Capítulo 3 - A vida real

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Isso tudo se passou, salvo engano, num domingo. No correr da semana seguinte, tentei ligar para Duda diversas vezes. Eu precisava convidá-la para a peça. Como ela morava num flat, em geral era o porteiro quem atendia aos telefonemas. Respondia coisas como "nenhuma delas está em casa", "saíram", "foram ao supermercado", "ela foi fazer uma entrevista para emprego", etc. Às vezes, uma de suas roomies atendia e transmitia um recado: "ligue às nove da noite, ela tá na aula de dança", "o fulano está aqui, ligue mais tarde" e tal. E, quando ela me ligava — me ligou três vezes — eu nunca estava no estúdio! Maldita falta fazia a posse de um celular! Quem cresce nessa época pós-celular jamais imaginará o quão vital é ter um desses aparelhos e, pior ainda, nunca se dará conta de como muitas relações dançaram porque antes não existiam. Sem falar obviamente na falta que um carro ou moto faz. Empresário... ¿Que adianta ser empresário e ainda assim duro? ¿Que adianta tentar vencer por iniciativa própria num país cujo governo só sabe sugar, sugar, sugar?

"Caralho!!!", berrava ao bater o telefone no gancho.

Na quarta-feira, comecei a achar que ela estava me esnobando e parei de ligar. Eu não queria demostrar estar tão fissurado assim. Qualquer um que tenha passado por um par de doloridas experiências amorosas sabe que tal comportamento manda às cucuias nossa cotação no mercado do amor. Na quinta, eu e o Dante voltamos ao Love Story e imediações, mas não a encontramos. Desisti. Talvez eu voltasse a ligar no sábado ou no domingo, horas antes da peça do Zé Celso. No sábado, porém, após uma noite de sonhos agitados e estranhos, amanheci com uma depressão profunda. Ela já não estava retornando as ligações havia algum tempo. Fiquei na fossa o dia inteiro. Ficava vendo na minha cabeça aquele retardado cheio da grana comendo a figura de quatro. Pensava: "pra merda! ¿viu, Duda?!" e, naquele dia, não liguei. Mas liguei no seguinte, tendo rolado o seguinte diálogo com o porteiro do flat:

"Boa tarde, gostaria de falar com a Duda, do apartamento X (não me lembro o número)." E ele: "Olha... ela não está." "¿Mas que hora afinal vou poder encontrá-la?" Ele suspirou do outro lado: "Bem, pra ser sincero com o senhor, o problema é o seguinte: a Duda faleceu. Ela teve, sei lá, algum tipo de ataque epilético de sexta pra sábado e não resistiu."

Eu quase tive um troço ali mesmo. Fiquei mudo, o telefone na mão, o olhar perdido.

"¿O senhor é parente dela?", perguntou.

"Não, sou... sou um amigo." Meu coração batia descompassado.

"¿O senhor quer que eu peça pra alguma das colegas dela lhe telefonar?"

"Não, pode deixar. Eu vou até aí."

Fui com o Dante até o flat. Era um prédio mediano na Bela Vista. As duas figuras com quem ela morava haviam acabado de chegar. Contaram que a Duda brigara com o fulano na sexta-feira à tarde e, dizendo-se finalmente livre, resolveu comemorar. Mas, segundo ambas, ela não parecia tão feliz assim. Sua vontade de "comemorar" tinha um tom autodestrutivo ou, no mínimo, uma pulsão de fuga. No fundo devia estar preocupada com o futuro, pois, não tendo família a quem recorrer, agora tampouco tinha aquela fonte de renda. Sem ter conseguido um trabalho fixo, já não podia sequer pagar as aulas de dança...

"¿Por que ela não me ligou?"

"Ela achou que você já tinha desencanado."

"Mas eu liguei mil vezes pra cá durante a semana!"

"Pode ter ligado, mas ela só recebeu os recados que a gente atendeu. Os porteiros daqui não gostam da gente, não anotam nossos recados..."

E contaram como as três, naquela noite, embarcaram no uísque e, por fim, na cocaína. Duda queria mudar de vida, disse que iria acabar com seu estoque de "coragem" de tirar a roupa em público. E não sobrou mesmo nenhuma. Veio a overdose. Desmaiou, sofreu convulsões. O porteiro da noite ajudou a carregá-la para baixo. Chamaram um taxi, mas, quando chegaram ao hospital, já era tarde.

"Eu acho que ela também tinha tomado um comprimido forte naquele dia. Era um remédio controlado que ela já tomava antes mesmo de sair da casa dos pais."

"¿E as coisas dela?"

"O pai dela veio até aqui ontem, botou tudo em duas caixas e levou embora pra Santo André. Ele nem olhou na nossa cara. Acho que ele pensava que a gente era puta", e suspirou olhando pro chão. "A grana dela vai fazer falta..."

Se fosse um filme americano, eu teria corrido até o banheiro e vomitado. Mas não, apenas saímos dali, tomados por um silêncio que se enchia dos ruídos do pensamento. Por que isso, por que aquilo, e tal. Tudo inútil. Havíamos viajado até esse mundo paralelo, o mundo da Boca do Lixo, da noturna "baixaria" paulistana, como quem sai de férias em busca de novos recantos turísticos. Mas a noite — a noite real, a noite do afeto, a noite do amor, o meio-dia da solidão — não é uma brincadeira. Não é melzinho, mas sim fel na chupeta. O Dionísio de concreto paulistano havia devorado mais um de seus habitantes, uma ninfa na flor da idade. E, para meu espanto, lembrei-me que, como toda tragédia, esta também havia sido anunciada: após seu striptease, Duda caminhara em nossa direção ao som de Dead Man Walking, do David Bowie. Uma sincronicidade das mais soturnas. E eu, que tanto desejara seu bem, fiquei apenas com meu "interior crepúsculo tristonho em que sinto que sonho o que me sinto sendo". Que o Vencedor dos vencedores a abençoe, Duda, esteja onde estiver.

Fim

A Bacante da Boca do LixoWhere stories live. Discover now