Demônios Não Existem

86 7 0
                                    


 — O meu quarto ainda era o meu quarto. A porta e as janelas eram as mesmas. — Suspirei, arrancando com as unhas um pequeno pedaço de cutícula do meu polegar — E mesmo sentindo como se meu coração fosse explodir no meu peito, eu tive coragem de dar uma olhada bem rápida para o guarda-roupas que fica bem na frente da cama.

Ergui os meus olhos para o rosto de Tom, e ele me observava seriamente. Não havia expressão facial alguma em seu rosto que eu pudesse rapidamente reconhecer. Talvez, essa seria uma das razões pelo qual ele era um dos terapeutas mais bem avaliados do Google. Nunca consegui pescar expressões negativas durante as nossas sessões. Entretanto, as positivas também eram inexistentes.

— O meu guarda-roupas ainda era o mesmo, assim como o restante da mobília. — Prossegui contando — Eu também ainda era eu... Até rezei umas três Ave Maria me concentrando em ignorar o fato de que algo se aproximava da minha orelha esquerda. Mas era quase impossível ignorar porquê à medida que se aproximava, eu sentia meu corpo enrijecendo e paralisando.

Tom finalmente abriu a caderneta que sempre usava para fazer anotações nas consultas e escreveu algumas coisas. Nunca fui do tipo observadora, que consegue fazer análises surpreendentes de coisas simples. Mas não pude deixar de notar que o meu terror noturno, ou o inferno que for, o interessou um bocado. Aquilo me motivou a continuar o meu relato, eu confesso. Ainda que eu saísse dali em uma camisa de força direto para o primeiro sanatório que achassem, ao menos o meu trauma o serviria para uma boa conversa de bar. Parei de falar por uns dois minutos e voltei minha atenção ao meu polegar, que sangrava um pouco.

— Merda, merda, merda! — Pensei alto, e pressionei minha língua contra o machucado.

Tom descruzou as pernas, avançou o tronco para frente, tirou um curativo da gaveta da mesinha de centro e estendeu o braço oferecendo-me. Aceitei. Ardia para cacete!

— Estou te ouvindo, Kate! — Assegurou.

— Também ficava cada vez mais frio, e era agonizante não conseguir fazer aquela merda parar. Foi aí que eu chorei, e eu preciso que você acredite no que eu vou dizer agora, Tom, porquê foi a coisa mais absurda e nojenta que já me aconteceu na vida. — Implorei, mesmo sabendo que era o trabalho dele me levar a sério, pois ainda senti a necessidade de implorar por sua credulidade — As minhas lágrimas pareciam responder às ordens dele, e não importava o que eu fizesse. Cada coisa parecia premeditada. Eu era presa fácil para aquele demônio, e o meu desespero o alimentava, literalmente. Eu senti o que pareciam dedos segurarem minha cabeça contra o travesseiro, a ponto de perfurarem minhas bochechas com as unhas, ou garras, não sei ao certo.

Não foi nada fácil dizer aquelas coisas em voz alta depois de esquivar dos inúmeros pensamento intrusivos que tive logo pela manhã. Meu corpo se retraía como se cada lembrança fosse um tiro vindo na minha direção. Eu fechava os olhos tentando não ver, mas de nada adiantava porque embora o sentimento de reviver várias e várias vezes aquele inferno fosse quase palpável, os flashbacks existiam apenas dentro da minha cabeça. Dei um gole na água do copo parado na mesinha ao lado do divã. Tom ainda fazia anotações, então aproveitei para acabar logo o meu relato. Eu não aguentava mais falar sobre aquilo. Eu não aguentava mais o medo de voltar para a minha casa e ficar lá sozinha. E se algo pior acontecesse comigo? Talvez falar sobre apenas aumentasse a minha ansiedade.

— Eu tentei gritar, mas nem mesmo o mais baixo dos ruídos saía de dentro de mim. Ave Maria cheia de graça... Eu rezava e me esforçava descomunalmente para juntar letra com letra. — Enxuguei uma lágrima, soluçando — Mas ele riu e a porta do meu quarto bateu, como se um vendaval tivesse invadido a minha casa.

— Kate... — Ele disse num tom ameno.

— Tom, estava tudo fechado! Você precisa acreditar em mim.

— Eu acredito, Kate... Acredito que você experienciou isso! Nós podemos racionalizar o que você sente que ocorreu e tentar encontrar um ponto de paz.

Eu não precisava racionalizar nada, porra! Eu precisava de uma ajuda de verdade. Mas o Tom sabia de coisas que eu mal podia imaginar. Ele era inteligente com aquelas coisas psicanalíticas, e eu também só sentia que podia confiar minhas histórias, o meu passado e o meu presente a ele. E não me restavam escolhas. Eu precisava voltar a confiar em alguém de novo depois da morte de Joshua.

Demônios Não ExistemOnde histórias criam vida. Descubra agora