Pernas, pra que te quero?

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Percebi-o escalar o berço e fechei os olhos, esperando o baque, mas só houve silêncio. Tornei a olhar. Ele tinha desistido e sorria para mim, estendendo os braços, num pedido mudo, porém óbvio. Com um suspiro, rolei minha cadeira de rodas em sua direção. Quem sabe numa próxima vez...

Eu não tinha sido sempre paralítica. Na verdade, só o era desde os exatos sete meses e meio de Artur. Ao fim da cesariana, não consegui mexer as pernas, mas era, disseram, apenas o efeito da anestesia. No outro dia, porém, a imobilidade continuou, o que pareceu anormal. Mas nem mesmo no quarto dia, quando deixei a maternidade numa cadeira de rodas, falava-se num quadro definitivo. Por isso, não me desesperei e até vi uma poesia triste no modo como deixamos o hospital, meu marido empurrando o carrinho de bebê, eu rolando minha cadeira, mãe e filho lado a lado, unidos na mesma condição, nas mesmas pernas flácidas que não suportavam o peso do corpo.

Tampouco havia sido sempre tão negligente. Ao contrário, cumpria com zelo e até prazer toda a rotina de banho, amamentação, sono — apesar do embaraço da cadeira de rodas, que logo superei.

Mas o tempo passava sem que eu recuperasse qualquer movimento. Já as pernas — e os braços, o pescoço e todo o resto — de Artur só se fortaleciam, até que um dia ele se pôs de pé, apoiado na mesa de centro da sala. Aquela visão me encheu de uma fúria súbita. Minha vontade foi derrubá-lo no chão com uma rasteira.

— Olha, Lulu, Artur está quase andando! — meu marido comentou, empolgado.

— Não. Ainda vai demorar — respondi, encerrando aquela conversa e prendendo o menino no cadeirão de refeições sob o pretexto de lhe dar um lanche qualquer.

Fui enfiando as colheradas de mingau em sua boca sem mal reparar no que fazia. Minha cabeça estava muito ocupada com a repentina epifania: Artur estava roubando o tônus de minhas pernas, minha capacidade de andar, para ele! E quanto mais avançasse em suas habilidades, mais eu regrediria nas minhas. Eu não vinha mesmo percebendo uma piora? Nunca mais sentira o formigamento familiar na planta dos meus pés, e minhas pernas já não distinguiam o frio do calor. Os ganhos dele eram às custas de minhas perdas. Olhei-o engolir o mingau, cheia de ressentimento.

Passei a deixá-lo por horas no cadeirão, amarrado pelo cinto de segurança, quando meu marido não estava. Se não lhe desse a chance de praticar, ele não andaria! Mas, preso, ele chorava sem trégua, o que me irritava muito.

Um dia, sem suportar mais, libertei-o e o coloquei no chão. Artur imediatamente engatinhou até o sofá e tentou escalá-lo. A cena me inspirou uma estratégia diferente. Passei a deixá-lo livre para escalar a mobília à vontade. Numa dessas tentativas, ele talvez sofresse uma queda forte o suficiente para trocar de lugar comigo, me libertar.

— Que galo é esse na cabeça do menino, Lucélia? — meu marido quis saber umas noites depois, quando, chegando em casa do serviço, notou um calombo arroxeado na testa do filho.

— Não foi nada, Milton! Ele tentou subir numa cadeira da cozinha enquanto eu passava um café e escorregou.

Ele me olhou, um ar de preocupação.

— Lulu, agora que ele está mais ágil, engatinhando, escalando, deve ser difícil para você acompanhá-lo sem ajuda. Você sabe que podemos pagar por uma babá.

— Que bobagem, amor! Foi só uma quedinha à toa, veja como ele está bem — e eu tentei esconder meu desapontamento ante à constatação: sim, ele estava bem. — Cair faz parte de aprender a andar!

Milton não respondeu, mas eu sabia que voltaria ao assunto no próximo galo ou hematoma, que certamente se sucederiam, pois eu não tinha a menor intenção de proteger o menino. Meu rancor por Artur só crescia a cada progresso seu. Já não interagia com ele. Dava banho, comida, vestia-o, até o colocava para dormir em absoluto silêncio e de cara amarrada. No resto do tempo, deixava-o largado para que se aventurasse à vontade, corresse quantos perigos lhe aprouvesse.

Pernas, pra que te quero?Where stories live. Discover now