A mais querida

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Eu poderia ter sido uma justiceira. Um Zorro, um Robin Hood. Justiça sempre foi o valor que mais prezei. Menina, alinhava meu copo de refrigerante com o de minha irmã para garantir que ganhássemos a mesma quantidade de líquido. Adulta, dividir as tarefas domésticas por igual era virtude preferível à gentileza de uma indulgência. Assim, por uma questão de justiça, acredito que todos deveriam ter direito a ser a pessoa mais amada na vida de alguém, pelo menos por um período. Não é certo que alguns sejam tão paparicados, adorados, importantes, enquanto outros permaneçam relegados à eterna insignificância. Como eu, que nunca fui a pessoa mais importante para quem quer que fosse. Para meu desapontamento, porém, não há justiça no amor.

Na infância, via meus pais apaixonados e totalmente absortos um no outro. Não havia muito espaço para mim e minha irmã. Filhas de pais alheios e desapercebidos, era lógico e esperado que, na meninice, fôssemos o principal vínculo uma da outra, o grande afeto, o amor maior: ela, o meu; e eu, o dela. Mas, sendo criança e, por consequência, imatura, não fui capaz de superar o fato de que o parco amor que nossos pais nos dedicavam fosse de praxe ofertado a ela, tão novinha, tão bonitinha, tão engraçadinha. O que seria um potencial afeto converteu-se em hostilidade. Não encontrei consolo na escola, tampouco. Não chegava a ser uma criança rejeitada. Tinha amigos, mas nunca fui eleita a melhor amiga de nenhum deles. A confidente. A cúmplice. Nos trabalhos em dupla, não era a escolha óbvia de ninguém.

Não podia impor o amor às pessoas. Restava-me ser paciente, o que exigia um enorme esforço: os apetites não satisfeitos na infância chegam vorazes à idade adulta. Buscava consolo na expectativa de que, quando me casasse, seria enfim o grande amor de meu marido, como meus pais o foram um para o outro. Mas nunca ocupei nas afeições do meu cônjuge o lugar que sempre fora de minha sogra, objeto de suas atenções e cuidados. Ele expressava preocupação por cada espirro dela, e respondia aos meus com indiferença. A ela, companhia nas consultas médicas. A mim, o dinheiro do táxi. A dor e privação que eu sentia eram um tabu: qualquer insinuação de minha parte seria ridicularizada sob o argumento de ser descabido eu ter ciúmes de sua mãe.

Outra vez, eu era obrigada a refugiar-me na resignação esperançosa. Continuei a postergar meu direito — sim!, meu direito! — a ser a mais querida. Ele seria satisfeito com a maternidade. Lembrei-me da adoração não correspondida que devotava a minha mãe nos meus primeiros anos e concluí que seria alvo do mesmo amor quando tivesse um filho. Meu marido não queria ser pai, mas fui insistente. Ele enfim concordou. Nossa filha chegou a este mundo com uma missão bem definida: amar-me com paixão.

Infelizmente, meu plano falhou. Eu e a menina não nos demos bem. Ela demonstrava uma preferência desabrida pelo pai. Quando chorava, só ele a consolava. Se queria brincar, só ele a divertia. Na hora da comidinha, era para ele que ela abria a boca. Com o tempo, me desinteressei dela. De meu marido, me desinteressara muito antes, bem como desistira dos meus pais. E ter outro filho parecia-me um investimento bastante alto para um resultado que se mostrara tão incerto.

Quarenta anos de minha vida haviam-se passado, portanto, sem que eu conhecesse a sensação de ser a pessoa mais amada por alguém durante nenhum daqueles quatrocentos e oitenta meses, nenhuma daquelas duas mil e oitenta e quatro semanas. Pais, irmã, amigos, marido e filha descartados, eu não tinha a quem recorrer, por quem ansiar. Estava sem alternativas. Não havia esperanças com que acalentar meus dias, mas me faltava coragem para dar cabo deles. Passei a beber muito, tentando me distrair da vida. Era só o que eu queria: que a sucessão de dias transcorresse ligeira, chegando logo ao último sem eu mal dar fé.

Passou-se um ano. Passaram-se dois. Passaram-se três. Nossa filha se mudou para outro Estado para cursar a faculdade. Não precisava de mim — nem do pai. Os favoritos agora eram os amigos, os namorados. Meu marido, então, era órfão. Liberado das obrigações filiais há anos, e das paternas recentemente, não tinha por quem me preterir. No entanto, eu já não alimentava expectativas quanto a ele, apesar de nossa convivência ser pacífica. Ele tolerava sem qualquer comentário minha embriaguez, e até, muitas vezes, ao voltar do trabalho, eu o encontrava com uma garrafa de vinho a minha espera, como se soubesse que eu precisava daquilo.

Naquele dia, contrariando meu costume de me atracar com um copo no sofá da sala, diante da televisão, eu não voltei para casa. Fiquei bebendo num bar. Essa primeira escapulida da rotina parecia prenunciar que nada dali por diante seguiria o curso habitual. Cheguei em casa tarde, e encontrei-a silenciosa e escura. Meu marido já estava recolhido. Decerto me esperara, como sempre — em vão.

Após passar horas bebendo, seria natural me jogar na cama do jeito que estava e desfalecer, anestesiada. Quem me dera! Eu não comia nada desde o almoço, e o buraco em meu estômago não me deixaria dormir, ou assim eu acreditava. Fui até a cozinha e joguei um punhado de macarrão numa panela cheia d'água. Tonta, deitei-me no sofá pelo que seriam os cerca de oito minutos de cozimento. E apaguei, vencida enfim pelo álcool, esquecida da fome.

Não sei quanto tempo depois acordei, ou, antes, fui acordada pelo meu marido a me sacudir. Só notei que era ele quando, a custo, entreabri os olhos, e um clarão os feriu. Mas eu não estava sóbria o suficiente para entender que havia posto fogo na casa, mesmo inspirando toda aquela fumaça empretecida, mesmo ouvindo meu marido gritar algo a ver com fogo! e incêndio! Ele desistiu de aguardar que eu me locomovesse sobre meus próprios pés e me tomou nos braços. Comecei a entender o que estava acontecendo quando mirei nossa porta, a essa altura reduzida a um círculo de fogo. Atônita, vi-me arremessada por ela com toda a força, atravessando-a bem no meio, fora do alcance das chamas (na verdade, não. Chamusquei os cabelos e braços, mas no momento nem percebi), caindo estatelada na grama do jardim defronte.

Ouvi um grande estalo atrás de mim, seguido por um estrondo, e, à minha frente, vi vultos de pessoas, umas vestidas de branco, outras, de vermelho. No que me pareceu ser o momento seguinte, mas que aconteceu muitas horas mais tarde, acordei com o dia claro, numa cama de hospital. Tentei em vão juntar minhas vagas lembranças num enredo que fizesse sentido. Só consegui piorar minha dor de cabeça. Por que eu estava ali?, Onde estava meu marido?, foram as perguntas que despejei sobre a primeira enfermeira que entrou em meu quarto. Ela respondeu que eu estava bem, e que o doutor viria em instantes me dar alta e me explicar tudo.

Quando ele se aproximou, com ar pesaroso, temi que as notícias, ao contrário do que dissera a enfermeira ("Você está bem!"; "O doutor virá lhe dar alta!"), não fossem boas. Mas eis que ele confirmou: sim, eu estava bem! Meu marido, por outro lado...

"... e os paramédicos e bombeiros, que já estavam diante da casa, chamados pelos vizinhos, testemunharam quando seu marido conseguiu arremessá-la através da porta em chamas, mas, antes que pudesse segui-la, o teto desabou sobre ele...," isso explicava o estrondo que ouvi!, "... impedindo-o de escapar. Foi prontamente resgatado, mas sem vida: queimado, asfixiado, enfim... O IML já liberou o corpo para o velório e o enterro. Sua filha chegou à cidade e está providenciando tudo. Talvez a senhora não queira comparecer. Imagino que esteja em choque, e, se quiser ficar mais um dia aqui no hospital, para se recompor, eu posso adiar a..."

"Eu vou!" gritei, enfática, com medo de que minha vontade não fosse levada em consideração. "Eu tenho que ir!"

"Sim, como queira, as despedidas são necessárias," ele concordou, assinando um papel. Minha alta, presumi.

No velório, as pessoas quase temiam se aproximar, ou me dizer qualquer coisa. Muitas se limitavam a me dirigir um olhar penalizado: eu perdera marido, casa, e as lembranças de uma vida, esturricados. Mas eu, pelo contrário, tinha dificuldade em esconder um risinho que teimava em escapar, à la Mona Lisa, enquanto abria caminho entre os presentes para me aproximar do caixão. Olhei para o rosto dele, que ficara bem preservado — as queimaduras graves, no tórax e pernas, estavam cobertas pela roupa e pelas flores —, enquanto apoiava minha mão nas bordas de madeira recobertas por um tecido rendilhado. Alisei-lhe a face e, por fim, debrucei-me sobre o corpo, num arremedo de abraço.

O que todos ali interpretavam como um gesto de despedida era, na verdade, um arroubo de gratidão pelo desejo realizado. Eu vivia meu apogeu, minha glória. Meu marido morrera por mim! Nos últimos momentos de sua vida, ele me amara mais que a si mesmo! Por breves instantes, eu fora a mais querida!

A mais queridaWhere stories live. Discover now