Lá não há ninguém para te aborrecer

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Resolvo voltar para Gateheaven e, desta vez, passarei uma temporada maior aqui. Não aguento mais o olhar recriminador do meu pai, as sessões com a Dra Vânia me fazendo lembrar de coisas que eu não consigo (ou não quero) e das lições que o Peter insiste em me ensinar, mesmo sabendo que eu não vou a lugar algum!

Peter é meu professor particular, o substituto do Senhor José Augusto, um velho chato que me obrigava a fazer milhões de contas em um só dia! Peter é bem mais novo e gosta muito de literatura brasileira. Ele também é americano, mas se naturalizou no Brasil. No seu caso, sua mãe, Alice, é brasileira e o pai é americano, do Estado de Michigan. Alice é descendente de japoneses e deixou de herança para Peter os olhos puxados e o cabelo extremamente liso e brilhoso. E só. Nem um tostão a mais para complementar a maldita herança! Ele teve que se virar em um país que privilegia o idioma inglês, mas cuja população ainda não aprendeu direito a pronunciar "stability"...

O pai do Peter refez a vida depois da separação com a Alice e não quis saber do seu primogênito latino depois que soube da morte da sua ex. Peter foi criado pelos avós japoneses e decidiu continuar por aqui após a morte deles. Ele é meu amigo, o único amigo homem que eu tenho.

Gosto dele, só me cansam as suas intermináveis lições sobre filosofia! Acho que eu já vivi tempo demais em cima dessa cadeira de rodas para desenvolver a minha própria filosofia de vida: morrer para este mundo cruel e ficar para sempre em Gateheaven, no meu paraíso seguro e livre.

Antes de sair, deixo um bilhete para Peter dentro do caderno de redação:

- Querido "Peter Boy", você me ensinou tudo sobre Aristóteles e Sócrates. Me deu a chave para acessar o conhecimento dos antigos povos, através dos seus hábitos e costumes. Você foi incansável comigo e te agradeço demais por isso! Por favor, não me odeie por ter abandonado as suas lições, na verdade eu quero aprender uma nova filosofia, baseada na igualdade dos corpos que dançam suaves a canção que é para todos. Quero alcançar o Nirvana em pé, em doses de felicidade e nostalgia; quero ser plena sem um artefato gelado e incômodo; quero vestir roupas coloridas e não esta preta que me acompanha como um caixão móvel... Peter Boy, meu amigo de tantos papos, não fique bravo comigo, eu só quero ser feliz! Estou indo para Gateheaven e não sei se vou voltar, mas quero que saiba que eu te amo. E diga para a magrela que também a amo, menos que você, mas também amo. E mande um beijo para o meu pai. Peça perdão por eu não conseguir amá-lo como ele gostaria ou mereceria, mas é o que eu tenho para entregar para ele, ou melhor, é o que o meu coração quase paralisado consegue entregar... Até mais Peter Boy! Beijos da Lua Cheia.

E assim me despedi de todos que me cercavam nesta vida claustrofóbica. Fui viver em Gateheaven com a certeza de que lá eu serei verdadeiramente feliz. Já era hora de amadurecer e sair da casa do meu pai fracassado... em Gateheaven eu ainda moro na casa do meu pai General, mas em breve vou me casar com Jason e, juntos, construiremos uma vida com muitas crianças ruivas sorrindo ao redor de uma mesa redonda feita com madeira de lei.

Ao caminhar pela grama fofa escuto um chamado bem baixinho. À medida em que avanço em direção à cidade, o som vai diminuindo até ficar quase imperceptível. Ainda consigo escutar pequenos lamentos do meu pai e um choro que vem do fundo da alma. Suas lágrimas conseguem chegar até Gateheaven em forma de chuva. Corro mais rápido para que elas não consigam me molhar, mas alguns respingos são inevitáveis. O efeito dos pingos de chuva na minha roupa é a imediata culpa que sinto e a dúvida de seguir por este caminho. Meu pai sempre faz isso quando percebe que eu estou indo embora. Em muitas vezes eu fiquei com pena dele e voltei mais rápido para a minha dura realidade mas, desta vez, é diferente. Já não consigo encarar esse fardo, não consigo mais...

Vou até a lanchonete do posto e busco por Jason desesperadamente. Como não o encontro eu pergunto à Juliet o que aconteceu e ela me diz o que meus ouvidos não conseguem absorver:

- Luanna, Jason foi até a sua casa te procurar e no caminho ele sofreu um acidente.

- O quê? Como assim? Onde ele está?!

- Ele está no hospital, em Sunset Valley. O levaram para lá há três dias... minha mãe está com ele e eu tive que ficar aqui - saio correndo para o meu Cadilac que estava providencialmente à minha espera, já com meu pequeno Peter dentro.

Enquanto dirijo a mais de cem na estrada percebo que o meu Peter tem o mesmo nome do Peter do lado de lá, da outra Lua... que coincidência meus dois melhores amigos, nos dois mundos em que frequento, terem o mesmo nome!

Chegando ao hospital, vou direto para o quarto em que Jason está. Ele está acordado e abre um enorme sorriso quando eu entro.

- Lua! Você chegou! Estava morrendo de saudades!!

- Jason! O que aconteceu? Meu Deus!

- Luanna, vou aproveitar que você finalmente chegou para resolver algumas coisas na lanchonete, ok? - Diz a sisuda viúva, a Sra. Louise Frank.

- Claro, Dona Louise. Me desculpe a demora, é porque eu não sabia... - Ela me lança um olhar fulminante e sai sem querer ouvir o resto da minha explicação. Não ligo e volto minhas atenções para o Jason e no que ele tem a me dizer.

- Lua, por que você me abandonou?

- Não te abandonei, Jason. É que é... é complicado.

- Por que é tão complicado ficarmos juntos? O que tanto você tem para fazer do lado de lá da montanha de Gateheaven?

- Eu... eu não tenho realmente nada importante do lado de lá! Inclusive vim aqui te dizer que eu não vou mais voltar lá! - Nesse momento um frio invade a minha alma e me deixa um pouco sensibilizada pelo fato de nunca mais voltar à vida do lado de lá da montanha. Sinto uma pequena fraqueza nas pernas e me desequilibro um pouco quando a maldita culpa arrebata meus pensamentos. Também sinto pena do pai que vive lá e um pouquinho de saudade do Peter Boy e da Magrela...

- O que foi, Lua? Você ja está arrependida com o que acabou de me dizer? Tem alguém do lado de lá que faz você balançar?

- Não, Jason... não tenho ninguém importante o suficiente para me fazer querer viver lá. Existe uma pessoa sim, uma amiga que tem o mesmo nome que eu, ela se chama Luanna Marques e é paralítica. Eu sinto pena dela....

- Coitada! Ela deve ser muito triste!

- Sim, ela é...

- E por que ela não se muda para Gateheaven?

- Porque aqui só tem lugar para uma Luanna! E essa sou eu, a Luanna Myers de Gateheaven!

Gateheaven (Finalizada)Where stories live. Discover now