A Necromante (conto)

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Corpos. Centenas de corpos. A grama das Colinas Inchu, antes verde e reluzente,tornara-se púrpura.O sangue dos guerreiros Charruas ainda exalava aquele odor metálico, forte,entorpecente.O céu, cinza e desbotado, acentuava a agonia e a dor daqueles que ainda se retorciam,jogados ao chão, à espera do seu momento de partir. 

Lá no alto, as Kukulcán ainda serpenteavam, perscrutando com seus olhos aguçados em busca de sobreviventes indesejáveis. Suas presas pontiagudas eram armas mortais. Com seu corpo serpentiforme, coberto por plumagens coloridas, agarravam facilmente suas presas e levavam-nas às alturas, de onde eram jogadas e abatidas. Minhas mãos também estavam sujas de sangue, embora eu tenha chegado depois da batalha ter terminado. Deitado no meu colo jazia inerte o corpo da única pessoa que conhecera todos os meus tormentos. Abracei-o longamente, num entorpecimento mórbido, e senti seu sangue, ainda quente, molhar minhas vestes de linho.

— Perdoe-me, Zolan – As palavras saíram da minha boca ocas, sufocadas pelas lágrimasque teimavam em escorrer pelo meu rosto, indo empapar ainda mais os cabelos negrose lisos que eu carinhosamente afagava com as pontas dos dedos.Não que a morte fosse algo estranho para mim. Ao contrário, era algo que eu conheciabem desde a infância. Aliás, a morte era minha especialidade.Eu era uma necromante. Nola, A Iluminada – era assim que meu povo Tapuia mechamava.Foi por causa desse dom — não, dessa maldição — que eu estava ali, em meio acentenas de cadáveres.A maioria dos que estavam ali, mortos, eram inimigos Charruas, mas havia tambémmuitos Tapuias, como Zolan. E todos eles haviam lutado por mim.Permaneci ali, entregue àquela sensação de vazio, até sentir a mão de alguém tocarmeu ombro. Eu não estava acostumada a ser tocada. Desde os oito anos, quandodescobri que podia falar com os mortos, ninguém mais ousava me tocar. Alguns não ofaziam por respeito, outros por medo, mas a maioria era por uma mistura de ambos.Para eles, eu era o receptáculo sagrado de um poder que apenas os Tapuias eramdignos de receber dos deuses.Senti o peso do corpo de Zolan ser retirado do meu colo, e vi quando o carregaram paralonge.Sua cabeça pendia para trás e, em meio ao sangue que sujava seu rosto negro, pude verseus lábios grossos entreabertos. Eles não se moveram, mas pude ouvir nitidamente aspalavras que ele queria me dizer:— Não se culpe por isso.Culpa. Esse era talvez o maior dos meus tormentos. Um sentimento que me faziacompanhia constante. Embora eu pudesse manter contato com as pessoas no AlémMundo, não achava justo privá-las da sua existência material, do contato com seusparentes e amigos, e dos prazeres que somente seu corpo físico poderia lhesproporcionar.Zolan sabia como eu me sentia. Ele sempre soube. Ele estava comigo no momento emque senti, pela primeira vez, a centelha da necromancia se acender dentro de mim.Foi ele quem primeiro ouviu as palavras que pronunciei momentos depois da morte domeu avô:— Metal dourado.Naquele dia, Zolan olhou para mim com as sobrancelhas arqueadas. Tínhamos ambos,apenas oito anos de idade, e ele ainda segurava uma pequena varinha de bambu queusara para pescar alguns momentos antes. Saímos correndo da beira do rio quandominha mãe nos chamou para avisar que meu avô Kirawa, Chefe dos Tapuias, haviamorrido.Ele havia sido o único que retornou com vida da última expedição ao Monte Halares.Alguns dias antes haviam-no encontrado ferido a alguns quilômetros de distância dacidade. Desde então, nenhuma palavra saiu de sua boca, e foram raros os momentos emque ele, sequer, conseguiu abrir os olhos. Permaneceu imóvel durante dias naquelacama de palha, sendo aquecido pelo fogo que crepitava no fogão a alguns metros dedistância.— O que? — perguntara Zolan. Estava escuro, mas a pouca luz que entrava pelas frestasda janela de madeira me deixou ver seus olhos curiosos, parcialmente cobertos peloscabelos lisos e tão negros quanto sua pele.— Metal dourado — repeti, encarando novamente o rosto inerte do meu avô. — Eleestá dizendo para procurarmos no Monte Halares. Há muito metal dourado por lá.Também disse que é para termos cuidado com as serpentes aladas, é lá que elas fazemseus ninhos. Foram elas que mataram os outros.Zolan encarou o corpo por um momento, depois se virou novamente para mim.— Ele não está dizendo nada. Ele está morto.De fato, ele estava morto, e seus lábios não se moviam.Fechei os olhos, mas continuei ouvindo a voz grave do meu avô contando sobre o quehavia visto no monte dias antes.Tapei meus ouvidos, na tentativa de fazê-lo se calar. Mas foi inútil.Dessa forma, o Chefe dos Tapuias, mesmo depois de morto, conseguiu trazerprosperidade para o nosso povo, e selar meu destino. A partir daquele momento, euviveria como uma mediadora entre a vida e a morte.Dias depois, eu seria o principal elemento em uma cerimônia que há muitas geraçõesnão acontecia. Apenas o povo Tapuia era agraciado com o dom da necromancia. Porém,por alguma razão que desconhecíamos, os deuses há séculos não nos conferiam talpoder.As mulheres trançaram meus longos cabelos negros e enfeitaram-no com flores brancas.A alvura da minha pele se confundia com minhas vestes, feitas de algodão e bordadascom delicados fios dourados. Minhas mãos foram tatuadas com símbolos necromânticospara que a língua dos mortos nunca fosse incompreensível para mim.Caminhei descalça, acompanhada pelos anciãos, em direção ao Templo. Pelas ruas dacidade, o povo Tapuia me seguia em cortejo, tocando tambores e atirando pétalasperfumadas.Na Grande Pirâmide fui recebida com incenso e um bocado de chá de erva. Sorvi oamargor de dentro do crânio do último necromante Tapuia, que vivera dois séculosatrás, e, imediatamente, senti fervilhar dentro de mim as vozes de uma multidão demortos. Aquelas mesmas vozes que eu demoraria anos para aprender a abrandar.Lembro-me que Zolan me observava, com um sorriso discreto e os olhos cheios deorgulho. O negrume da sua pele já indicava que ele seria um guerreiro forte e ágil.Diante da estátua de corpo de leão com chifres de carneiro, fui consagrada a Zupay, oDeus da Morte.Eu estava feliz, não nego. Mas se soubesse que aquele momento me traria até este, euteria sufocado aquelas vozes no meu âmago e deixado as portas do Além Mundotrancadas para sempre.Naquele mesmo dia, um mensageiro foi enviado ao Chefe dos Charruas — Kiro — paraanular a aliança de casamento que havia sido feita na ocasião do meu nascimento.Casamentos não eram para necromantes. Deveríamos manter nosso corpo sempre puroe casto. Ele era um templo que seria usado pelos deuses para intermediar o mundo dosvivos e dos mortos.Mas nem os Deuses podiam amainar a ganância de Kiro. Ele era um déspota quegovernava seu povo desde os quinze anos. Em duas décadas, já havia triplicado oterritório dos Charruas por meio de alianças ou de guerras. A anulação do nossocasamento enfraquecia a possibilidade de uma aliança entre os nossos povos efortalecia a possibilidade de uma guerra.A cabeça do mensageiro foi enviada de volta como resposta à anulação. Kiro lançou suaira contra o nosso povo sob o pretexto de que a quebra do pacto era motivo de ultraje edesonra para ele.Não que ele precisasse de mais uma esposa. Mas, para ele, eu seria mais que umamulher. Eu seria mais que uma necromante ... Eu seria uma arma.Os mortos, não raramente, têm coisas importantes a dizer. Kiro sabia que, porintermédio deles, tesouros poderiam ser encontrados, estratégias poderiam sertraçadas e segredos poderiam ser revelados. E ele faria o que fosse necessário para queesse poder não escapasse de suas mãos.Quando completei meu décimo segundo ano, Kiro enviou seus sacerdotes numatentativa de restabelecer a aliança. Mas os anciãos Tapuias mantiveram-se firmes. Umanecromante era dádiva dos Deuses, um presente que devia ser preservado e cuidadocom o máximo zelo. Mesmo que isso tivesse que custar suas vidas.Dias depois, os corpos de seis anciãos foram encontrados no templo, aparentementeenvenenados.De maneira silenciosa e furtiva, Kiro conseguira implantar o medo e a insegurança entreo nosso povo.Mesmo contra a minha vontade, passei a ser acompanhada dia e noite. Onde quer queeu fosse sempre havia um guerreiro por perto no intuito de me defender, caso fossepreciso.Vivíamos à espera do próximo golpe, da batalha iminente. Mas não esperávamosprostrados. Éramos uma nação de guerreiros. E embora tenhamos vivido um longoperíodo de paz, o espírito de combate era latente nos Tapuias. Os homens eram fortes ecorajosos, e treinavam incansavelmente para aperfeiçoar as técnicas de luta e combatecom armas.Zolan, apesar da pouca idade, já demonstrava uma habilidade incrível no manejo dearmas, principalmente arco e flecha. Ele era a minha companhia mais constante,principalmente às tardes, quando eu costumava ir à beira do rio. Molhar os pés na águacorrente era como um ritual para mim. Ajudava-me a acalmar os pensamentos, amanter a sanidade que eu precisava para lidar com o turbilhão de informações eemoções que os mortos me traziam. Zolan compreendia perfeitamente. Mantinha-se àdistância, porém sempre alerta, pescando ou treinando em alvos colocados nas árvores,até que eu me juntasse a ele. Aqueles eram os momentos mais prazerosos do meu dia,quando eu vivia sem carregar o peso dos mortos. Apenas Zolan era capaz de enxergarsob o véu que a necromancia havia jogado sobre mim. Com ele, Nola, A Iluminada, eraapenas Nola.Mas os dias não seguiriam calmos para sempre. Kiro sabia que quanto maior o meupoder, menores eram as chances de eu usá-los a seu favor. E, se eu não podia vivercomo sua aliada, deveria morrer como sua inimiga. E foi assim, que, numa daquelastardes, sentada à beira do rio, senti, de repente, uma dor lancinante. Meu corpo seretesou instintivamente e demorou um segundo para que eu visse a ponta de umaflecha cravejada um pouco abaixo do meu ombro direito. Senti o gosto do sangue,quente e amargo. Abri a boca para chamar por Zolan, mas meu grito foi abafado pormãos ásperas que me impediam de respirar. Após um momento de desespero,mergulhei na escuridão.Nos dias que seguiram, minha mente vagou sem rumo pelo Além Mundo.Lampejos de luzes me levavam de um lado ao outro. As vozes se intercalavam, às vezeseram altas e furiosas, noutras era brandas e bondosas. Os idiomas se confundiam, maseu compreendia todas as palavras que podia ouvir. Percorri ambientes que mepareceram hostis, mas não sentia medo. Da mesma forma, não sentia prazer ao ouviruma voz familiar e amigável. Parecia impossível reagir, demonstrar interesse oudesprezo por qualquer coisa. Talvez porque eu não pertencesse àquele mundo — nãoainda. Tampouco pertencia ao mundo dos vivos. Meu corpo, imóvel, repousava sobre acama e não dava sinais de que eu teria forças para voltar à vida.Perambulei, entre as alturas e as profundezas, pelo que me pareceu uma eternidade,assimilando informações, ouvindo confissões e segredos, lamúrias e regozijos, históriasque a morte deixara inacabadas.Entre uma história e outra meus olhos piscaram. As vozes se calaram por um momento.Tentei manter os olhos abertos, mas a luz da realidade doía. Todo o meu corpo doía.Com a visão turva e pulsante, reconheci o rosto de Zolan a olhar-me. Ele me presenteoucom um largo sorriso antes de dizer:— Que bom ter você de volta.Eu tentei, sem muito êxito, retribuir o sorriso. Minha garganta seca ardia como brasa, efoi inútil tentar pronunciar qualquer palavra.A volta ao mundo dos vivos foi dolorosa. Não apenas pelo efeito que o venenoimpregnado na flecha ainda exercia em mim, mas também pelo sofrimento do meupovo. A cidade havia sido parcialmente destruída e muitos Tapuias haviam perecido,vítimas do ataque furtivo dos Charruas. E foi então que eu comecei a sentir anecromancia não como uma bênção, mas sim como uma maldição.Zolan mostrara ser mais que um leal amigo. Como um guerreiro corajoso, arriscara suaprópria vida para salvar a minha. Apesar de não ter conseguido evitar que os inimigoschegassem até mim, impediu-os de levar a cabo seu intento de matar-me.Mas Kiro não desistiria. Sua frustração e seu ódio aumentavam na mesma proporçãoque a minha necromancia. Minha jornada pelo Além Mundo me fortalecera, e o podernecromântico resplandecia em mim mais forte do que nunca. Um poder que eu nãopodia ignorar. Para os Tapuias, eu era a mensageira dos deuses, aquela a quemrecorriam em busca de conselhos e amparo. A luz que os guiaria após anos e anos naescuridão.Com a ajuda dos mortos, eu conseguia guiar meu povo por um mundo que até então eradesconhecido para nós.Tínhamos metal em abundância, e pudemos aperfeiçoar as técnicas de metalurgia,criando novas ferramentas e armas.Os sacerdotes se dedicavam não só aos deuses, mas também a aprimorar e difundirnosso sistema de escrita, o que tornava a comunicação mais rápida e eficiente.Aprendemos a língua das Kukulcán — as serpentes aladas que viviam no topo do MonteHalares — e estabelecemos uma relação de amizade com aqueles seres magníficos quedominavam os céus. Elas seriam importantes aliadas.Nosso império florescia enquanto, ao nosso redor, vários outros tombavam aos pés deKiro. Todos aqueles que, de alguma forma, se opunham a ele eram violentamenteesmagados. E conosco não seria diferente.Nos preparamos e aguardamos o próximo combate, pois era certo que ele ocorreria.E ocorreu. Nossos inimigos estão mortos, porém não vencemos. Em batalhas assim nãohá vencedores, apenas sobreviventes.Eu pensei que já tinha me acostumado com a morte. Mas nunca senti o seu peso comosinto agora. Zolan não está inalcançável para mim, mas ainda assim eu sinto sua mortecomo se fosse o fim. Talvez porque fosse ele a única pessoa que me ligava a estemundo. O peso que equilibrava a balança entre o mundo dos vivos e o mundo dosmortos. Sua amizade e proteção eram a luz que iluminava o meu caminho.Agora, sem ele, eu não seria mais Nola, A Iluminada. Eu seria apenas Nola, ANecromante.

A Necromante (conto)Where stories live. Discover now