Voltando para a casa que haviam recentemente comprado, elas caminhavam calmamente pela calçada de mãos dadas, conversando sobre música e desenhos e, por vezes, debatendo sobre um subtema. Elas haviam acabado de oficializar seu matrimônio no cartório do centro da cidade, estavam planejando dar uma pequena festa com seus amigos próximos que tanto aguardavam pelo casamento, já haviam encomendado os salgados, os doces e o bolo e agora lutavam para encontrar um local disponível no equinócio de primavera que aconteceria daqui a um mês. Emily olhou para sua amada, que falava com entusiasmo, e parou alguns segundos somente para admirá-la: ela tinha cabelos lisos, cor de cobre que escorriam até pouco abaixo de suas orelhas, sua pele era clara como as nuvens e olhos castanhos escuros que brilhavam como estrelas, parte de suas bochechas e nariz eram levemente avermelhadas e entravam em contraste com sua maquiagem perfeitamente elaborada de tonalidades de verde água e azul, ela usava uma camisa branca com mangas cumpridas e calças azuis que chegava centímetros acima da sua cintura.
— Olha! — Bianca apontou para o outro lado da rua, onde um homem com um carrinho de sorvetes de iogurte caminhava — Eu nunca mais vi um desses na minha vida, vou pegar um pra gente.
A ruiva disparou para frente, parando perto do meio fio, ela olhou para o lado direito que era o único sentido que vinha carros e começou a atravessar a rua. Neste exato instante, o tempo desacelerou. Talvez a única que perceberia alguma coisa seria Emily, mas ela havia fechado levemente os olhos para piscar e não percebera a situação em que se encontrava. A garota tinha um leve sorriso brilhante de canto no rosto, favorecido pelo seus lisos cabelos pretos como carvão. O que passava na cabeça dela, naquele tempo era, ninguém mais ninguém menos, que o amor de sua vida.
"Quando foi que eu me apaixonei por ela?
Se bem me lembro, a primeira vez que nos conhecemos, tínhamos sete anos. Sim, eu me lembro vividamente, ela nunca perdeu esse jeito inquieto dela, talvez tenha sido isso que fez eu cair de amores por ela. Ela havia acabado de se mudar para a casa ao lado da minha, meus pais eram muito amigáveis e logo trataram de recepcionar seus novos vizinhos. É claro que, no processo, era meio que obrigatório eu virar amiga da criança deles. Fui totalmente contra essa ideia, mas sabia que não adiantava muito discutir, então, decidi que tentaria fazer amizade com a estranha. Enquanto nossos pais conversavam na frente da casa, estávamos nos fundos, sentadas sobre a grama, tentando arranjar algum assunto para conversar. 'Você já foi naquela floresta?' perguntou Bianca, apontando para um pequeno matagal que ficava poucos metros depois do fim dos terrenos. 'Sim, chamo ela de floresta das aranhas, tem muitos bichos estranhos lá, você ia ficar morrendo de medo' eu respondi, com um certo tom de orgulho em minha voz, 'Eu não ficaria não, quer apostar?' retrucou ela, em um tom desafiador. Para falar a verdade, eu morria de medo da floresta também, mas talvez quando duas ou mais crianças se reúnem, elas perdem essa noção do plausível. No final, nós duas voltamos correndo de lá e chorando, nossos pais estavam furiosos com a gente, perguntaram de quem foi a ideia de ir até lá e Bianca assumiu que tinha sido dela, mas acabei não deixando ela tomar a culpa sozinha e nós duas levamos esporro juntas. De todo modo, não foi nesse momento em que me apaixonei, disso eu tinha certeza, éramos muito novas para aquilo. É estranho pensar quantas vezes nós nos afastamos antes de estarmos juntas definitivamente. Dois anos depois, ela se mudou novamente e não nos vimos por cerca de três anos, nesse período, eu raramente lembrava da garota que havia conhecido no quintal de casa, estava ocupada tentando me adaptar às diversas mudanças que minha família fez depois daquilo. Quando tínhamos doze anos, coincidentemente acabamos na mesma sala, entretanto, não éramos mais amigas, muito pelo contrário: agora, a gente se odiava. Não me lembro bem os motivos de nossas intrigas, provavelmente coisas bobas de crianças, independente disso, era fato que estávamos sempre evitando uma a outra, ela tinha seu grupinho de amigos e eu tinha o meu. Ela ficava um pouco na dela e mesmo assim toda a sala conhecia ela — principalmente por ser ruiva-, ela era inteligente para caramba e parecia sempre brilhar e chamar atenção quando falava (embora deva dizer que apenas eu via aquilo), gostava de desenhos e cantores pop do momento, mitologia grega e histórias de terror, eventualmente ela também mencionava 'curiosidades' do mundo LGBT, embora naquela época ela ainda não se identificasse como um deles, mesmo sabendo de todas aquelas coisas basicamente apenas observando ela, demorei muito tempo para perceber que o que eu sentia por ela não era raiva.
Um dia desses, o tempo estava frio e chuvoso, tudo naquele momento parecia dar errado para mim: de manhã, havia brigado com meus pais, havíamos discutido sobre questões de gostar ou não de pessoas do mesmo sexo, naquela época eu já havia começado a questionar meus verdadeiros gostos, mas mesmo que eu ainda não tivesse certeza se gostava ou não de meninas, não havia sido fácil a discussão e aquilo havia me abalado muito, de todo modo, resolvi ir para a escola para esfriar um pouco a cabeça. Assim que cheguei na sala, a maioria das pessoas sabia que havia algo de errado comigo, naquele momento percebi que sempre havia uma certa energia positiva ao meu redor, pois sempre tentava ser o mais gentil possível com todos, mas não naquele momento. Por coincidência, naquele dia os resultados da prova de história haviam saído e era justamente a matéria que eu mais havia me esforçado e, mesmo assim, a nota baixa veio como um caminhão me atropelando. No final do dia, fiquei alguns minutos extras para discutir a recuperação com minha professora e tive que sair correndo dali para pegar meu ônibus para casa. Quando estava na porta de saída da escola, procurei pelo guarda-chuva em minha bolsa sem sucesso, nem havia me lembrado de pegá-lo ao sair de casa, dado os milhares de pensamentos que circulavam a minha cabeça. 'Que inferno!' reclamei e disparei correndo em direção ao ponto de ônibus, apenas para ver, metros antes do ponto, ele partindo sem mim, o próximo só viria duas horas depois. Naquele momento, eu não aguentei mais segurar o choro que estava engasgado em minha garganta, então, sentei ali mesmo na calçada molhada e coloquei tudo para fora, em prantos e soluçando no meio da rua praticamente vazia. De repente, embora as nuvens continuassem a rugir suas centenas de litros de água, a chuva a minha volta havia parado inesperadamente, surpresa, cessei o choro e olhei para cima, primeiramente vendo um guarda-chuva roxo, seguido de cabelos vermelhos como brasa extremamente familiares, olhos cheios de empatia inflamaram meu coração enevoado, ela estendeu a mão esquerda até mim e disse: 'Você pode esperar o próximo ônibus na minha casa, ou, se quiser, eu espero aqui contigo'. Vendo agora, anos depois, garanto que aqueles problemas que passei naquele dia não eram lá grande coisa, mas, para mim, naquele momento, pareciam gigantes e impossíveis de resolver. Às vezes, basta vir alguém com uma pequena vela para te mostrar que aquele abismo obscuro não é tão profundo quanto parece. Naquela tarde, nós fomos para casa dela, conversando no caminho sobre nossas aventuras passadas e travessuras de criança, ela me emprestou algumas roupas e tomamos chá, enquanto esperávamos os meus pais virem me buscar. O que eu sentia por ela, antes daquele evento, era, na verdade, um certo ressentimento por ela ter me deixado para trás, mas ela nunca havia feito isso de fato. Se fosse para nomear um momento em que me apaixonei, seria esse.
Depois disso, viramos melhores e inseparáveis amigas, por quatro anos inteiros nós nos víamos com frequência e participávamos de tudo juntas. Aos 16, demos nosso primeiro beijo, até ali, tinha sido o momento mais incrível de toda minha vida, e, logo em seguida, oficializamos nosso namoro, sem contar uma única palavra aos nossos pais. Acho que o momento em que eu senti que aquela era a garota da minha vida foi dois anos mais tarde, nós estávamos voltando de carro de madrugada de uma viagem que havíamos feitos com nossos amigos mais próximos, Bruna, uma grande amiga nossa, havia ido com a gente, mas estava voltando com outras pessoas, então sobrou apenas para ela e eu dirigirmos de volta para a cidade que nós morávamos, era madrugada e ela havia começado, eu, que estava no banco ao lado dela, estava morrendo de cansaço e acabei caindo em um sono profundo, minutos depois da saída. Horas depois ela me acordou já na nossa cidade, meu corpo estava coberto por uma manta leve e quente que havíamos levado, tentei protestar reclamando que ela não havia me acordado como tínhamos combinado, mas ela apenas se fez de desentendida e falou: '... Você devia mesmo era estar reclamando comigo do governo, nós pagamos um monte de impostos e nem pra eles usarem esse dinheiro para tapar os buracos na rua! Tive que ficar desviando de um monte pra não te acordar'.
Meu Deus! Nossa trajetória até onde estamos agora foi muito difícil, é incrível que eu tenha me recordado principalmente dos momentos bons sem sequer fisgar alguma das partes mais complicadas. Contudo, acho que é importante lembrar de tudo isso, para saber pelo que passamos, até hoje, por exemplo, temos uma péssima relação com nossos pais, pois, quando finalmente contamos para eles sobre a gente, um pouco depois da viagem à praia, eles veemente proibiram nosso namoro e fizeram de nossas vidas um inferno da melhor maneira que podiam, isso nos levou a muitas brigas, inclusive entre a gente. Talvez o momento mais difícil tenha sido o período em que Bianca desenvolveu sintomas de depressão e eu, de ansiedade. Nesse momento, pareceu que ia ser o fim de tudo, a situação estava terrível e só parecia que ia piorar, entretanto, quando eu estava completamente no fim do poço, Bianca estendia sua mão para me ajudar a se levantar, mesmo que um pouco, e eu fazia o mesmo por ela. Hoje, com 22 anos, estávamos nos casando no cartório e esperávamos poder fazer uma festa de casamento futuramente, quando as coisas estivessem melhores financeiramente. Na saída do cartório, resolvemos dizer algumas palavras uma para a outra, começando comigo: 'Eu sei que isso é meio tonto, porque nós nos conhecemos por praticamente nossa vida inteira, mas sem você, tudo sempre pareceu um pouco vazio e monótono, entretanto, quando você está por perto eu sinto que poderia ir a qualquer lugar com você e tenho certeza que estaria feliz' Bianca abriu um sorriso lindo e continuou 'Você se lembra daquele dia, na chuva, quando voltamos a se falar? Eu me senti estranha naquele momento, era praticamente como se tivesse acabado de acordar de um longo sono profundo, e... bem... eu não sei bem onde eu quero chegar com isso, mas queria dizer que esse é o primeiro dia de nossas vidas e sou muito grata por não ter morrido antes de isso ser possível.' "
Depois dos eventos citados por Emily, elas estavam ali, naquela rua. Talvez seja pela presença dele ou de você, mas ela não percebeu que haviam se passado vários minutos desde que ela começara a pensar e nem havia pensado no porquê de ela estar fazendo aquilo, talvez se ela percebesse que o mundo estava de fato em câmera lenta, poderia ter prevenido os eventos que se sucederam.
Bianca, que atravessava a rua até então vazia, viu, inesperadamente, um caminhão se aproximando dela em alta velocidade, mas não havia nada do que ela pudesse fazer, ele estava muito próximo. Foi naquele instante que o mundo completo de Emily se desabou: ela viu, com seus próprios olhos, o amor de sua vida ser levado por uma casualidade do destino, em um segundo estava tudo bem e no outro, ela estava gritando o nome de Bianca com todas as forças de seus pulmões, mas já não havia nada a se fazer. Futuramente, ela se recordaria daquele momento centenas de vezes em seus pesadelos e, quanto ao motorista do caminhão, ela se recordaria apenas de um detalhe casual: ele usava um cachecol vermelho. Depois disso, logo após o enterro da jovem e, nesse entremeio, discussões com os pais dela e consolo de seus amigos e familiares, ela ficou várias horas no cemitério, sozinha, sem saber para aonde ir.
VOCÊ ESTÁ LENDO
A Antologia do Caos
Short StoryEmbora o caos seja a palavra que defina o comportamento humano e a imprevisibilidade da vida, em mundos completamente desordenados e diferentes entre si, há apenas uma constante: o sofrimento.