Fratura Exposta

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O pronto-socorro reserva sensações díspares a quem opta pela atuação profissional na seara mais convulsiva do atendimento hospitalar. Um assistente de enfermagem como eu, durante uma jornada de trabalho, pode jubilar-se com o salvamento de uma criança e aterrorizar-se com um acidentado que se esvai em sangue diante de seus olhos, ou com a aparência da ambulância cujo assoalho chega salpicado de massa encefálica, ou com uma pobre idosa agonizante num corredor já atulhado de outros convalescidos. Quem atende num pronto-socorro necessita de um estômago extra, além daquele destinado às funções digestivas.

Ao longo de anos e anos submetido a essa sucessão de desventuras, posso afirmar sem chance de estar equivocado: nenhuma cena ambientada num pronto-socorro suscita em mim tanto desconforto, tanta aflição, tanta tristeza quanto a expressão mortificada no rosto duma mãe ante o falecimento do próprio filho – fratura exposta para a eternidade.

Não sei como Valdete chegou ao hospital naquela noite. O início do relato que lhes apresento – do próximo parágrafo ao instante em que ela desfalece diante de outros moribundos e da recepcionista – e o vi apenas com a imaginação e não com os olhos. A isso podemos chamar ficção. E a ficção, se não nos serve como verdade, ao menos nos ajuda a encontrá-la.

Pela primeira vez, em mais de vinte anos de casamento, Valdete deixou os afazeres domésticos e correu até o boteco no outro lado da rua, balançando suas pernas roliças e varizentas, para informar a tragédia ao marido. A visão inédita da mulher suada e descabelada na porta do bar não assustou apenas Clésio, arrancado com um supetão da sagrada maratona de dominó nas tardes de sábado, e sim todos os bêbados que se dependuravam no balcão e também outros quatro cujos sovacos se encaixavam perfeitamente às pontas dos tacos de bilhar, fincados no piso ao redor da mesa coberta pelo tecido verde desbotado sobre o qual esferas pinicadas e descoloridas repousavam em silêncio.

Cansaço e desespero impediam Valdete de pronunciar a terrível sentença. Sem o amparo do marido teria desmaiado ali mesmo. Assim que recuperou fôlego, balbuciou, represando o choro que lhe escorreria pelas pálpebras inferiores no instante seguinte:

"Clésio, atiraram no meu filho!"

Clésio, homem tido como forte, teve um baque. As pernas bambearam. Os companheiros de bar, dominó e pinga ofereceram ajuda. Num já, um fusca estacionava diante do boteco e os dois embarcavam rumo ao hospital. Valdete soubera do infortúnio do filho por um vizinho que chegara correndo da rua, com a notícia do assalto no supermercado. A polícia esteve no local do crime; uma ambulância tinha levado os feridos ao hospital. No meio do caminho, uma ligação de um telefone público confirmara a entrada de Acácio no pronto-socorro ainda com vida.

No fusca que sacolejava rumo ao centro, Valdete soluçava sem se controlar, enquanto Clésio sentia a ira avolumar-se em seu peito. O pedreiro não criara o casal de filhos com tanto esforço para ver seu primogênito entre a vida e a morte pelas mãos imundas de um vagabundo, um delinquente que optou pelo caminho fácil em vez de ganhar a vida com o suor do trabalho.

O choro compulsivo de Valdete se misturava a orações que se fundiam sem que ela conseguisse concluí-las. Acácio tinha se afastado da igreja. Não, não! Aquilo não podia ser um castigo de Deus! Apesar de não ir mais às missas, ele não havia se tornado má pessoa, era um bom garoto. Nunca fez mal a ninguém.

Clésio também lamentava que o filho tivesse largado a escola e deixado de acompanhá-lo nas obras para ganhar a vida trabalhando dia e noite como balconista numa lanchonete. O serviço mais leve não era ruim, mas longe do pai ele ficara mais vulnerável às más influências da vagabundagem do bairro. Pensou isso e logo em seguida se penitenciou: era o filho a vítima, diabos! Pudesse, mataria o desgraçado que colocara seu filho baleado numa maca de hospital. O pensamento escapou-lhe junto com o ranger dos dentes amarelecidos pelo fumo:

"Se eu pego, eu mato esse desgraçado."

O fusca estacionou no pátio do hospital. Valdete saiu na frente de Clésio, invadiu a recepção com seu corpanzil suado e flácido e debruçou-se sobre o balcão. Um silêncio palpável fazia companhia à mãe desesperada. Os olhos de todos os outros convalescidos convergiram para a mulher suarenta e chorosa.

Um hospital é um ambiente de trabalho como outro qualquer. Tudo o que acontece ali dentro vira notícia que se espalha rapidamente. A recepcionista já sabia do desfecho daquela história, já esperava pela chegada da mãe do rapaz baleado no supermercado. Mães se comunicam pelo olhar e a mãe recepcionista não precisou dizer uma palavra à mãe de Acácio. Seus olhos aguados eram o próprio atestado de óbito.

O corpo inteiro de Valdete perdeu força, os braços se arrastaram pelo móvel e ela se esparramou pelo piso como que morta. Uma idosa, também ciente do que acabara de acontecer, deitou-se sobre a mãe desmaiada, alisando-lhe os cabelos ensebados, chorando em silêncio.

Quando o Clésio invadiu o recinto e deu com a mulher estatelada no chão, nem teve tempo de raciocinar para entender o que acontecia. Ouviu um homem calvo e avermelhado de ira gritar do fundo da sala:

"O vagabundo eles salvaram!"

Clésio atropelou todos os que cruzaram o seu caminho até encontrar o quarto onde um policial fazia guarda. Debateu-se contra o militar que se valia de todas as forças para impedi-lo de avançar. Clésio urrava e só parou quando ouviu de dentro do quarto a voz assustada do rapaz que jazia sobre o colchão, algemado à estrutura metálica da cama, com o ferimento à bala na perna esquerda coberto por um curativo ensanguentado:

"Pai?"

O corpo mole de Clésio deslizou sobre a farda do policial até encontrar o conforto gelado do piso. E as luzes brancas do corredor asséptico escureceram diante seu olhar débil, enquanto aquela voz que agora parecia ter origem no fundo de um túnel infinito e muito estreito se alternava com o choro soluçante do jovem assassino:

"Pai?"

"Pai?"

"Pai?"

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