Capítulo 27

361 100 17
                                    

Vicente não demorou muito para encontrar outro som. Fazem apenas alguns dias desde aquele dia e, bem, aqui estamos nós de novo. Um nervosismo conhecido agita-se em minha barriga quando entramos no saguão de um prédio alto e ele cumprimenta o porteiro.

A cada dia que passa, duvido mais de que haja alguém nessa cidade que Vicente não conheça e vice-versa.

Ele se remexe ao meu lado quando entra no elevador e aperta o último botão, deixando transparecer sua hiperatividade. Dou uma risada controlada, mas que acaba sufocada em minha garganta quando ele entrelaça os dedos nos meus, no exato momento em que a porta se abre. Uma escada e uma porta depois, nós estamos no terraço. Prendo a respiração.

Vicente nos gira ao redor do espaço.

— Bem-vinda ao seu último som.

A cidade inteira brilha debaixo de nós, algumas luzes estáticas enquanto outras se mantém em movimento, partem e retornam, acendem-se e apagam-se. O vento nos açoita com força aqui, erguendo a bainha da saia diáfana do meu vestido, estampado com pequenas flores. É lindo.

Digo isso pra Vicente e ele sorri.

— Escute. — ele diz.

Fecho os olhos e faço exatamente isso.

A movimentação produz um murmúrio constante de buzinas, batuques, música e transformação. É quase como assistir a um organismo vivo se movimentar, cada uma das pessoas lá embaixo, uma célula essencial para manter tudo isso funcionando. Sorrio.

— Isso é incrível.

— É, não é? É muito diferente de estar lá embaixo. — ele puxa minha mão — Eu planejava beijar você aqui, sabia? Você apressou todos os meus planos.

Meu coração acelera e fico subitamente consciente demais da minha própria respiração.

— Foi você quem me beijou primeiro.

Vicente exibe as covinhas naquele sorriso perfeito e sinto vontade de ser eu a beijar primeiro, aqui e agora. Controlo meu corpo todo para ficar parada e apenas observá-lo, apreciando fazer isso.

— Não pode me culpar por isso. Você tornou inevitável.

Ele ergue minha mão e beija os nós dos meus dedos.

Um silêncio nervoso recai sobre nós e estou prestes à rompê-lo quando Vicente tira algo do bolso e exibe o punho fechado para mim.

Ele abre os dedos lentamente, quase como se testasse minhas reações. Um protetor auricular repousa em sua palma.

Sinto um tremor se espalhar pelo meu corpo quase automaticamente.

— Vicente...

— Preciso que confie em mim. Você confia, Lu? Confia em mim?

— É claro que confio. — me pego de surpresa com minha própria falta de hesitação — Meu Deus, eu confio. Mas isso...

— Tudo bem — ele volta a segurar minha mão. Seu polegar desce por todos os dedos até a palma, controlando os tremores — Você não precisa colocar se não quiser. Mas há algo que eu quero te mostrar, e você não pode escutar para isso.

Eu me encaro através dos olhos dele, fitos em mim.

É uma escolha simples, digo a mim mesma.

Uma escolha que eu já fiz, quando disse que a Síndrome não tiraria mais nada de mim.

Sem pensar em discutir a questão por mais nenhum segundo, tiro meus aparelhos, agarro o protetor e selo meus ouvidos.

Minhas pernas cedem instantaneamente. Vicente desce junto comigo, ambos ajoelhados no concreto frio, quase à beira do precipício.
É como as vezes em que troquei os aparelhos auditivos por fones de ouvido, abafado e limitante. Mas dessa vez não há música para sufocar a sensação de perder o contato com o mundo, nada para amortecer a queda de ser lançada no silêncio.

Minha respiração parece rasa demais quando Vicente puxa meus olhos para si. Começa a gesticular, comunicando-se em libras. Seus lábios não se movem nem uma vez.

“Confie em mim.”, ele sinaliza.
Faço que sim, com cuidado para que nenhuma lágrima se desprenda de mim, abrindo caminho para mais outras.

“Olhe para a cidade.”

Faço o que ele pede.

“Você não pode ouvi-la.”, ele afirma, “ Mas ela não parou, Luísa.”

Fecho os olhos, puxando ar pela boca. A ideia de assistir ao mundo no mudo me sufoca. Ele espera por mim, espera que me recomponha, que fique forte o suficiente para entender.

“Veja ela se mover. Sinta-a vibrar.”

Me concentro no que posso ver e tocar além da sensação de submersão em meus ouvidos. As luzes continuam seu espetáculo, acendendo e apagando em sua própria dança e ritmo. Encosto as mãos ao chão. Atendo-me bem a isso, posso senti-lo estremecer no mesmo ritmo da cidade abaixo. Mesmo suprimido, o som continua reverberando, mais implacável que o silêncio.

— Eu sinto. — digo, minha pele arrepiada.

“Então você ainda pode ouvir.”

Sufoco um soluço. Vicente segura meu rosto por alguns segundos, deixando uma beijo delicado sobre uma corrente molhada em minha bochecha,  antes de soltá-lo para voltar a gesticular.

“Nós não precisamos do som. Há muitas maneiras de escutar. Só precisamos encontrá-las.”

Só precisamos encontrá-las.

Eu assinto, incapaz de formular palavras. Passo os braços por sua cintura e me deixo cair.

Vicente puxa o protetor dos meus ouvidos e tudo volta com velocidade vertiginosa. Se não estivesse ajoelhada e segura por Vicente, teria cambaleado.

— Eu te amo. — ele sussurra em meu ouvido — você sempre vai escutar isso. Não importa como.

Último Som Where stories live. Discover now