1. A Bota de Cemitério

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A rua é boa pra quem não mora nela.

Caixa de papelão.

Sarna.

Cola.

Sopa noturna.

CRECK.

CRICK.

CROCK.

CRUCK

CRACK...

A rua é boa pra quem passa por ela.

Maria passa...

João passa...

A velha-cara-de-passa-passa...

Passa Fulano...

Passa Beltrana...

"Pobres coitados! "

Hoje está meio frio.

Frio fora de época.

"Bendita marvada! "

Mais um gole.

Dois mendigos dormem abraçados embaixo do cobertor fedorento.

Na TV, o prefeito Bonitinho diz: "a cidade é de todos".

Junto ao muro do cemitério, Gaspar, 15, não acorda com os primeiros raios de Sol na cara.

Na TV, o prefeito Bonitinho diz que ama todo mundo.

Junto ao muro do cemitério, Gaspar só acorda depois das 9 da manhã.

"Desocupados deveriam ir pra cadeia! " – passa-pensa um velho-muito-velho-de-tudo, escarrando no chão.

Nojo e pigarro militar.

Gaspar acorda com um par de botas ao seu lado.

Estamos em dezembro.

Talvez seja um papai-noel.

EM DEZEMBRO OS CANALHAS TAMBÉM VIRAM PAPAIS-NOÉIS.

As botas pretas serviram muito bem.

Acomodaram até os desconfortáveis calos de Gaspar.

Na padaria, um copo de café e dois pães quentinhos.

Ainda tem gente "mais ou menos boa" por aí.

Boa ou arrependida.

Na TV, o prefeito Bonitinho diz que vai construir Metrô.

Gaspar tem o dia todo pra fazer quase nada.

Catar latinha, só o necessário.

Três reais por dia, já está bom.

Gaspar não é ambicioso.

E a vida pode ser mais barata do que se imagina.

O almoço custa só uma moeda de um.

À tarde dá pra jogar fliperama.

Uma pelada na praça.

À noite tem sopa.

E depois da sopa, a caminhada.

E depois da caminhada, um cantinho lá junto ao muro do cemitério.

Quem mora na rua quase não tem medo.

Ou os medos são diferentes.

AS BOTAS NÃO DOERAM OS PÉS.

13 Contos de Medos e ArrepiosWhere stories live. Discover now