobrecarregada com uma criança educada de forma extravagante pela qual nunca nutrira grande simpatia, e por isso perdera o autocontrolo.
Impassível, o Sr. Barrow dirigiu-se para a porta.
– Se fosse a si, minha senhora, não o faria. Não será bem visto. Não quererá uma históriatão desagradável associada ao seu estabelecimento. Aluna posta na rua sem dinheiro e sem família.
Era um homem inteligente e sabia do que falava. Sabia também que Miss Minchin era uma mulher de negócios e seria suficientemente astuciosa para ver a razão. Não se podia dar ao luxo de praticar um ato que levasse as pessoas a descrevê-la como cruel e impiedosa.
– Melhor será mantê-la e pô-la a bom uso. É uma criança inteligente, segundo julgo saber.
Poderá prestar-lhe bons serviços quando crescer – acrescentou ele.
– Pô-la-ei a bom uso antes mesmo de ela crescer! – exclamou Miss Minchin.
– Estou certo que sim, minha senhora – concordou o Sr. Barrow, com um sorriso sinistro. –Estou certo que sim. Tenha um bom dia!
E, com uma vénia, saiu e fechou a porta. É preciso que se diga que Miss Minchin ficou uns momentos a dardejá-la com o olhar. O que ele dissera era a mais pura das verdades, e ela sabia disso. Não havia como remediar a situação. A aluna que fora o exemplo e o orgulho do colégio não passava agora de uma criança reduzida à miséria e sem família. E o dinheiro que avançara em nome dela estava irremediavelmente perdido.
Ali de pé, ofegante perante a monstruosa injustiça de que se via vítima, chegaram-lhe aos ouvidos as vozes alegres das crianças, vindas da sua sala de estar privada, de que abdicara em prol da festa. A isso pelo menos podia pôr termo de imediato.
Ao avançar para a porta, esta abriu-se e Miss Amelia entrou. Ao avistar a expressão alterada e furiosa da irmã, deu um passo atrás, alarmada.
– Que se passa, mana? – indagou.
Miss Minchin respondeu num tom quase feroz:
– Onde está a Sara Crewe?
Miss Amelia estava perplexa.
– A Sara? Está com as restantes crianças na sua saleta, é claro – gaguejou.
– Ela tem algum vestido preto no seu sumptuoso guarda-roupa? – inquiriu Miss Minchin,com uma amarga ironia.
– Um vestido preto? – voltou a tartamudear Miss Amelia.
– Ela tem vestidos de todas as cores. Pergunto se tem algum preto.
Miss Amelia começou a empalidecer.
– Não... sim... tem! Mas está-lhe muito curto. Tem um vestido de veludo preto, mas já lhefica pequeno.
– Vá dizer-lhe que dispa aquele ridículo vestido de seda cor-de-rosa e vista o preto, estejaele como estiver. Acabaram-se os enfeites!
Miss Amelia começou então a torcer as suas mãos sapudas e a chorar.
– Oh, mana! – fungou. – Oh, mana! Que aconteceu?
Miss Minchin não desperdiçou palavras:
– O capitão Crewe morreu, sem um vintém. Aquela criança mimada, mal habituada e caprichosa ficou na miséria, e nas minhas mãos!
Miss Amelia sentou-se pesadamente na cadeira mais próxima.
– Centenas de libras gastei eu em ridicularias para ela, e nunca verei nem um cêntimo devolta. Ponha termo àquela disparatada festa e mande-a mudar de vestido neste instante.
– Eu? Tenho mesmo de ir dizer-lho agora? – inquiriu Miss Amelia, em voz baixa e respirando com esforço.
– Neste instante! Não fique aí especada como uma palerma! Vá! – foi a resposta feroz queteve.
A pobre Miss Amelia estava habituada a ser tratada assim. Sabia que a inteligência não era o seu maior trunfo e que as pessoas como ela eram frequentemente encarregadas das tarefas mais desagradáveis. Era um pouco embaraçoso entrar numa sala cheia de crianças bemdispostas e dizer à anfitriã da festa que se transformara de repente numa pequena pedinte e que tinha de ir ao quarto vestir um velho vestido preto que lhe ficava demasiado curto. Todavia, isso tinha de ser feito. Não era evidentemente a altura certa para fazer perguntas.
Esfregou os olhos com o lenço até ficarem encarnados e depois levantou-se e abandonou a sala, sem se atrever a dizer mais uma palavra que fosse. Quando a sua irmã mais velha ficava naquele estado de irritação, o mais sensato era obedecer às suas ordens sem fazer qualquer comentário. Miss Minchin pôs-se a andar de um lado para o outro da sala, falando sozinha sem dar por isso. Durante o último ano, a história das minas de diamantes fizera-a sonhar com todo o tipo de possibilidades. Até as diretoras de colégios podiam fazer fortuna em ações, com a ajuda e conselhos de proprietários de minas. Agora, em vez de ansiar por lucros, tinha de lamentar perdas.
– A princesa Sara, pois sim! Tem é sido adulada como se fosse uma rainha! – exclamou.
Passava junto à mesa do canto quando disse aquelas palavras e sobressaltou-se ao escutar uma fungadela ruidosa e soluçante vinda de debaixo da toalha.
– Que é isto? – inquiriu, zangada. A fungadela ruidosa e soluçante voltou a ouvir-se e MissMinchin inclinou-se e levantou a toalha. – Que audácia! Como te atreves? Sai já daí! – gritou.
Foi a pobre Becky quem gatinhou de debaixo da mesa. Trazia a touca inclinada para o lado e o rosto encarnado de reprimir o choro.
– Desculpe, minha senhora, sou eu. Sei que não devia estar aqui, mas estava a admirar aboneca, minha senhora, e fiquei cheia de medo quando a senhora entrou e por isso escondi-me debaixo da mesa – explicou ela.
– Então estiveste aí o tempo todo à escuta – disse Miss Minchin.
– Não, minha senhora, não estive à escuta. Ainda achei que conseguia escapulir-me, mas nãopude e tive de ficar, não estive à escuta, minha senhora, e não o faria por nada, mas não pude deixar de ouvir – protestou Becky, com muitas vénias e reverências.
De repente, foi quase como se tivesse perdido todo o medo da sua terrível patroa. Desatou em pranto.
– Oh, por favor, minha senhora, sei que irá pôr-me na rua, mas tenho tanta pena de MissSara, pobrezinha... Oh, que pena!
– Sai já daqui! – ordenou Miss Minchin.
Becky fez nova vénia, as lágrimas escorrendo-lhe pelas faces abaixo.
– Sim, minha senhora, é para já. Só queria perguntar-lhe uma coisa: Miss Sara sempre foiuma menina rica, habituada a ter quem a sirva. Que irá ela agora fazer sem criada, minha senhora? Se... se, oh, se a senhora, se faz favor, me deixasse ser criada dela, depois de eu ter lavado toda a louça... Eu fazia o meu serviço depressa, se a senhora me deixasse ser a criada dela, agora que ela é pobre. Oh, pobre Miss Sara... a quem todos tratavam por princesa. – E desatou de novo a chorar.
Miss Minchin ficou ainda mais encolerizada. Só lhe faltava mesmo que aquela criadita sem eira nem beira se pusesse do lado daquela criança mimada, daquela Sara, de quem, dava-se agora bem conta, nunca gostara. Era de mais! Tal era a sua fúria, que bateu com o pé no chão.
– Não, com certeza que não! Ela há de ser criada de si mesma, e de outras pessoas também.Sai daqui neste instante ou ponho-te na rua!
Becky tapou a cara com o avental e abandonou a sala a correr. Desceu a escada até à copa e, sentando-se no meio dos seus tachos e panelas, chorou desconsoladamente, como se o seu coração se fosse partir.
– É tal e qual como nas histórias. A pobre princesa que é abandonada à sua sorte – lamentouela.

Miss Minchin nunca se mostrara tão fria e severa como quando Sara foi ao seu gabinete, umas horas mais tarde, em resposta a uma mensagem que lhe enviara.
Por essa altura, a festa de aniversário já lhe parecia um sonho ou uma coisa que sucedera há vários anos, e na vida de uma outra menina.
Todos os vestígios das festividades tinham desaparecido: o azevinho fora arrancado das paredes da sala de aula e os bancos e carteiras colocados de novo nos seus lugares. A sala de estar de Miss Minchin retomara o seu aspeto habitual, sem sinais do lanche em parte nenhuma. As alunas tinham recebido instruções para despirem os vestidos de festa e a própria Miss Minchin reassumira o seu trajo de diretora.
– Diga à Sara que venha à minha sala, e deixe bem claro que não quero choradeiras nemcenas desagradáveis – dissera Miss Minchin à irmã.
– A Sara é a criança mais estranha que já vi, mana. Não fez qualquer espalhafato. Talvez amana ainda se recorde que o mesmo aconteceu na altura em que o capitão Crewe regressou à Índia. Quando a informei do que acontecera, limitou-se a ficar muito quieta a olhar para mim, sem soltar um único pio. Os seus olhos esbugalharam-se cada vez mais e pôs-se muito pálida. Quando terminei, ficou na mesma, estacada por uns segundos, a olhar-me fixamente. Depois o queixo começou a tremer-lhe, deu meia volta e saiu a correr da sala em direção ao seu quarto. Várias das crianças começaram a chorar, mas dir-se-ia que ela nem as ouvia, parecia indiferente a tudo menos ao que eu dizia. Foi muito estranho não obter qualquer resposta dela. Quando se dá assim uma notícia inesperada, esperamos que a pessoa diga qualquer coisa, seja lá o que for.
Mais ninguém, a não ser a própria Sara, sabia o que acontecera no seu quarto depois de ter subido as escadas a correr e ter trancado a porta. Na verdade, ela mesma só se lembrava de se ter posto a andar de um lado para o outro, dizendo uma e outra vez para si mesma, numa voz que nem parecia a sua:
– O meu papá morreu! O meu papá morreu!
Numa das vezes, parou frente a Emily, sentada na sua cadeira a observá-la, e gritou:
– Emily! Ouviste? O papá morreu. Morreu na Índia, a milhares de quilómetros de distância.
Quando entrou na sala de estar de Miss Minchin, em resposta à sua mensagem, ia pálida e exibia profundas olheiras. Levava os lábios cerrados, como se não desejasse revelar o que sofrera e estava a sofrer. Não se parecia nem minimamente com a borboleta cor-de-rosa que esvoaçara de tesouro em tesouro na decorada sala de aulas. Ao invés disso, assemelhava-se a um espectro desolado e quase grotesco.
Vestira, sem a ajuda de Mariette, o vestido de veludo preto que já tinha sido posto de lado. Ficava-lhe demasiado apertado e curto, por isso as suas esguias pernas pareciam mais compridas e magras. Uma vez que não encontrara uma fita preta, levava o cabelo curto, espesso e negro, solto em redor da cara, o que realçava ainda mais a sua palidez. Segurava Emily com força nos braços, envolta num pedaço de tecido preto.
– Pouse a boneca – ordenou Miss Minchin. – Que ideia foi a sua de a trazer consigo?
– Não, não a pouso. É tudo o que me resta. Foi o meu papá que ma deu – respondeu Sara.
Sempre fizera Miss Minchin sentir-se secretamente desconfortável, e foi o que sucedeu naquele momento. Não lhe falou com descortesia, mas com uma firmeza glacial com a qual Miss Minchin encontrou dificuldades em lidar, talvez por saber que estava a fazer uma coisa desumana e cruel.
– Não terá tempo para bonecas, de futuro. Terá de trabalhar e tornar-se útil – afirmou ela.
Sara manteve os seus olhos grandes e perturbadores fixos em Miss Minchin e não disse nem uma palavra.
– A partir de agora será tudo muito diferente. Suponho que Miss Amelia lhe tenha explicadoo sucedido.
– Sim. O meu papá morreu e não me deixou dinheiro. Sou pobre – declarou Sara.
– É uma pedinte – corrigiu-a Miss Minchin, começando a ficar irritada ao recordar-se doque tudo aquilo significava. – Parece que a menina não tem família e não tem casa, nem ninguém que cuide de si.
O pequeno rosto pálido de Sara estremeceu, mas, mais uma vez, nada disse.
– Porque está a olhar para mim dessa forma? É assim tão palerma que não entende? Estou adizer-lhe que está sozinha no mundo e que não tem ninguém que faça nada por si, a não ser que eu decida mantê-la aqui por caridade.
– Eu compreendo – respondeu Sara, em voz baixa, fazendo um som como se tivesse engolido em seco algo que tinha na garganta.
– Essa boneca – gritou Miss Minchin, apontando para o esplêndido presente de aniversáriopousado numa cadeira perto dela –, essa ridícula boneca com o seu extravagante guardaroupa... Fui eu que paguei tudo!
Sara virou a cabeça na direção da cadeira.
– A Última Boneca – disse, num tom melancólico e estranho.
– A Última Boneca, sem dúvida! E é minha, não sua. Todos os seus pertences são agora meus! – exclamou Miss Minchin.
– Nesse caso, fique com ela, por favor. Não a quero.
Tivesse Sara chorado e soluçado, ou feito um ar assustado, e Miss Minchin teria talvez sido mais conciliadora com ela. Era uma mulher que gostava de dominar e exercer o seu poder, mas, ao olhar para o rosto pálido e resoluto da sua ex-aluna e ao escutar a sua voz orgulhosa, sentia-se desafiada e julgava que o seu comando era posto em causa.
– Não se arme em importante. Esse tempo já passou. Já não é uma princesa. A sua carruagem e o seu pónei serão vendidos, a sua criada será despedida. Vestirá as roupas mais velhas e simples que tiver, as restantes já não se adequam à sua situação. Agora é como a Becky e terá de trabalhar para viver – explicou Miss Minchin.
Para sua surpresa, viu um brilho nos olhos da criança, um brilho de alívio.
– Posso trabalhar? Se puder fazê-lo, não custará tanto. Que poderei eu fazer? – quis saberSara.
– Tudo o que lhe for ordenado. É uma criança esperta e compreende rapidamente o que lhedizem. Se se tornar útil, talvez a deixe ficar cá. Fala bem francês e poderá dar uma ajuda com as crianças mais novas.
– Posso? Oh, ainda bem! Sei que serei capaz de as ensinar. Gosto delas e elas gostam demim.
– Não diga disparates! Que importa se gostam ou não? Terá de fazer mais do que ensinar asmais pequenas. Fará recados e ajudará na cozinha, bem como na sala de aulas. Se não me agradar, será mandada para a rua, não se esqueça disso. E agora, pode retirar-se – ordenou Miss Minchin.
Sara ficou imóvel por um momento, a olhar para Miss Minchin. No seu cérebro jovem debatiam-se profundos e estranhos pensamentos. Virou-se então para abandonar a sala.
– Espere! Não planeia agradecer-me? – inquiriu Miss Minchin.
Sara deteve-se, e os seus pensamentos tornaram-se ainda mais tumultuosos.
– Pelo quê? – devolveu ela.
– Pela minha amabilidade para consigo. Pela minha bondade em proporcionar-lhe um lar.
Sara deu dois ou três passos na direção de Miss Minchin. O seu peito elevava-se e baixava, como se estivesse a esforçar-se por conter qualquer coisa. Pronunciou-se então, num tom acalorado e nada infantil.
– A senhora não é amável. A senhora nada tem de bondoso e esta casa não é um lar. – Deu então meia volta e saiu da sala, antes que Miss Minchin conseguisse detê-la ou fazer algo mais do que ficar a olhar para ela, muda de raiva.
Sara subiu as escadas sem pressa, mas a respirar com esforço, segurando Emily com força contra o tronco.
«Quem me dera que ela falasse», disse para si mesma. «Se ao menos ela falasse... Se ao menos ela falasse!»
A sua intenção era ir para o seu quarto, deitar-se na pele de tigre com a face encostada à cabeça enorme do felino e entregar-se aos seus pensamentos ao mesmo tempo que contemplava o lume. No entanto, ao chegar ao corredor, Miss Amelia saiu do quarto e fechou a porta atrás dela, colocando-se frente à menina com um ar nervoso e constrangido. A verdade era que se sentia envergonhada com o que a irmã lhe ordenara que fizesse.
– Não pode entrar aqui – declarou Miss Amelia.
– Não posso entrar? – repetiu Sara, chocada, dando um passo atrás.
– Este já não é o seu quarto – informou-a Miss Amelia, corando um pouco.
De repente, fez-se luz, e Sara compreendeu. Era o início da mudança que a sua vida sofreria, mudança essa anunciada por Miss Minchin.
– Onde é agora o meu quarto? – perguntou ela, esforçando-se ao máximo para que a voz nãotremesse.
– Dormirá no sótão, no quarto ao lado do da Becky.
Sara sabia onde ficava. Becky falara-lhe das águas-furtadas. Voltou-se e subiu mais dois lances de escadas. O último era estreito e os degraus estavam cobertos por uma carpete muito velha e puída. Sara sentia-se como se estivesse a deixar para trás o mundo no qual aquela outra criança, que já não lhe parecia ela mesma, vivera. A menina que subia aqueles degraus em direção ao sótão, de vestido curto, apertado e velho, era uma pessoa muito diferente.
Quando chegou à porta do quarto e a abriu, sentiu um aperto no coração. Entrou, fechou a porta e encostou-se a ela, olhando em redor. Sim, era de facto outro mundo. O quarto, caiado de branco, tinha o teto inclinado. As paredes estavam enegrecidas e em algumas partes o estuque caíra. Havia uma salamandra enferrujada e uma velha cama de ferro com um colchão duro e tapado com uma colcha desbotada. Algumas peças de mobiliário, demasiado velhas para serem usadas nos pisos de baixo, tinham ali sido colocadas. Sob a trapeira, que apenas mostrava um pedaço oblongo de céu triste e pardo, havia um escabelo encarnado e muito estafado. Sara sentou-se nele. Raramente chorava, e também não o fez então. Estendeu Emily nos seus joelhos, encostou a cara à boneca, abraçou-a e ficou assim, os seus cabelos pretos confundindo-se com o trajo de luto da boneca, sem dizer uma única palavra, sem fazer um único som.
Ao fim de um momento em silêncio, escutou uma pancada suave na porta, tão leve, tão humilde que a princípio nem a escutou, e, na verdade, só levantou a cabeça quando reparou na porta a abrir-se e viu um rosto tímido e manchado pelas lágrimas a assomar-se. Era Becky. Há horas que chorava às escondidas e esfregava os olhos ao avental sujo.
– Oh, miss, posso... deixava-me entrar... só por um bocadinho? – perguntou ela, em voz baixa, meio a medo.
Sara olhou para ela e tentou esboçar um sorriso, mas não foi capaz. De repente, e tudo graças ao olhar choroso, carinhoso e melancólico de Becky, o rosto de Sara assemelhou-se muito mais ao de uma criança do que ao de uma menina demasiado madura para a sua idade. Estendeu o braço e soltou um soluço.
– Oh, Becky, eu bem te disse que éramos iguais. Somos apenas duas meninas, nada mais queduas meninas. Como vês, é verdade. Não há diferença entre nós. Já não sou uma princesa.
Becky correu para ela, agarrou-lhe a mão e, apertando-a contra o seu peito, ajoelhou-se ao lado dela e chorou, de amor e compaixão.
– É sim, miss! – afirmou com segurança por entre os seus soluços. – Aconteça o que acontecer... seja o que for... será sempre uma princesa... e nada poderá mudar isso!

A princesinha - Frances Hudgson BurnettTahanan ng mga kuwento. Tumuklas ngayon