CAPÍTULO XX

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— Garoto, cadê seus pais? — perguntou a atendente da loja de conveniência.

Tinha de ficar na ponta dos pés para se apoiar sobre o balcão e vê-la melhor. O uniforme do posto manchado de gordura e os cabelos castanhos presos em um coque. Uma das sobrancelhas, há muito sem fazer, estava erguida para ele em suspeita.

— Lá fora. — Apontou para a porta de vidro pela qual podia ver o agito das pessoas passando pelo centro da cidade. — Meu pai tá me esperando no carro.

Era a mais deslavada mentira. Seu pai estava no Chile há quase um mês a negócios.

— Tem certeza disso? — seus olhos verdes ainda o olhavam com desconfiança.

— Uhum. — Estendeu novamente a nota de dez reais para a mulher, mas ela não aceitou. O menino queria apenas comprar um salgado, mas ela não parecia crer muito em sua história.

— Tu tem certeza que não tá perdido?

Estava bem vestido. Sua mãe sempre fazia questão de apresentá-lo impecável. Suéter verde sobre uma blusa social, bermudinha de algodão, sapato social com meias caneladas e mochilinha nas costas. Não era exatamente o tipo de roupa que se usa para ir a um parque de diversões, mas Patrícia Salton era empenhada em mostrar à sociedade como sua família era bela e exemplar.

Não parecia um garoto perdido. Não entendia o porquê de todo o interrogatório. Normalmente, os seres humanos pouco se importam em ver crianças perambulando sozinhas pelas ruas, mas aquela mulher parecia ser uma alma mais gentil que as demais.

— Wesley, por que está demorando tanto?

Ambos, atendente e criança, viraram-se para trás para ver quem passava pela porta da loja. Um jovem homem de cabelos dourados até demais entrava no recinto, nenhum dos dois entendeu o porquê dos óculos escuros em um dia cuja previsão do tempo era de neve, mas não questionaram. Andou tranquilamente até o garoto e pousou uma das mãos em seu ombro direito.

— Já comprou seu salgado? — perguntou, olhando para ele.

— Tu que é o pai desse piá? Tem idade pra isso?

O desconhecido riu. — Pois é, todo mundo pensa que eu sou mais novo do que realmente sou. Agradeço o elogio!

— Não foi um...

— Já deu o salgado pro meu filho?

A atendente olhou para o menino, esperando identificar algum pedido de socorro, mas ele apenas concordou com a cabeça. Não conhecia aquele homem ao lado dele, mas parecia estar ajudando. Então, disse:

— Vou querer aquela ali. — Apontou para a maior coxinha que viu disponível.

Relutantemente, a mulher entregou o salgado para o menino, que foi conduzido por seu novo amigo até uma das mesas de madeira do lado de fora da loja, ainda sob o olhar preocupado daquela senhora.

— Você parou de tocar — disse o jovem, enquanto observava o garoto devorar seu lanche. — Gosto de ouvir você tocar piano.

Não obteve nenhuma resposta. Então, prosseguiu.

— Você é bom, sabia? Conseguiu chamar minha atenção.

Tudo que recebeu foi um dar de ombros triste do menino. Seu olhar cabisbaixo estava focado apenas na comida gordurosa à sua frente. Sua mão direita manuseava o salgado de maneira estranha, quase não tocando.

— É por causa disso? — falou, pegando a mão do garoto. Os dedos estavam em posições estranhas e alguns ainda inchados levemente. — Posso consertar.

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Puxou cada um com força, pondo os pequenos ossos no lugar. É claro, que causou dor ao menino, mas não mais do que ele já não estava sentindo. Fechou o pequeno punho da criança dentro de seu próprio e cantou baixinho um cântico em uma língua que, até então, o garoto não conhecia.

Olhou para a própria mão, agora sarada, movimentando os dedos para ter certeza de que estava normais novamente.

— Obrigado!

— Agora vai me responder?

— Uhum! — acenou positivamente com a cabeça, empolgado com a magia que acabara de acontecer. — Por que me chamou de Wesley?

— Por que é um nome mais brasileiro do que o seu. E porque "Joseph" vai estar em todos os jornais do estado amanhã de manhã.

— Não quero que me achem.

— E aonde você pensa que vai?

O encanto o deixou e o desespero assumiu o lugar. — Vai me levar pra casa?

— Você não vai muito longe com... — olhou para a mochila — cinquenta e dois reais.

— Não quero ir pra casa! — levantou o tom de voz em pirraça.

— E onde vai dormir? Vai acabar morrendo de frio hoje a noite. Você quer morrer?

Pensou um pouco enquanto terminava de comer. — Se eu morrer eu vou pro inferno?

— Por que acha isso?

— Minha mãe diz que eu vou. Que meu pai é malvado. Ela fala que eu sou mau que nem ele.

— Não... Você não vai pro inferno — o consolou. — Você sabe quem é seu pai?

— Sei! O nome dele é Joseph Salton II! — pronunciou com orgulho, como seu avô ensinava.

— Você não tem ideia mesmo, né... —Riu da inocência do garoto. — Mas e se eu te disser que posso te levar pra um lugar muito legal?

— Promete que não vai me levar pra casa? Minha mãe vai me bater se eu voltar.

— Prometo.

— Jura de mindinho? — estendeu o dedo recém curado para o jovem.

— Humanos têm juramentos estranhos... Mas, tudo bem. — jurou de mindinho que não levaria o menino de volta para sua casa.

— Como é o seu nome? — perguntou, animado, ajeitando a mochila nas costas, pronto para sumir dali o mais rápido possível.

— Meu nome é Apolo. Quero que conheça minha filha.

🔆

Frequentemente essa lembrança lhe vinha à mente. Considerava o dia mais feliz de sua vida. Imaginava o que a senhora do posto não devia ter pensado ao ver seu rosto no jornal como desaparecido no dia seguinte. Mas era grato por ela não ter chamado a polícia e não ter sido obrigado a voltar para o inferno que era sua vida.

Pensando bem, foi uma loucura simplesmente sumir com um desconhecido para o outro lado do mundo. Mas, observando Melina dormir serena, soube que aquela foi a melhor estupidez que já havia feito na vida.

O relógio do telefone informava que eram 5h35 da manhã. Pelos seus cálculos, Calisto já deveria estar voltando do nado das 4h15 e estaria na biblioteca às 6h em ponto, onde esperaria o café da manhã ser servido às 7h. Era um homem de rotina rígida e hábitos matinais, Joe nunca conseguiu acompanhar, mas precisava falar com ele e pretendia retornar antes que Melina acordasse. Não queria que ela pensasse que ele havia a abandonado à própria sorte no meio da noite.

O Legado do Sol • Livro IOnde histórias criam vida. Descubra agora