MADISON
Estive no acampamento de férias no mínimo umas cinco vezes na vida. Meu pai costumava me levar nesse acampamento anual para garotas, o Lake Girls Camp. Eu não era uma criança normal, eu não brincava com os outros na rua, não lia livros para alguém da minha idade e meu pai viu que, definitivamente tinha algo de errado comigo quando pela quarta vez em um mês me viu estrangular meu novo peixinho de aquário com as mãos. Bom, há um motivo para nunca termos tido um cachorro. A vizinha falou desse acampamento para o meu pai, e hoje sei que deve ter sido difícil para ele me deixar lá o verão inteiro sem poder ficar de olho em mim, sem poder ver se eu faria mal a alguém. Aposto que não era a mesma preocupação de outros pais.
Eu dava trabalho no começo, eu não machuquei nenhuma criança, mas tinha um certo desprezo pelas regras e nunca estava onde deveria estar, não demorou muito para os monitores do lugar ficarem apreensivos quando viam meu nome nas inscrições todo ano. Para mim, o acampamento era divertido por outros motivos. Eu não gostava de brincar com as outras meninas, nem de participar das dinâmicas em grupo, mas tinha um momento do dia, em que íamos para um campo aberto, as vezes para perto do lago, e podíamos desenhar qualquer coisa. Eu amava esses momentos, ficava ansiosa por eles. Eu me lembro de inspirar o ar puro, fechar os olhos, mirar para algum lugar e abri-los, então eu desenharia exatamente para o que apontei. Na maioria das vezes eram apenas árvores, então as desenhava como se fossem a coisa mais incrível no mundo. Era o único momento que eu sentia que existia.
Até que um dia, uma das monitoras que estavam nos acompanhando nesse passeio viu o meu desenho. Ela pediu licença e o segurou, analisou por um bom tempo, então me olhou como se tivesse medo de mim, ou talvez fosse pena.
Ela não me devolveu o desenho, ao invés disso, o mostrou para o meu pai quando ele foi me buscar. Eu fiquei no carro, então não ouvi a conversa, só o vi bravo enquanto ela mostrava para ele o que eu reconhecia ser o meu desenho daquelas árvores. O vi arrancá-lo de suas mãos e apontar um dedo na cara dela, nunca tinha o visto tão bravo, então ele entrou no carro e bateu a porta com força. "Nunca mais te trago nessa droga de acampamento". Não lembro do que senti na hora que ele me disse isso, definitivamente não fiquei feliz mas também não estava triste. Analisando hoje, é como se eu estivesse sempre neutra. A vida toda. Eu achava que me sentir neutra era uma coisa boa, antes dele. Antes do Peter.
Estar na Stark, com certeza não é como estar num acampamento de férias, apesar de toda a disciplina que ele impôs para mim. Eu tenho hora de acordar e de dormir, tenho minhas refeições, minhas aulas durantes cinco horas por dia, algumas horas de "lazer" dentro do meu quarto, porque Stark ainda não confia em mim fora da ala C, e a maior parte do tempo em testes e mais testes em laboratórios e em sessões de terapia. Mas não estou reclamando, na verdade, até acho que estou começando a gostar da Dra. Kiyoko.
-Madison? -a voz da Dra. soa mais alta chamando minha atenção. Percebo que estava num devaneio e levanto a cabeça para encara-la.
-Me desculpe, eu... fiquei distraída.
-Tudo bem, estávamos falando do seu pai, e do quanto é importante reconhecer o papel dele na sua vida. Depois de tudo o que colocamos na mesa, você percebe que ele fez um ótimo papel como pai e mãe? Nem todo homem consegue.
-Eu nunca disse que ele era um pai ruim. -digo enquanto rabisco o giz de cera no papel, na minha mais nova tentativa de desenhar um campo aberto, como aqueles do acampamento. É como se a Dra. observasse cada movimento que faço ao desenhar, mas eu não paro. -Só acho que ele se cobra demais. Acho que ele pensa que as coisas seriam diferentes se minha mãe estivesse aqui, mas eu não acho.
-E por que não? Uma mãe faz muita diferença no crescimento e amadurecimento de uma menina. Não acha que se ela estivesse aqui as coisas seriam diferentes? Seu pai teria apoio, não se cobraria tanto.
-Eu pensaria isso se achasse que eu seria diferente caso ela ainda fosse viva. Mas eu não acho que sou diferente só porque cresci sem mãe. Acho só que cresci com alguma coisa faltando no meu cérebro, e isso não é culpa de ninguém.
-Como pode saber disso? -pergunta, apoiando as mãos no joelho e me olhando com cautela.
-É só um achismo, Dra. Kiyoko. É você quem deve saber e anotar tudo.
Ela sorri de canto, o que me surpreende. Se fosse na clínica San Marcus, já teriam feito uma anotação bem mal educada sobre mim e encerrado a sessão mais cedo. Mas a Dra. Kiyoko é diferente, ela não se deixa magoar por pouco.
Acabo sorrindo também e continuo a desenhar. As árvores são todas altas e pintadas em verde escuro, com a copa ausente de qualquer coisa que não sejam as folhas, a grama em verde claro e o Iago... bom, dá para ver que é um lago.
-Posso ver como está ficando? -ela pergunta enquanto estica as mãos, esperando que eu lhe entregue o desenho.
Eu o entrego, ela cruza as pernas e o observa com calma. Observo a vista lá fora enquanto ela faz seu trabalho. Se eu fosse normal, talvez não estivesse nessa sala agora, são umas três da tarde, então eu estaria no treino de líder de torcida com a Haley, pensando nos sabores de sorvete para mais tarde. A idéia me faz sorrir porque sinto uma pontada de saudade da Haley, mas tento não me prender muito a esse pensamento, o que se torna ainda mais inútil porque agora fico imaginando se também está pensando em mim.
-Está muito bonito. Claude Monet ficaria orgulhoso. -ela abaixa a folha de papel para que eu consiga ver o sorriso no seu rosto.
Deixo um riso escapar enquanto a vejo ajeitar sua postura e me olhar mais seriamente agora.
-Eu sei que você sabe porque sempre peço que desenhe nas sessões de terapia, você não é nova nisso.
-Seis psicólogos em um ano. Eu com certeza não sou nova nisso. E também sei que os desenhos servem como um teste de análise de personalidade. Não é muito eficaz, na minha opinião, mas se você insiste...
-Mesmo? O teste de HTP funciona com muitos pacientes, por que acha que não funcionaria com você?
-Existem estudos do John Buck por ai falando sobre os testes de HTP, sei tudo sobre cada traço de cada desenho que é pedido nos testes em terapia, eu mesma já tive que fazer muitos. Então, como sabe que eu não estou apenas desenhando o que você quer que eu desenhe?
A Dra. Kiyoko não me responde de imediato, mas suspira e volta a se apoiar na poltrona. Não sei se ela pensa que a estou enfrentando, porque de verdade, eu não estou. Estou só dizendo a verdade, não é um teste muito inteligente.
-Nesse caso... -ela começa, parecendo um tanto desapontada -Eu tenho que confiar que me dirá a verdade. Eu sei que estar aqui não é fácil, se expor na frente de uma estranha, enfrentar seus próprios demônios, mas sei que está se esforçando por algum motivo. Sei que você disse que mesmo se a terapia der certo, e eu mudar seu diagnóstico não quer que ele saiba, e tudo bem, eu respeito isso. Mas se quer minha opinião pessoal Madison, só o fato de você estar aqui se esforçando, não mentindo nas sessões de terapia, e passando por tudo isso... bom, o reconhecimento por uma mudança já é um ato de amor, tanto por si próprio e quem sabe por ele também. Então, o que me diz? Posso confiar no seu desenho?
Penso em tudo que me disse como um turbilhão de informações e sentimentos que chegam junto com ela. A parte mais estranha de ter sentimentos é não saber o que fazer com eles. A Dra. Kiyoko diz confiar em mim, pode ser verdade, ou apenas está jogando comigo, ela me conhece, ela sabe me ler, estudou pra isso. Eu não poderia ter dúvidas de que Stark contrataria a melhor. Mas pensando em tudo o que ela disse, ela esta certa, eu não tenho porque mentir, não é como outras vezes que tive de fazer terapia. Não estou em casa, não estou tentando melhorar pra conquistar o Peter, na verdade se tudo der certo, ele nem vai ficar sabendo, então porque eu mentiria? Estou fazendo isso por mim antes de fazer pra qualquer outra pessoa. A verdade é que enquanto estava sob aqueles testes, eu fiquei viciada na sensação de apaixonada, mas não foi só isso, foi tudo. Eu senti coisas e me importei com coisas que nunca tinha prestado atenção antes, coisas pequenas, como o vento batendo no meu rosto, o frio na barriga ao descer na montanha russa, aquela felicidade ao receber um A numa prova que passei a noite toda estudando, e não poderia deixar de pensar... em seus toques, e tudo o que vinha dele que me fazia sentir viva. É o tipo de sensação que se espera ter a vida inteira, mas eu só quero ter uma chance de sentir pelo menos mais uma vez na vida, e de preferência, sem precisar de uma medicação para isso.
A Dra. Kiyoko está mais do que certa, e eu quero continuar sentindo tudo isso (exceto o Peter), é por isso que estou aqui, eu tenho sido sincera, de fato não menti nos testes de HTP, mas acho que posso me esforçar mais.
-Você pode confiar -começo, me recompondo de todos os meus pensamentos -que Claude Monet ficaria é com inveja da minha obra de arte.
Ela dá uma risada fraca, mas é o bastante pra aliviar o peso dos meus ombros, porque rio também.
-Mas acho que posso fazer melhor. -continuo, e ela me alcança outra folha em branco, que eu pego e juro para mim mesma que vou me esquecer de tudo o que eu já li sobre este teste, vou me esquecer dos traços de desenho que os psicólogos esperam que eu faça, e vou apenas fazer o que eu quiser fazer.
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NOTAS DA AUTORA
EU VOLTEEEEEI.
Gente, gostaria de primeiramente me desculpar pela ausência, eu não tive a intenção de ficar tanto tempo sem postar, simplesmente aconteceu e eu não quero ficar dando desculpas esfarrapadas pra isso, então só por favor me perdoem.
Maaaas eu voltei e estou super inspirada e muito animada para os acontecimentos dos próximos capítulos, eu espero muito que vocês gostem de ler tanto quando eu gosto de escrever essa fic, porque SÉRIO, os próximos capítulos estão incríveis mesmo.
Aliás, aliás, eu não quero ser totalmente irresponsável, essa fic já trata de um transtorno mental sério do qual em parte eu estou romantizando, mas gostaria de lembrar, é apenas uma fic, eu jamais romantizaria isso na vida real, eu manteria longe de mim qualquer pessoa com traços de sociopatia, então vocês por favooor, podem curtir a fic, mas não levem tudo isso pra vida real de vcs okay? okay.
Bom, sendo assim, eu tenho feito pesquisas em relação ao transtorno de sociopatia, pra não vir aqui escrever qualquer besteira também. Então sempre vou deixar os livros que usei como fonte de referencia aqui em "notas da autora".
Fonte de pesquisas:
Livro: Teste do Desenho Como Instrumento de Diagnóstico de Personalidade - Dinah Martins
Livro: HTP: Guia de Interpretação, vol I -John N. Buck